Introdução
A Ciência senso amplo ganhou proeminência nos últimos séculos, sobretudo em países que lideram as relações internacionais, estabelecendo-se como mediadora para a busca de soluções para grandes problemas da sociedade e, eventualmente, contribuindo para decisões políticas. Um exemplo é a definição dos 17 “Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável” (ODS) estabelecidos pela ONU e integralmente embasado em dados científicos advindos de pesquisas em diversas as áreas do conhecimento com impacto em todas as atividades da sociedade. Os países definem as áreas prioritárias de financiamento e as agências de fomento à pesquisa elaboram as estratégias de financiamento por meio de um diálogo contínuo com diversos atores. O termo “sociedade” neste artigo pode representar o setor público, o setor econômico, o governo, ou ainda a população em geral. Nesse contexto, a diplomacia científica também se insere como uma estratégia de diálogo com a sociedade em geral. (Figura 1)
Figura 1. Os 17 Objetivos de desenvolvimento sustentável, estabelecidos pela ONU
(Fonte: ONU. Reprodução)
Pesquisa senso amplo
A atividade de pesquisa requer, em sua essência, a indagação sobre um fato, um fenômeno, uma observação. A estruturação do pensamento lógico para elaborar a pergunta e as estratégias para respondê-la demandam um espírito curioso e crítico que submete a ideia à avaliação. Engana-se aquele que considera a pesquisa como uma atividade isolada e desconectada da realidade. Trata-se de uma operação orquestrada entre pesquisadores do mundo que buscam respostas a problemas às vezes ainda não compreendidos pela sociedade em geral. As mudanças climáticas globais [1] e a pandemia de covid-19 [i] são dois exemplos atuais de problemas do cotidiano cuja compreensão dependeu do conhecimento gerado por gerações de pesquisadores. Ambos têm impacto em todas as atividades econômicas e sociais relevantes à nossa sobrevivência e às futuras gerações, assim como grande esforço de comunicação e acordos entre governantes. (Figura 2)
Figura 2. As mudanças climáticas globais é um exemplo atual de problemas do cotidiano cuja compreensão dependeu do conhecimento produzido por gerações de pesquisadores.
(Imagem: jcomp/ Freepik.com. Reprodução)
Os desafios para o futuro da sociedade local, nacional e mundial são imensos e complexos. São necessários muitos cérebros pensantes e dedicados a refletir soluções, fazer descobertas, criar inovação e tecnologia não antecipadas. Tanto o futuro próximo (2050) como o mais distante (mais de 100 anos adiante) demandam criatividade e ações coletivas. Mais do que nunca precisamos do “Homo sapiens curiosus” e “Homo sapiens criativus” (e não do “Homo sapiens poderosus” ou ainda “Homo sapiens totalitarius”) para investigar questões básicas que resultam em avanço do conhecimento para uma subsequente solução criativa, claramente o papel da inovação numa sociedade.
O lema que “Ciência é investimento” deve ressoar como o som delicioso dos pássaros ao amanhecer ou ainda as ondas do mar numa praia limpa. Muitas controvérsias quanto ao futuro da Ciência, que inclusive embasam atitudes negacionistas para a obtenção do controle sobre diversas dimensões da sociedade, são realidade ao redor do mundo. É interessante notar que a Ciência, a Tecnologia, a Filosofia, a Religião e as Artes são desdobramentos da criatividade humana que moveram a sociedade ao longo dos tempos.[2] Marcos históricos nesse processo são a agricultura e a domesticação dos animais, o desenvolvimento de vacinas, a engenharia para o saneamento básico, a qualidade da água, do ar e do ambiente e as ações para o bem-estar e saúde do ser humano. O conceito Saúde Global [3] é intrinsecamente associado à qualidade de vida local.
“Os desafios para o futuro da sociedade local, nacional e mundial são imensos e complexos. São necessários muitos cérebros pensantes e dedicados a refletir soluções, fazer descobertas, criar inovação e tecnologias não antecipadas.”
