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“A diversidade é a vida: enriquece uma discussão, amplia olhares e pode trazer soluções mais criativas e abrangentes.”

Confira entrevista com Silvia Regina Batistuzzo de Medeiros, professora da UFRN

 

Silvia Regina Batistuzzo de Medeiros construiu sua trajetória científica abrindo caminhos na genética e na biologia molecular no Brasil. Professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), ela é uma das responsáveis por estruturar o primeiro laboratório de biologia molecular da instituição, em meados da década de 1990, iniciativa que marcou o fortalecimento da pesquisa na área e impulsionou a criação de programas de pós-graduação. Ao longo da carreira, atuou em projetos de grande relevância, como o Genoma Nacional, e consolidou linhas de investigação em genotoxicidade ambiental e biomateriais relacionados à osteogênese. Além de seu trabalho acadêmico e da participação em redes como o INCT-Regenera e a CTNBio, Silvia se destaca pela forma como alia rigor científico e compromisso com a formação de novas gerações de pesquisadores. “Ser pesquisadora é ser questionadora: é querer conhecer sempre um pouco mais e construir, por meio da ciência, um mundo melhor”, afirma. Sua trajetória, que atravessa marcos institucionais e experiências pessoais, é também uma história de perseverança diante dos desafios de ser cientista e mãe, conciliando a construção de uma carreira de impacto com a vida familiar. “Conciliar maternidade e pesquisa não é simples, mas é possível com rede de apoio, gestão do tempo, flexibilidade e reconhecimento justo”, diz. Nesta entrevista, ela compartilha suas experiências, reflexões e os aprendizados de mais de três décadas dedicadas à ciência no Brasil.

 

Ciência & CulturaSua trajetória combina pesquisa de ponta em genética molecular e atuação em temas de grande impacto social, como genotoxicidade ambiental e biomateriais para regeneração óssea. O que a motivou a trilhar esse caminho científico?

Silvia Regina Batistuzzo de Medeiros – Durante os dez anos iniciais, era muito difícil fazer pesquisa de qualidade em biologia molecular, pois nossa infraestrutura era bastante limitada. Quando retornei à UFRN, acabei voltando à área da minha iniciação científica: a análise de genotoxicidade. As análises de mutagenicidade com sistemas bacterianos foram trazidas pela colega de departamento, Lucymara Agnez Lima, a partir de seu doutorado. Começamos trabalhando com genotoxicidade de produtos naturais e, depois, passamos para a água.

A partir dos anos 2000 seguimos caminhos diferentes: ela com metagenômica e vias de reparo de DNA, e eu com a análise de genotoxicidade de material particulado e de biomateriais para regeneração óssea. Os inúmeros editais disponíveis na época favoreceram muito as possibilidades, assim como os contatos que tínhamos. Minha entrada na área de mutagênese ambiental, com foco em material particulado, veio da participação do meu grupo em um trabalho coordenado pela Dra. Sandra Hacon (Fiocruz-RJ), que contava com a participação do Dr. Paulo Saldiva (USP). Esse primeiro contato rendeu novas colaborações, tanto em projetos coordenados por eles quanto por nós, ampliando análises e parcerias, como com a Dra. Pérola Vasconcelos (Instituto de Química da USP) e o Dr. Paulo Artaxo (Instituto de Física da USP).

Somado à presença de alunos motivados, independentes e determinados, isso fortaleceu a área com a geração de dados relevantes. A participação em congressos possibilitou novos contatos internacionais e a ida de alunos para estágios sanduíche durante os doutorados. Assim, conseguimos colaborações com o Karolinska Institute (Suécia) e a Universidade de Saskatchewan (Canadá). Nessa área, começamos com a detecção de poluentes genotóxicos no ambiente e avançamos para compreender os mecanismos de ação no organismo, buscando respostas tanto para identificar precocemente a toxicidade quanto para pensar em possíveis tratamentos futuros.

Em 2006, tive aprovado um projeto Universal para analisar a genotoxicidade de biomateriais, na época superfícies de titânio modificadas por plasma de argônio, em colaboração com professores do Departamento de Física da UFRN. Esse projeto rendeu vários resultados interessantes, que possibilitaram novas aprovações em editais, a formação de uma Rede Nacional em Terapia Celular e, posteriormente, a participação como laboratório associado no INCT-REGENERA (2014–2024). Também abriu portas para colaborações internacionais, como com o Prof. Miguel Gama (Universidade do Minho) e a Profa. Maria Helena Raposo Tavares (Universidade do Porto).

O sucesso dessas áreas se deve, sobretudo, a alunos dedicados e motivados, bem como à importância do tema, pois, para que um produto seja liberado no mercado, ele precisa ser seguro — e é isso que analisamos. Além dessas duas áreas, desenvolvi também trabalhos relacionados à proteômica da Chromobacterium violaceum, organismo modelo usado no Genoma Nacional, buscando identificar novos genes de interesse biotecnológico em parcerias internacionais. Resumindo: as possibilidades se apresentaram, as motivações surgiram e o caminho foi trilhado. Fomos construindo o caminho ao caminhar, como disse o poeta espanhol Antonio Machado em Cantares, imortalizado na voz de Joan Manuel Serrat.

