A universidade brasileira ampliou e diversificou suas vagas, tornando seu acesso mais democrático.
A primeira universidade das Américas foi criada em 1538, na República Dominicana. A Universidade de São Domingos foi a pioneira e abriu caminho para outras, no Peru (1551) e no México (1553). Na América no Norte, a primeira universidade, Harvard, surgiu em 1636. No Brasil, esse início foi bem mais tardio. Embora já contasse com escolas superiores isoladas, desde 1808, como a Escola de Cirurgia da Bahia (1808) e a Faculdade de Direito de Olinda (1827), somente no século 20, o país fundou sua primeira universidade: a Universidade do Rio de Janeiro, criada em 1920, pelo Decreto n.º 14.343.
O ensino superior no Brasil não só demorou a surgir – como também, a se expandir. Até 2002, o país tinha apenas 45 universidades federais, concentradas, principalmente, nas regiões Sudeste e Sul. De acordo com dados do Censo da Educação Superior 2013, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), esse número elevou-se para 63, em 2014, com o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). Os 148 campi experimentaram um aumento para 321, no período, construídos principalmente em cidades de médio porte no interior do país, visando a desconcentração regional.
Com isso, entre 2003 e 2013, o percentual de crescimento das matrículas, nas regiões Nordeste e Norte, foi de 94% e 76%, respectivamente, segundo o relatório A democratização e expansão da educação superior no país 2003-2014 da Secretaria de Educação Superior (SESu). O documento também mostra um aumento de 86% nas matrículas nas universidades federais, no período. Além disso, as vagas nos cursos noturnos — que beneficiam os estudantes trabalhadores — subiram de 944.584 para 3,45 milhões.
“Com a implementação do programa Reuni, a partir de 2007, houve uma ampliação na oferta de vagas e cursos públicos, a diversificação dos turnos, com a criação de novos campi, Universidades e Institutos Federais. Se em 2007, havia 1,3 milhão de matriculados (cerca de 0,7% da população), em 2019 esse número saltou para 2,08 milhões (quase 1,0% da população brasileira)”, aponta Maria Angélica Pedra Minhoto, professora do Departamento de Educação da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenadora do Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciência).
Impacto
Essa expansão impactou, significativamente, as realidades locais. A instalação das universidades (e, consequentemente, de seus alunos), impactaram, positivamente, desde o mercado imobiliário e de materiais de construção, até o setor de serviços, como os de alimentação e lazer, impulsionando a ampliação de postos de trabalho variados, resultando em ganhos para as comunidades em que se essas instituições se instalaram. Além disso, a presença das universidades acarretou aumento da qualificação, que se refletiu no mercado de trabalho local, tanto pela contratação direta dos profissionais formados, como pela ocupação de outros postos de trabalho por pessoas melhor qualificadas.
“O estabelecimento dos campi nas periferias e interior do país contribuiu para democratizar o acesso das comunidades locais à vida e cultura universitárias.”
Houve também um impacto indireto, sentido através da formação universitária, no fortalecimento de uma consciência crítica e política, que resultou em atuações mais diversas na comunidade. “Isso inclui desde pessoas que fizeram cursos de extensão e passaram a ver com outros olhos aspectos da realidade brasileira, até egressos que assumem funções públicas em seus municípios, ou passam a atuar politicamente em organizações da sociedade civil de diversas ordens”, explica Marcelo Ximenes Aguiar Bizerril, professor da Faculdade UnB Planaltina da Universidade de Brasília (UnB). Professor há 17 anos em um dos primeiros campi dessa fase de expansão e interiorização do ensino superior público, tendo dirigido esse campus na periferia de Brasília por nove anos nas fases iniciais de sua implantação, Bizerril cita como exemplo o primeiro prefeito quilombola do país, no município de Cavalcante (GO), que é membro da comunidade Kalunga e egresso do curso de licenciatura em educação do campo, da UnB. (Figura 1)
Figura 1. Vilmar Kalunga, primeiro prefeito quilombola do país, do município de Cavalcante (GO), membro da comunidade Kalunga e egresso do curso de licenciatura em educação do campo da Universidade de Brasília (UnB)
(Foto: Arquivo Pessoal. Reprodução)
Ainda, o estabelecimento dos campi nas periferias e interior do país, contribuiu para democratizar o acesso das comunidades locais à vida e cultura universitárias. Nesse conceito, incluem-se o acesso às estruturas físicas como bibliotecas, laboratórios, auditórios, quadras esportivas, favorecendo o conhecimento e a assimilação dos valores intrínsecos da universidade pública, como a ciência, a cultura, a diversidade e a democracia. “Essa aproximação se deu por meio de projetos de extensão e pesquisa, mas também pela própria existência dos campi e sua tradição de livre acesso às suas dependências, e as múltiplas relações que vão se estabelecendo entre a comunidade local e a acadêmica”, aponta Bizerril.