Nesse contexto, todo projeto de pesquisa é uma oportunidade de descoberta e sua avaliação criteriosa e justa é um valor a ser preservado no processo de financiamento a pesquisa em qualquer país. Misturar o processo de avaliação científica com interesses políticos e individuais é um grande risco para a saúde do sistema de pesquisa. Existem vários exemplos através dos séculos em que interesses individuais ou corporativos tiveram impacto substantivo em conter a compreensão dos fenômenos naturais.
As Ciências Biológicas
Nos últimos 50 anos além da revolução (e transição sem volta!) para um mundo digital, virtual, robótico, vimos uma revolução semelhante ocorrer na área da ciência que estuda da vida. A pandemia da covid-19 escancarou quão frágeis somos diante de um vírus. Por ocasião da celebração das descobertas de Louis Pasteur no Rio de Janeiro (1995), o Prêmio Nobel Joshua Ledeberg [4] afirmou que ainda não tínhamos o conhecimento suficiente para proteger a humanidade, os animais e as plantas de infecções virais. Esse receio expresso pelo pesquisador ainda é válido hoje, mesmo com os muitos avanços das últimas décadas. Por outro lado, saber que a doença covid-19 é causada por um vírus, e que diferente de doenças causadas pelas bactérias, não adianta tomar antibiótico, foi importante para identificar o tamanho do problema que enfrentamos. A única solução é uma vacina! Mas para entender a covid-19 foi necessário ter conhecimento do que é um vírus.
Do mesmo modo, o projeto de sequenciamento do genoma humano encerrado no início dos anos 2000 reitera a noção que a vida evolui de ancestrais comuns e que todos temos um pouco de bactéria dentro de nós. Fazemos parte da linhagem dos eucariotos mas também somos em grande parte o que comemos, e por isso o esforço para o ODS 2, que é Fome Zero,[ii] é um pilar central assim como a erradicação da pobreza (que é o ODS 1). Além do sequenciamento do genoma humano, muitos outros genomas foram produzidos de diversos organismos como bactérias, fungos, animais, plantas e vários parasitas e patógenos, entre outros.[5,6] Todos esses genomas abriram oportunidades tecnológicas juntamente com várias descobertas feitas ao longo do século passado, permitindo que processos biotecnológicos pudessem ser aprimorados. A biotecnologia tem seu berço na antiguidade, quando aprendemos a fazer pão e vinho.
Hoje a biotecnologia alcança um potencial extraordinário com as descobertas recentes. Por exemplo, que o RNA é informacional e pode ser usado para a produção de vacinas ou melhorar características genéticas sem a necessidade de modificação direta dos genomas dos organismos. Interessante notar que uma das grandes mudanças recentes veio de estudos sobre a infecção viral em bactérias. As bactérias também ficam “resfriadas” e desenvolveram um conjunto de ferramentas para se protegerem das infecções virais. As cientistas recém-premiadas (2021) pela Nobel Foundation, Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier, desvendaram o mecanismo de defesa denominado CRISPR-Cas [7] que está sendo “domesticado” para usos diversos visando, por exemplo, a correção de doenças genéticas em humanos ou a melhora da produção de plantas em condições extremas.
Outro exemplo marcante, é o Prêmio Nobel da Paz em 2007 para o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e Al Gore,[iii] que realizaram uma síntese de diversos trabalhos publicados sobre as mudanças climáticas globais e sua origem antropogênica. No mesmo relatório, definem recomendações gerais para a sua contenção. Hoje vemos um esforço da comunidade científica em gerar relatórios de síntese [8] sobre temas diversos na área de Ciências Biológicas e suas interfaces para a saúde, ambiente, biodiversidade, crise energética, o valor da bioenergia e a sustentabilidade macroeconômica.[9]
“A atividade de pesquisa científica robusta é considerada um dos pilares para a independência de uma nação.”