 

“O sucesso da pesquisa se deve tanto à dedicação dos alunos quanto à importância de garantir que novos produtos sejam seguros para chegar ao mercado.”

 

 

Ciência & CulturaO que é ser pesquisadora para você?

SRBM – Ser pesquisadora é ser questionadora… é querer saber e conhecer sempre um pouco mais, é tentar compreender o que ainda não sabemos, aventurar-se por novas técnicas para trazer respostas, é auxiliar o outro a ver e ter um mundo melhor. Na verdade, é construir um mundo melhor. Só estamos onde estamos, com tantos diagnósticos precoces e terapias — sejam medicamentosas, celulares ou gênicas —, devido ao conhecimento, à ciência. Se a longevidade aumentou ao longo dos anos, deve-se única e exclusivamente à ciência, assim como outros avanços, como o tecnológico. Sempre me pergunto como seria nossa sociedade se a ciência tivesse sido obscurecida pela religião nos tempos passados.

 

Ciência & CulturaSeu trabalho com células estromais mesenquimais humanas para estudos de osteogênese tem implicações diretas na medicina regenerativa. Quais os avanços mais promissores nessa área e como sua pesquisa tem contribuído para esse campo?

SRBM – Nossos estudos se enquadram mais na ciência básica. Identificamos, por exemplo, que células estromais de diferentes fontes têm comportamentos distintos. Aquelas com alto potencial de proliferação apresentam uma alta frequência de pontes nucleoplasmáticas, indicando a presença de cromossomos dicêntricos — onde houve quebra e fusão telomérica —, mas que não se convertem em danos nucleares, pois o reparo de DNA é altamente eficaz. A frequência de micronúcleos permanece muito baixa. A importância disso é avaliar o comportamento dessas células na presença do biomaterial, pois o objetivo é que ele induza osteogênese sem causar danos que possam, no futuro, originar um câncer, por exemplo. Analisamos sempre o risco-benefício do produto. Iniciamos esses estudos com superfícies e partículas de titânio e seguimos por vários derivados de nanohidroxiapatitas. Alguns biomateriais mostraram-se mais osteogênicos que outros, mas a maioria sem risco genotóxico, tanto em modelos in vitro, empregando diversas linhagens celulares, quanto em zebrafish, em ensaios de embriotoxicidade. Esses estudos validam a ação osteogênica do biomaterial e atestam sua segurança.

 

“O RENORBIO e o INCT-REGENERA foram decisivos para consolidar a biotecnologia no Nordeste e mostrar a força da ciência feita fora dos grandes centros.”

 

 

Ciência & CulturaComo membro da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), você participa de decisões estratégicas sobre biotecnologia no Brasil. Que desafios e responsabilidades envolvem atuar nessa interface entre ciência, ética e políticas públicas?

SRBM – Por razões pessoais, fiquei apenas dois anos na CTNBio, mas foi um período rico em conhecimento e responsabilidade. Cada decisão precisa ser tomada com base na legislação vigente e em dados científicos, o que exige atualização constante. As decisões impactam diretamente a forma como o país lida com biotecnologia na saúde humana e animal, agricultura, indústria e meio ambiente. Um dos maiores desafios é garantir que as avaliações sejam rigorosas, transparentes e acessíveis à sociedade. Outro ponto essencial é equilibrar o avanço científico com os princípios éticos que norteiam a pesquisa e sua aplicação. Estar nessa interface significa dialogar com diferentes setores, ouvir preocupações legítimas e contribuir para políticas públicas mais sólidas, sem desviar das atribuições da biossegurança de organismos geneticamente modificados.

 

Ciência & CulturaVocê também atuou ativamente em ações de inclusão e acessibilidade na universidade. Como essas pautas se conectam à ciência que você faz — e por que é importante que cientistas se engajem nelas?

SRBM – Elas não se conectam diretamente com a ciência que faço. Meu interesse pela inclusão nasceu com meu segundo filho, que tem Síndrome de Down, caracterizada pela presença de um cromossomo a mais no organismo. O cariótipo padrão do ser humano é de 46 cromossomos; na Síndrome de Down, são 47. O excesso de informação genética pode ocorrer por: i) simples trissomia; ii) translocação do cromossomo 14 com 21; iii) mosaicismo (presença dos dois cariótipos). Dentre os aspectos clínicos da síndrome, a redução da quantidade de neurônios, que leva à diminuição da capacidade cognitiva, é a mais estigmatizada pela sociedade, gerando exclusão. Outras deficiências também sofrem preconceito. A inclusão é uma questão social, não genética. Por isso, me associei à Associação Síndrome de Down do Estado do RN, tendo sido presidente e vice-presidente. Enfrentamos muitas dificuldades, mas a maior parte vem da sociedade, não da genética. A inclusão deve começar na família, continuar nas escolas e se expandir para toda a sociedade.