Desafios
A construção das universidades na periferia e no interior do país facilitou o acesso, ao ensino superior público, para jovens e adultos que antes não tinham essa perspectiva em suas vidas. “A expansão das instituições de educação superior (IES) brasileiras foi muito importante, pois permitiu, além do ingresso de maior número de pessoas, a ampliação do acesso pela interiorização de novos campi e a criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs), o que trouxe para a educação superior pessoas que não poderiam ter se deslocado para estudar longe do seu domicílio”, afirma Gladys Beatriz Barreyro, professora na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP). A pesquisadora também aponta que se, por um lado, essa ampliação foi muito essencial, por outro ela ainda foi insuficiente.
O número de vagas nas universidade e IES cresceu, mas não acompanhou a necessidade real da população brasileira – especialmente a de baixa renda. A demanda continua sendo maior do que a expansão trazida pelo Reuni. “A expansão do ensino privado é astronomicamente superior do que das universidades públicas e isso acarreta equidade e oportunidade de acesso ao estudante que deseja ingressar na universidade”, explica Maria das Graças Gonçalves Vieira Guerra, professora do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). “É preciso uma política pública de reestruturação curricular mais radical, capaz de atingir um maior contingente da população na idade de escolarização universitária”, defende a pesquisadora.
“As cotas para negros, indígenas e estudantes do ensino público, modificou drasticamente o perfil da comunidade estudantil universitária, diversificando-a e tornando-a mais próxima ao que é o Brasil de fato.”
Além disso, esse ciclo de expansão parece ter se esgotado nos últimos anos e o número de matrículas públicas tem encolhido visivelmente. “Em 1995, o Brasil tinha por volta de 670 mil matriculados em universidades públicas. Só ultrapassamos a marca de um milhão de matriculados no ano de 2002. Em termos de proporção de matrículas sobre a população do país, esses números não representam nem 0,5%”, ressalta Minhoto. A pesquisadora também aponta que a distribuição de matrículas no ensino superior, entre as diferentes regiões do país, ainda é desigual. “No Sul há o maior percentual de matriculados e no Nordeste, o menor. Essa realidade não ajuda a combater as históricas desigualdades entre as diferentes regiões. Por isso, a política de expansão e interiorização da Educação Superior é estratégica e seu planejamento deve ser retomado”, enfatiza.
Diversidade
A expansão das universidades trouxe para o debate a questão da diversidade. Além de aumentar o número de vagas, o objetivo era trazer para a educação superior os grupos historicamente excluídos: pobres, negros, indígenas, filhos de pais com pouca e/ou nenhuma escolaridade e estudantes das escolas públicas. Assim, se no início dos anos 1990, oito entre 10 alunos eram brancos, hoje essa proporção caiu para seis entre 10 estudantes, segundo o Mapa do Ensino Superior no Brasil 2022, elaborado pelo Instituto Semesp. (Figura 2)
Figura 2. Expansão das universidade aumentou o número de vagas e trouxe para a educação superior os grupos historicamente excluídos: pobres, negros, indígenas, filhos de pais com pouca e/ou nenhuma escolaridade e estudantes das escolas públicas.
(Foto: Agência Brasil/ Valter Campanato. Reprodução)
Entre as políticas de inclusão no ensino superior, a Lei de Cotas certamente foi a que teve um dos maiores impactos na mudança do perfil do estudante, já em seu primeiro ano de implantação, em 2013. “Há uma ampliação evidente em termos de diversidade étnico-racial, de 2013 para 2019, refletindo o impacto da política de cotas na mudança do perfil dos estudantes”, afirma Minhoto.
As cotas para negros, indígenas e estudantes do ensino público, modificou drasticamente o perfil da comunidade estudantil universitária, diversificando-a e tornando-a mais próxima ao que é o Brasil de fato, e, ao mesmo tempo, distanciando-a da elite (classe média e alta), que tradicionalmente monopolizava os espaços das IES públicas. Em diversos espaços da educação superior, programas de ação afirmativa tiveram êxito, ao abrir vagas públicas para segmentos que antes eram excluídos ou sub-representados. “Percebíamos que as universidades públicas eram do Estado, mas não se destinavam ao povo. Vagas em universidades públicas de melhor qualidade, e nos cursos de maior prestígio social, eram (e ainda são, em grande medida, apesar das políticas de ações afirmativas compensatórias) destinadas quase que, exclusivamente, a uma minoria branca e de classe dominante da sociedade”, ressalta Guerra.
Assim, em uma década, as cotas foram capazes de incluir, na Educação Superior, estudantes pobres, negros, indígenas e provenientes de escolas públicas em uma proporção inédita no país. A maioria desses estudantes representa a primeira geração de suas famílias a ter acesso à educação superior. “Os cotistas têm apresentado um desempenho acadêmico similar ao dos não cotistas, no Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) (ver Relatório do SoU_Ciência), além de se evadirem proporcionalmente menos. Esse cenário, aliado ao fato de que o salário é em média 2,5 vezes maior entre os brasileiros portadores de diploma superior do que entre os que possuem diploma de nível médio, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), nos dá a dimensão do impacto promovido por essa política no combate às desigualdades e na promoção da mobilidade social no país”, aponta Minhoto. “Essas informações nos permitem assegurar que as políticas afirmativas e de inclusão social promoveram uma espécie de revolução silenciosa no país”, termina.