Polêmicas incompreensíveis são vividas de modo recorrente no mundo atual, por exemplo, o uso, consumo e os benefícios de organismos geneticamente modificados para a produção de alimentos ou medicamentos. A importância inestimável da aplicação de vacinas para a sobrevivência de crianças ao redor do mundo livres de várias doenças. Como esclarecer a relevância sem esbarrar em conceitos tão arraigados na sociedade seja pela mídia superficial, interesses políticos, cultura ou religião?
Pesquisa em Biologia e tecnologia
A atividade de pesquisa científica robusta é considerada um dos pilares para a independência de uma nação. Diversos livros tratam da relação entre ciência e autonomia de um país, assim como a dualidade entre a ciência básica e a ciência aplicada. No âmbito da História da Ciência, cabe destacar a grandeza do potencial embutido na atividade de pesquisa e de curiosidade humana, onde cada cérebro conta. A compreensão das leis de Mendel seguida da descoberta da estrutura da molécula de DNA e a automação de reações bioquímicas culminaram na entrada do século XXI com o sequenciamento do genoma humano e as grandes contribuições práticas nas áreas de saúde, agropecuária e qualidade ambiental. A parceria entre engenharia, a biologia e a ciência de dados tem grande potencial e responsabilidade nos anos vindouros. A dicotomia entre pesquisa básica e aplicada é ainda um debate em curso, contudo é certo que a aplicação do conhecimento depende da apreensão prévia do conhecimento. Assim, o desenvolvimento da tecnologia muitas vezes depende de saltos no conhecimento e também no desenvolvimento de equipamentos ou produtos mais eficientes. A palavra “eficiência” é aqui utilizada com a dimensão de redução de tempo, gasto energético, redução da poluição ambiental, utilização de insumos alternativos, entre outros.[7] (Figura 3)
Figura 3. A compreensão das leis de Mendel seguida da descoberta da estrutura da molécula de DNA e a automação de reações bioquímicas levaram ao sequenciamento do genoma humano e às grandes contribuições práticas nas áreas de saúde, ambiente e agropecuária.
(Imagem: Sangharsh Lohakare/ Unsplash.com. Reprodução)
Na área de Ciências Biológicas observa-se uma mudança radical no fazer pesquisa. A diversificação dos equipamentos de laboratório e de campo ocorre com a introdução da tecnologia da informação, o ganho em resolução das imagens capturadas por microscópios, satélites e drones, entre outros. A modelagem e integração dos dados na área de estudos ambientais como ecologia ou em biologia molecular e celular é realidade. Em contrapartida a esses avanços, muitos trabalhos, que são a base dos estudos atuais, caem no esquecimento com o grande volume de artigos publicados. Acompanha esse processo o distanciamento da compreensão do organismo ou do ambiente em estudo. Um esforço se faz necessário ao resgate desse conhecimento.
A linha difusa entre Ciências Biológicas, Tecnologia e Inovação: a biotecnologia
Entre os desafios para os próximos anos no Brasil, tem-se a retomada do investimento em ciência e o incentivo à atividade inovadora. As universidades, local de formação de recursos humanos ao nível superior, tem se engajado a informar e estimular a atividade de inovação entre seus alunos. Contudo, não se deve substituir as funções precípuas dessas instituições, mas sim criar um ambiente saudável de estímulo a inovação em parques tecnológicos ou no setor econômico capaz de atrair e estimular jovens talentos. A Biologia aparece nesse século como a Química e a Física em séculos anteriores, a grande força motriz de mudanças na sociedade em geral e no ambiente. A Biotecnologia congrega um conjunto de oportunidades de aplicação de conhecimentos advindos das Ciências Biológicas em todos os campos de atuação do ser humano qual seja saúde, alimento, ambiente, saneamento ou sustentabilidade. E aqui há grande espaço de inserção de força de trabalho no setor econômico, no setor público ou no terceiro setor.