Em 2006, nasceu o projeto de extensão Síndrome de Down: da genética à inclusão, a arte da mobilização, que se estendeu a qualquer deficiência, buscando sensibilizar estudantes sobre a diversidade humana, gerando agentes multiplicadores. Levamos questionamentos à comunidade universitária por meio de esquetes teatrais, cordéis, vídeos, concursos e exposições de fotografia. A UFRN incorporou o tema, criando em 2010 a CAENE (Comissão Permanente de Apoio a Estudantes com Necessidades Especiais), transformada em Secretaria de Inclusão e Acessibilidade (SIA) em 2019. Hoje, há avanços visíveis, especialmente na conscientização docente e na quebra de barreiras atitudinais. A diversidade enriquece as discussões, amplia os olhares e gera soluções mais criativas. Como professora e cientista, acredito que temos o dever de lutar por ambientes equitativos, e não apenas por gênero ou etnia. O conhecimento não deve ser privilégio de poucos.

 

“Não deixem que a geografia ou o gênero ditem o tamanho dos seus sonhos: sonhar é poderoso e perseguir seus sonhos é realizá-los.”

 

Ciência & CulturaFale um pouco sobre sua rotina de mãe e pesquisadora. Como foi conciliar estas duas atividades?

SRBM – É uma rotina complexa, mas é preciso buscar equilíbrio. Não é simples ser mãe e pesquisadora, especialmente com um filho com deficiência, cuja demanda por terapias é maior. Com apenas 20 dias de vida, Edoardo já iniciou fisioterapia, exigindo logística intensa desde o início. Além disso, há a rotina diária: levar e buscar as crianças, organizar terapias, consultas médicas e atividades complementares. Por isso, é essencial planejar bem os momentos de trabalho e estudo.

Alguns pontos fundamentais para conciliar maternidade e pesquisa:
i) Rede de apoio: indispensável;
ii) Gestão do tempo: usar cada momento com foco e concentração;
iii) Flexibilidade no trabalho: essencial, pois um filho não escolhe quando adoecer;
iv) Remuneração justa: deveria ser significativamente maior para mulheres que acumulam funções profissionais e responsabilidades maternas.

 

Ciência & CulturaNa sua opinião, como o Nordeste brasileiro pode se fortalecer como polo de pesquisa em biotecnologia e ciências biomédicas? Que papel iniciativas como o INCT-REGENERA têm nesse processo?

SRBM – Segundo dados da USP (Biotecnologia no Brasil), em 2011 havia poucas empresas de base biotecnológica no Nordeste, concentradas em Pernambuco (10), Ceará e Rio Grande do Norte. Hoje, segundo a ONG Brasil-Biotec, a região conta com 26 empresas em cinco estados. Grande parte desse avanço está associada ao Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia do Nordeste – RENORBIO, criado em 2006. O RENORBIO, conceito 6 na CAPES, foi decisivo na formação de recursos humanos qualificados, fortalecimento de redes de pesquisa e criação de startups, consolidando a biotecnologia no Nordeste.

O INCT-REGENERA possibilitou integração com grupos de excelência em regeneração óssea, ampliou produção científica, formação de pesquisadores e visibilidade da ciência feita na região. Nosso grupo atua com análise de toxicidade genética, garantindo que produtos osteogênicos sejam eficazes e seguros. Um exemplo concreto: a startup Z-Safe, criada em 2022 por egressos do RENORBIO e apoiados pelo INCT-REGENERA, oferece soluções inovadoras para avaliação de toxicidade e segurança de novas moléculas, utilizando zebrafish como modelo experimental. Os recursos do INCT são estratégicos, permitindo iniciar projetos, atrair financiamentos e consolidar colaborações, mas ainda faltam investimentos robustos e contínuos, tanto locais quanto federais. Fortalecer programas como RENORBIO e INCT-REGENERA é estratégico para o Nordeste e para o desenvolvimento científico do país.

 

Ciência & CulturaQue conselhos você daria a meninas e jovens mulheres que desejam seguir carreira científica nas áreas de genética, biotecnologia ou saúde, especialmente fora dos grandes centros do país?

SRBM – O caminho nem sempre é fácil, mas é possível e necessário. Não deixem que geografia ou gênero determinem seus sonhos. Sonhar é poderoso e perseguir os sonhos é realizá-los. Procurem mentores, construam redes de apoio e ocupem os espaços que desejam. A ciência é colaborativa e precisa da visão, sensibilidade e força de mulheres de contextos diversos. Cada conquista feminina abre caminho para outras. Sigam firmes, com curiosidade, coragem e convicção de que pertencem ao espaço escolhido. Não há verdadeira democracia sem igualdade de gênero.

 

Ciência & Cultura © 2022 by SBPC is licensed under CC BY-SA 4.0  
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