“Esse seria o momento de retomar a expansão universitária, criando estruturas para acolher essa diversidade de alunos e caminhando rumo a uma universidade cidadã, que reconhece e deseja que os direitos das pessoas estejam presentes e ativos, dentro e fora de seus limites.”
Pesquisas sobre o perfil dos estudantes, associadas ao desempenho acadêmico, bem como o acompanhamento de egressos, sua empregabilidade e aumento da renda familiar, vem sendo feitas e mostram resultados amplamente favoráveis à manutenção dessas políticas, no país. Além disso, outros aspectos, que dizem respeito a mudanças sociais a partir da valorização do conhecimento, do estudo e da formação intelectual em classes sociais, mostram a importância das ações afirmativas. “Isso certamente forçou a universidade a lidar com temas que eram gritantes na sociedade, mas minimizados no dia a dia das universidades como o racismo, a LGBTfobia, a acessibilidade, a inclusão, as doenças mentais, o suicídio, o acesso digital, a assistência estudantil, e a própria revisão da prática pedagógica no ensino superior”, aponta Bizerril.
Democratização
O aumento de vagas e campi implicou na contratação de um grande contingente de servidores públicos, como docentes ou técnicos administrativos. Essa ampliação de vagas, para atuação profissional no ensino superior público, democratizou o acesso ao trabalho nas universidades e ajudou a mudar o perfil dos docentes e técnicos. No caso dos docentes, perfis mais diversificados foram contratados, abalando a hegemonia dos pesquisadores de carreira, que saíam do doutorado ou pós-doutorado, direto para as universidades, muitas vezes, para seguir atuando no mesmo grupo de pesquisa no qual foi formado. Já no caso dos técnicos, houve uma ampliação de contratação, para perfis profissionais até então inexistentes nas universidades, atraindo pessoal mais escolarizado e com outras perspectivas profissionais. “Esse aumento na diversidade docente resultou em um fortalecimento do debate interno a respeito do conhecimento transdisciplinar e das missões e papéis da universidade pública em relação à sociedade. E a diversidade de profissionais técnicos fortaleceu debates internos a respeito dos direitos desse segmento e de seu papel no funcionamento da universidade, como na gestão e no acesso à pós-graduação”, afirma Bizerril. (Figura 3)
Figura 3. Altaci Rubim foi a primeira professora indígena da UnB. O aumento de vagas e campi implicou na contratação de um grande contingente de servidores públicos, como docentes ou técnicos administrativos
(Foto: Carlos Vieira/ CB. Reprodução)
Também é interessante avaliar o impacto da expansão das universidades públicas, através da inserção de seus egressos. Um estudo de caso recente mostrou que os alunos egressos da Unifesp, de diferentes origens socioeconômicas, têm conseguido exercer, de forma equitativa, as suas atividades profissionais na área em que se formaram. Ainda é preciso superar desafios à dificuldade para se empregar, à faixa de renda e à continuidade dos estudos, mas isso já demonstra os efeitos da mudança no perfil de egressos, na sociedade e no mercado de trabalho. “A educação apenas não resolve os problemas sociais e são necessárias outras políticas complementárias. Reserva de vagas segundo critérios sociais em concursos públicos, assim como incentivos às empresas que contratem ex-cotistas ou ex-bolsistas, poderiam ajudar na inclusão dos estudantes no mercado de trabalho”, enfatiza Barreyro.
Diante disso, esse seria o momento de retomar a expansão universitária, criando estruturas para acolher essa diversidade de alunos e caminhando rumo a uma universidade cidadã, que reconhece e deseja que os direitos das pessoas estejam presentes e ativos, dentro e fora de seus limites. “A IES precisa ser criativa e eficiente, mantendo sua qualidade, tanto para a sociedade abastada e como para a sem recursos. Para acolher a massa de excluídos e ter um papel relevante na integração social desses sujeitos, para produzir conhecimento local-regional – internacional e ter relevância nos projetos de desenvolvimento nacional, para contribuir para superar esse triste momento de barbárie cultural, desmoralização ética, retrocesso social e desesperança política, a IES precisa se recriar de fato como ‘lócus’ social para todos, com políticas públicas para ampliação que garantam condições de acesso e permanência”, defende Guerra.
Desta forma, é necessário retomar o processo de expansão das universidades, dessa vez fazendo os ajustes a partir das lições aprendidas e das múltiplas experiências vividas em todos os cantos do país. “Para isso, é importante valorizar que essas histórias sejam contadas, revistas, discutidas e socializadas; é fundamental criar espaços de diálogo dos atores que viveram essas experiências para tirarmos as lições necessárias e acertarmos mais nas próximas tentativas”, aponta Bizerril.