Acompanha essa atividade a necessidade de sua regulamentação através de uma ampla gama de variação de autorizações e certificados. A ética na pesquisa com seres humanos, com animais e com o ambiente de forma geral se torna necessária. Do mesmo modo, o reconhecimento do saber dos povos originários de todos os cantos do mundo.
“O desenvolvimento (social e econômico) do Brasil necessita de uma base sólida de pesquisa inserida no universo global e que garanta à sociedade autonomia de escolhas informadas.”
A necessidade de regulamentação das atividades de pesquisa na área de Ciências Biológicas ganhou uma complexidade sem precedentes. Ao pesquisador cabe garantir que todo o estudo siga as regras recomendadas, mas instituições brasileiras ainda tem um grande vácuo no que se refere a oferecer apoio aos pesquisadores. Todo o processo é longo, árduo e, na maioria das vezes, sem apoio institucional, seja no preenchimento, seja na informação de procedimento.
A difícil arte de comunicar Ciência
A atividade de comunicação da pesquisa como visto nas seções acima é vital para a disseminação do conhecimento em suas diferentes esferas: meio acadêmico, sociedade em geral e dentro de instituições de fomento em suas diferentes instâncias. Ademais, acrescem-se os aspectos éticos da pesquisa e a sua condução adequada dentro das normas e padrões locais e globais. É importante que pela comunicação também seja divulgado o cuidado inerente à qualidade das ações. A palavra comunicação aqui ganha várias dimensões.
Uma digressão histórica importante com efeito não desprezível para a atividade científica é que a partir de 1660 a atividade de registro e armazenamento de cartas enviadas por pesquisadores do mundo foi sistematizada pela Royal Society of London, dando início à tradição de publicação de artigos científicos revisados por pares que hoje passa por nova mudança de paradigma. A divulgação dos resultados de pesquisa como mencionado acima são fundamentais para a Ciência. O movimento de Ciência Aberta (Open Science), Dados Abertos (Open Data) e Acesso Aberto (Open Access) é irreversível. No entanto, a comunidade científica global ainda não está plenamente preparada para lidar com esse movimento. Trata-se de uma demanda da sociedade ao nível global de modo que seja reconhecido a contribuição dos países para o conhecimento mundial e também o financiamento das pesquisas pelas diversas agências mundiais.
Conclusão: a vida na terra, seja ela em formato digital ou real, depende de água limpa, ar puro, oxigênio e luz do sol
As árvores, os fungos, os organismos unicelulares que não enxergamos precisam viver para que todos os demais possam aproveitar desse belo planeta. Vivemos uma janela de oportunidade para novo salto na ciência no Brasil e no mundo. A disponibilidade de dados abertos em todas as áreas do conhecimento é singular e uma mudança de paradigma de análise deverá ser implementada para o seu uso integral.
As Ciências Biológicas hoje se caracterizam por uma operação orquestrada de pesquisa que entrelaça parceiros em todas as áreas do conhecimento e que garantem o desenvolvimento de ciência de qualidade. Considerando o cenário nacional, o desenvolvimento (social e econômico) do Brasil necessita de uma base sólida de pesquisa inserida no universo global e que garanta à sociedade autonomia de escolhas informadas. Investir em ciência é investir no futuro da sociedade e da nação. Os cientistas de todas as áreas são os guardiões de uma missão fundamental para o mundo que é de construir o conhecimento, explicar os fenômenos através de pesquisa ética, relevante, com equidade e de qualidade em todas as áreas do conhecimento para as futuras gerações.
Dedicatória da autora aos cientistas:
A todos que ousaram pensar diferente, foram em busca de respostas a perguntas inquietantes e em sua busca geraram os alicerces para se fazer Ciência…e educar as nações.
Capa. Ciências biológicas são fundamentais para informar ações de sustentabilidade, saúde e biotecnologia.
(Imagem: Dora T Bonadio. Reprodução)
SLUYS, Marie-Anne Van. Cienc. Cult. [online]. 2023, vol.75, n.2 [citado 2023-10-16], pp.01-07. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252023000200003&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0009-6725. http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20230019.