A complexidade do planeta exige abordagens inovadoras e transdisciplinares para enfrentar crises ambientais.
A complexidade resultante dos processos e das interações entre os seres que habitam o planeta Terra é imensa, e compreender o funcionamento deste sistema em diferentes escalas espaciais e temporais é fundamental para propor soluções cada vez mais inovadoras diante das crises ambientais que estamos vivenciando. Embora tenhamos, no Brasil, grupos científicos excepcionais trazendo informação relevante a partir de diferentes áreas de conhecimento associadas às mudanças ambientais globais, acredito que o caminho ainda seja longo para, de fato, trabalharmos efetivamente de forma inter, multi e transdisciplinar, com uma abordagem mais holística e integral.
O realce em efetivamente dá-se pelo viés do que tenho vivido durante toda a minha carreira acadêmica, a partir da graduação em Matemática Aplicada. Será um relato que se resume em grande parte em como o apego ou o desapego podem alterar completamente o rumo dos caminhos que tomamos, inclusive em estudos e resultados científicos. Começo dizendo que era comum eu escutar de familiares e amigos que a Matemática não me traria um futuro financeiramente promissor e que eu seria somente uma professora no final das contas. Eu achava tudo aquilo muito estranho porque tinha uma admiração tão significava pelas minhas professoras e pelos meus professores, que pensava que, se eu realmente me tornasse professora, eu já estaria lucrando bastante. Mas algo me dizia que a Matemática era mais que o emprego ou um rótulo social que eu teria, era uma oportunidade de aprender a ser versátil, observando o mundo às vezes com uma lente de aumento microscópica, às vezes com uma distância espacial, e muitas outras possibilidades entre estes extremos. Então, escolhi desapegar do destino final (o emprego, no caso) e seguir o caminho das possibilidades infinitas que, na minha cabeça, eu teria a partir da Matemática.
“O apego que temos aos nossos trabalhos científicos pode estender-se também para como compartilhamos métodos, resultados e principalmente dados.”
Quando decidi ingressar no mestrado, sem bolsa, os avisos de que esta escolha não caracterizava um emprego “de verdade” intensificaram-se, inclusive considerando que eu nem salário tinha, ou seja, eu estava fadada à falta de benefícios sociais muito importantes. E olha que eu já estava no meio dos engenheiros de computação e eletricistas! Pensei que a comunidade acadêmica da qual eu participaria poderia abraçar um pouco mais a causa da versatilidade, da falta de rótulos, das infinitas possibilidades que mencionei acima. Tive a fortuna de encontrar colegas, professores e professoras que alimentaram essas perspectivas, mas o sistema como um todo no ambiente acadêmico ainda me parecia bastante focado no destino final: artigos, relatórios e patentes. Mesmo assim, continuei, ainda de forma bastante inconsciente, no desapego do destino final (ainda o emprego), aproveitando as oportunidades que apareceram de aprender com as pessoas que iam aparecendo pelo caminho e com o conhecimento que cada uma delas trazia, independentemente de ser acadêmica.
Ao longo dos cinco anos e meio que passei desenvolvendo o doutorado, tive a felicidade de encontrar e me encantar pela Ecologia. Foi a partir da necessidade de compreender os processos e mecanismos ecológicos para interpretar os resultados dos modelos que comecei a ir a campo e aprender com colegas que mediam coisas incríveis nas plantas e me ajudavam a enxergar isso na vida real. Nossa, foi uma explosão maior ainda de possibilidades! Foi a partir deste encontro com a Ecologia que comecei a pensar em ideias e em pessoas com quem pudesse colaborar para investigar em como abarcar a complexidade de subsistemas do sistema terrestre na avaliação das mudanças ambientais que correntemente experienciamos. Comecei a conscientemente compreender que não bastava apenas interagir com colegas de outras áreas de atuação, era preciso aprender a como se comunicar com eles efetivamente. Percebi então que para ser efetiva era necessário me desapegar de jargões, conceitos fixos e outras amarras para de fato conseguir ouvir, processar, aprender e conversar. Coincidentemente, um colega querido chamado Silvio Barreto, que tem formação em antropologia, recentemente compartilhou uma metodologia na qual ele tem pensado e trabalhado associada ao banco tukano, que bem resumidamente baseia-se em sentar e escutar para os conhecimentos sejam passados oralmente dos mais antigos para os mais jovens. Parece fácil, mas percebo o quanto ainda não conseguimos nos desapegar das nossas disciplinas aprendidas para escutar e agregar o que colegas de outras áreas têm para trocar. Desta forma, podemos interagir, trabalhar juntos, publicar artigos, mas não necessariamente, estaremos fazendo isso de forma plural e transdisciplinar, trazendo potencialmente propostas surpreendentes para a literatura científica, e mais ainda para uma mesa de discussão que inclui pessoas de fora da comunidade científica.
