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De camponesa tcheca à cientista brasileira pioneira da agricultura sustentável

Johanna Döbereiner, com olhar sereno, curiosidade e hábito de observar a natureza, revolucionou a agricultura brasileira e está presente em diferentes listas de cientistas mais importantes do Brasil.

 

Nascida Johanna Liesbeth Kubelka, em 1924 em Aussig, na então Primeira República da Checoslováquia (atual República Tcheca), contrariou as convenções de gênero da época e, movida pelo amor por plantas e pela terra, ingressou em 1947 na Universidade de Munique, onde cursou Agronomia, área que era pouco receptiva a mulheres. Antes disso, trabalhou como camponesa, inicialmente numa pequena propriedade rural e, depois, numa fazenda maior, de produção de variedades melhoradas de trigo.

Sua monografia de conclusão do curso de Agronomia, que apresentou em 1950, intitulava-se “Bactérias na fixação assimbiótica de nitrogênio e a possibilidade de seu aproveitamento na agricultura”. Na universidade, conheceu o estudante de Medicina Veterinária Jürgen Döbereiner, com quem se casou em 1950, assumindo seu sobrenome. Neste mesmo ano, e com os diplomas em mãos, Johanna e Jürgen decidiram imigrar para o Brasil, onde seu pai Paul e seu irmão Werner já viviam desde 1946.

 

A agrônoma tcheca se encanta com a flora brasileira

Ao chegar no Rio de Janeiro, Johanna Döbereiner ficou encantada com o vigor de nossa flora. Foi trabalhar no Departamento de Microbiologia, do antigo Instituto de Ecologia e Experimentação Agrícola do Serviço Nacional de Pesquisas Agronômicas, localizado no município de Seropédica, no Rio de Janeiro.

Em entrevista concedida a Carlos Chagas Filho, em 1983, e publicada no livro Cientistas do Brasil – Depoimentos, Johanna Döbereiner conta, de forma bem-humorada, como foi sua entrevista com o agrônomo Álvaro Barcelos Fagundes, na época, diretor do SNPA, do Ministério da Agricultura. Afirmando que naquela época, só se conseguia alguma coisa através de uma recomendação, relata que Álvaro Fagundes lhe perguntou se ela era especialista, pois só tinha verba para contratar para este cargo. Após lhe pedir duas ou três vezes para estudar e voltar dali a uns 15 dias, ela lhe respondeu: “Se o senhor quiser, posso considerar que tenho uma certa especialização, pois fiz a minha monografia de conclusão de curso num assunto específico. Mas mesmo se o senhor não me contratar, eu queria trabalhar, mesmo sem ganhar nada.”

 

“Os trabalhos iniciais de Johanna Döbereiner na Embrapa, com microrganismos do solo, ocorreram em um período no qual o manejo agronômico do solo era realizado com total ignorância de sua porção biológica, sendo que o papel das bactérias e dos fungos era limitado à Fitopatologia.”

 

Foi contratada para assistente de pesquisa de Álvaro Fagundes e em março de 1951 passou a trabalhar no Laboratório de Microbiologia de Solos, do então Instituto de Ecologia e Experimentação Agrícola do SNPA. A entidade posteriormente se transformaria na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), onde Johanna Döbereiner trabalharia até o final de sua vida. Em 1951, ela e Álvaro Fagundes assinaram o trabalho “Influência da cobertura do solo sobre a flora microbiana” — o primeiro artigo científico de Johanna Döbereiner — que foi apresentado em reunião da Sociedade Brasileira de Ciência do Solo, no Recife.

 

Formar novos pesquisadores e trabalhar pela sustentabilidade na agricultura brasileira

Em uma época em que a maioria dos pesquisadores na Agronomia não acreditavam que a fixação biológica de nitrogênio (FBN) poderia competir com os fertilizantes minerais e muitos produtores rurais gastavam milhares de dólares com a fertilização mineral, Johanna Döbereiner chocou a comunidade científica com a ideia de que, com a introdução de bactérias fixadoras de nitrogênio, as plantas poderiam produzir seu próprio adubo. Em muitas ocasiões chegou a ser motivo de chacota em eventos científicos, por parte de pesquisadores e agrônomos, e em salas de aula, por parte de estudantes. (Figura 1)

 
Figura 1. A Fixação Biológica de Nitrogênio, descoberta por Döbereiner, é um processo natural de associações de plantas com bactérias diazotróficas.
(Foto: Ana Lucia Ferreira/Embrapa. Reprodução)

 

“Os trabalhos iniciais de Johanna Döbereiner na Embrapa, com microrganismos do solo, ocorreram em um período no qual o manejo agronômico do solo era realizado com total ignorância de sua porção biológica, sendo que o papel das bactérias e dos fungos era limitado à Fitopatologia”, afirma Márcia Maria Rosa, professora do Departamento de Recursos Naturais e Proteção Ambiental da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E acrescenta: “a agricultura era exercida majoritariamente por homens, com pouco espaço de destaque para mulheres”. Há mais 20 anos, Márcia Rosa desenvolve atividades de ensino e pesquisa com microrganismos de solo e interações com plantas, na promoção de crescimento vegetal.

 

“Como pesquisadora pioneira, ela não apenas conduziu investigações inovadoras, mas também formou uma geração de cientistas que continuaram e expandiram suas pesquisas.”

 

Baseado no processo de FBN, o programa brasileiro de melhoramento da soja, iniciado em 1964, desenvolveu-se no sentido inverso ao dos Estados Unidos, que era baseado sobretudo no uso intensivo de adubos nitrogenados. Em entrevista à Revista Veja, em agosto de 1996, Johanna Döbereiner afirmou que na década de 1960, ir contra a adubação química era quase um sacrilégio, visto que os fertilizantes minerais vinham sendo responsáveis por um aumento exponencial da produtividade das lavouras. Ela estudou a fundo o uso de bactérias para impulsionar a fixação de nitrogênio na soja e a aplicação prática da técnica permitiu que o Brasil eliminasse o uso de adubos nitrogenados, representando uma economia anual de mais de 2 bilhões de dólares – sem falar na sustentabilidade, já que a tecnologia não gera passivos ambientais, como poluição de rios e de solos. (Figura 2)


Figura 2. Johanna Döbereiner conquistou a comunidade científica brasileira com suas pesquisas.
(Fonte: Faperj. Reprodução)

 

Para Ieda de Carvalho Mendes, pesquisadora da Embrapa Cerrados desde 1989, é possível estabelecer uma conexão direta entre as pesquisas com FBN em soja e Johanna Döbereiner por meio do seu incrível legado na capacitação de pesquisadores. Com pesquisas com ênfase em Microbiologia do Solo, principalmente nos temas fixação biológica de nitrogênio, ecologia microbiana e bioindicadores de qualidade do solo, Ieda Mendes acrescenta: “é simplesmente formidável o poder da Dra. Johanna de formar várias gerações de cientistas. Como pesquisadora pioneira, ela não apenas conduziu investigações inovadoras, mas também formou uma geração de cientistas que continuaram e expandiram suas pesquisas.” A pesquisadora aponta que, na região dos Cerrados, seus ex-orientandos, desempenharam papéis fundamentais na aplicação e disseminação dos conhecimentos adquiridos sob sua orientação. “Esses pesquisadores levaram adiante o legado de Johanna Döbereiner, realizando estudos que confirmaram a eficácia da FBN em soja e a importância de sua utilização em substituição à adubação nitrogenada”.

Também no Semiárido brasileiro as pesquisas de Johanna Döbereiner foram de grande importância. Conforme aponta Magna Maria Macedo Nunes Costa, pesquisadora da Embrapa Algodão, em Campina Grande (PB), o desenvolvimento das pesquisas de Johanna Döbereiner com bactérias diazotróficas possibilitou a melhoria das propriedades químicas do solo no Semiárido. A pesquisadora explica que essas bactérias, que vivem sozinhas no solo ou em associação com plantas da família das leguminosas, capturam o N2 da atmosfera, que se encontra em uma forma indisponível às raízes, e o transforma numa forma assimilável pelas plantas. “Isso possibilita a disponibilização do N, fato muito importante para os cultivos do Semiárido, uma vez que muitos solos dessa região são de baixa fertilidade natural”.

 

“Johanna Döbereiner é uma grande referência feminina nas Ciências Agrárias, diante da importância que o seu trabalho teve para a pesquisa em microbiologia agrícola no país.”

 

Não apenas pesquisadores reconhecem a grande importância de Johanna Döbereiner. Franquiele Bonilha, engenheira florestal e extensionista rural na Emater-RS/Ascar (Associação Rio-Grandense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural), aponta que Johanna Döbereiner “foi uma visionária em seu tempo. Ela e o professor João Ruy Jardim Freire (1923-2015), coordenador da Seção de Bacteriologia do IPAGRO (antigo Instituto de Pesquisas Agronômicas, no Rio Grande do Sul) fizeram parte dos precursores da pesquisa em FBN no Brasil, e foram muito mais que pesquisadores: trabalharam ativamente na divulgação, no desenvolvimento da pesquisa no território nacional e na busca por recursos para custear as pesquisas na área”. (Figura 3)


Figura 3. Johanna Döbereiner e Prof. Ruy Jardim Freire, no I Simpósio Latino-americano de Microbiologia do Solo.
(Foto: Arquivo pessoal do professor Enilson Saccol de Sá, orientado do professor João Ruy Jardim Freire e orientador de pós-graduação da Dra. Franquiele Bonilha, que cedeu esta foto)

 

Doutora em Ciência do Solo, na área de concentração Microbiologia do Solo, com ênfase em interação microrganismo-planta, Franquiele Bonilha defendeu sua tese sobre o uso de bactérias rizosféricas como promotoras de crescimento vegetal no desenvolvimento inicial de plantas de acácia-negra. Para ela, “Johanna Döbereiner é uma grande referência feminina nas Ciências Agrárias, diante da importância que o seu trabalho teve para a pesquisa em microbiologia agrícola no país. Ainda há muito preconceito de gênero no campo. No tempo dela, os desafios eram ainda maiores, e mesmo assim ela se destacou, derrubando qualquer dúvida sobre a sua capacidade”.

 

Capa. Com curiosidade e persistência, Johanna Döbereiner deixou uma marca indelével na ciência brasileira
(Foto: Embrapa. Reprodução)
Leonor Assad

Leonor Assad

Leonor Assad é engenheira agrônoma, doutora em Ciência do Solo, especialista em divulgação científica, professora titular aposentada da Universidade Federal de São Carlos, e apaixonada por trabalhar e escrever sobre Ciência.
Leonor Assad é engenheira agrônoma, doutora em Ciência do Solo, especialista em divulgação científica, professora titular aposentada da Universidade Federal de São Carlos, e apaixonada por trabalhar e escrever sobre Ciência.
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