Dentro desta ótica, embora admire e participe de discussões excepcionais com grupos de pesquisa, particularmente aqui no Brasil, ainda não consigo visualizar (talvez por ignorância e desconhecimento) que há incentivos consistentes para pessoas que têm motivação de realizar uma formação acadêmica efetivamente híbrida. Um exemplo disso são os programas de pós-graduação fortemente disciplinares que previnem que tais pessoas permaneçam no Brasil e fortaleçam ainda mais as bases científicas que já temos no país.
“Quão mais velozes seríamos em informar cientificamente sobre degradação ambiental e perda de biodiversidade em diferentes ecossistemas brasileiros, de uma forma que estas informações sirvam de apoio para interessados na sociedade civil e nos governos?”
Em algum momento depois do doutorado, percebi ainda que o apego que temos aos nossos trabalhos científicos pode estender-se também para como compartilhamos métodos, resultados e principalmente dados. Era impressionante o tamanho do desafio de reproduzir análises que eu lia em artigos a partir dos métodos descritos e em utilizar dados não disponibilizados e de difícil acesso. Ficava me perguntando e perguntava para colegas os motivos de ser tão desafiador adquirir dados e reproduzir resultados. As respostas foram diversas e foram mudando conforme eu adentrava as entranhas do sistema acadêmico. Embora eu compreenda muitos pontos que defendem que os dados sejam usados apenas por alguns/algumas cientistas, me pego continuamente pensando no quanto freamos a ciência e potenciais propostas de soluções urgentes e cada vez mais necessárias no contexto atual. Um exemplo disso foi a velocidade com que as vacinas durante a pandemia de COVID-19 foram desenvolvidas e aplicadas na população. Um dos motivos associa-se com a colaboração global entre instituições de pesquisa, empresas farmacêuticas, governos e organizações de saúde, a partir do compartilhamento de informações e recursos. Outras razões podem ser listadas, mas sem esta colaboração global, as vacinas poderiam ter demorado ainda mais para chegarem para todos, mesmo que já tenham demorado mais rápido para uns do que para outros. Neste sentido, quão mais velozes seríamos em informar cientificamente sobre degradação ambiental e perda de biodiversidade em diferentes ecossistemas brasileiros, de uma forma que estas informações sirvam de apoio para interessados na sociedade civil e nos governos? (Figura 1)

Figura 1. Durante a pandemia COVID-19, as vacinas foram desenvolvidas e aplicadas rapidamente. Isso aconteceu porque as instituições de pesquisa, empresas farmacêuticas, governos e organizações de saúde trabalharam juntas.
(Foto: Sumaia Villela/ Agência Brasil. Reprodução)
Um movimento denominado Ciência Aberta visa à promoção de transparência, colaboração e acesso livre a todo tipo de conhecimento produzido em uma pesquisa (inclusive metodologia, descrição de equipamentos) para fornecer maior cooperação. Entre outras amarras que temos que lidar, novamente o desapego aparece como uma das forças motrizes que individualmente cientistas podem se apoiar para que este movimento ganhe força e cresça. Além das vacinas, outros exemplos de que a ciência aberta pode alavancar descobertas e inovações são a abertura de dados do satélite Landsat, dados astronômicos disponíveis no Sloan Digital Sky Survey (SDSS), a descoberta do Bóson de Higgs a partir de colaborações na Organização Europeia para Pesquisa Nuclear (CERN, sigla em francês), entre outros.
“A transdisciplinaridade e a acessibilidade da ciência de forma efetiva apresentam elementos bastante relevantes para promover avanços significativos nas ciências ambientais.”
Para as ciências ambientais, no Brasil, um ponto associado é que temos uma quantidade imensa de dados coletados em uma diversidade de pesquisas, mas que não estão mais disponíveis, por exemplo, por falta de infraestrutura, ou até por falta dos pesquisadores terem maior conhecimento dos mecanismos e vantagens da ciência aberta. Neste último caso, a catalogação dos metadados (que descrevem os dados) em repositórios públicos permite a terceiros descobrir que os dados existem, onde podem ser obtidos e quem pode intermediar o acesso. Estes catálogos devem ser criados, mantidos e divulgados para podermos saber o que existe, acelerando a colaboração tão necessária para o avanço da pesquisa nessa área. (Figura 2)

Figura 2. A colaboração entre diferentes áreas do conhecimento permite novas formas de compreender e enfrentar os desafios ambientais.
(Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil. Reprodução)
Mesmo com todos os entraves que possam existir, a transdisciplinaridade e a acessibilidade da ciência de forma efetiva apresentam elementos bastante relevantes para promover avanços significativos nas ciências ambientais, a partir de experiências bem sucedidas no Brasil e no mundo. Certamente, esta é uma opinião construída a partir de vieses explícitos e implícitos, mas é inegável que ainda podemos evoluir na elaboração de espaços de formação e absorção de cientistas com perfil híbrido. Em um planeta tão complexo e em constante mudança, este fortalecimento já contribui e pode contribuir ainda mais para propor soluções inovadoras em consonância com a excelência do que já está em operação no Brasil.