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Elefantes na sala

Como as informações falsas veiculadas em mídias sociais, aplicativos de mensagem e portais online afetam o currículo e o ensino nas escolas.

 

Sete em cada dez estudantes brasileiros de 15 anos não conseguem distinguir um fato de uma opinião, segundo um relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de 2021. Se comparado à média de todos os países analisados pela OCDE, que é de cinco em cada dez estudantes, os números do Brasil não são nada animadores.

O fluxo informacional a que somos expostos em nosso cotidiano é muito maior do que no passado. Segundo Tathiane Milaré, professora do Departamento de Ciências da Natureza, Matemática e Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), essa nova realidade muda significativamente o perfil do aluno atual em relação ao de um aluno de 20 anos atrás: “A bagagem de informações dos estudantes não se restringe mais só ao seu círculo social ou às suas experiências individuais; muitas ideias que os estudantes trazem para a sala de aula são compartilhadas nas redes sociais, difundidas de uma forma muito mais ampla e rápida. Os estudantes estão o tempo todo recebendo informações, e isso vale para todas as idades. Em uma pesquisa que tenho desenvolvido com os anos iniciais, percebemos que as crianças, quando falam sobre seu cotidiano, mencionam vídeos que assistem na internet”, relata a pesquisadora.

Crianças e jovens hoje em dia têm acesso praticamente irrestrito a todo tipo de conteúdo em plataformas de vídeos como o TikTok, por exemplo, onde divulgadores científicos sérios e propagadores de notícias falsas são colocados lado a lado —  não raro utilizando-se de linguagens e recursos audiovisuais parecidos. O contato com notícias falsas pode se dar ou por meio de buscas autônomas dos jovens na internet, ou pelo contato com familiares e pessoas próximas que as consome cotidianamente e as dissemina. Combater essa informação que foi coletada por conta própria ou transmitida por familiares é tarefa inglória.

 

“A bagagem de informações dos estudantes não se restringe mais só ao seu círculo social ou às suas experiências individuais; muitas ideias que os estudantes trazem para a sala de aula são compartilhadas nas redes sociais, difundidas de uma forma muito mais ampla e rápida.”

 

Fernando Bitencourt Lopes, professor de história do ensino fundamental da Escola EMEF/EJA Padre José Narciso Vieira Ehrenberg (Campinas-SP), revela que combater notícias falsas gera um clima de animosidade em sala de aula, pois o estudante, na maioria dos casos, não se mostra disposto a mudar a opinião já formada sobre determinado tema: “Quando nós, professores, trazemos temas os quais esses alunos e alunas já têm um preconceito formado, o processo de ensino/aprendizagem se torna muito mais complexo, pois a figura do professor, da professora e seu trabalho são desacreditados em sua totalidade… Como lidar com essa avalanche de desinformação e animosidade (pois quem desmascara a inverdade muitas vezes é visto como mentiroso ou inimigo), se tornou tarefa incorporada e transversal ao trabalho de todos nós professores e professoras”.

 

Um trabalho em equipe

Fernando Lopes é professor de história há dez anos. A experiência em sala de aula o levou a compreender que o melhor caminho para combater as informações falsas é fomentar o debate em sala de aula. Não basta refutar a informação errada do aluno, é preciso fazê-lo pensar sobre ela: “Professores e professoras que tentam entrar em choque e desmascarar a desinformação muitas vezes acabam por reforçar a posição do aluno, da aluna, em uma disputa em que quanto mais um lado ataca o outro mais endurece. Tento sempre já partir do pressuposto da problematização. A intenção é discutir a ponto deles perceberem, na discussão do tema, as contradições da desinformação. Isso tende a diminuir o tempo para o trabalho com o conteúdo tradicional. Muitas vezes o professor tem que estar preparado para mudar completamente a aula e dar espaço a uma questão inesperada que surgiu e precisa ser trabalhada naquele momento”.

Tathiane Milaré também acredita que o caminho para lidar com as informações falsas em sala de aula passa por debater essas informações em seus mais diferentes aspectos, em um processo participativo com os alunos: “Se o professor simplesmente rebate a ideia equivocada, mesmo que explique o porquê, os efeitos são limitados. Já sabemos que abordagens de transmissão e recepção não são efetivas. É necessário estimular a reflexão crítica dos estudantes, o que não é uma tarefa fácil. Se um estudante, por exemplo, tem a ideia de que tomar água com sal todos os dias previne doenças (como é difundido em alguns conteúdos digitais), ao invés de simplesmente dizer que isso é uma mentira, podemos discutir/problematizar: mas o que é sal? O organismo precisa de sal? Que doenças se pretende prevenir? Quais são as causas dessas doenças? O que acontece com o organismo quando o sal é absorvido? Qual é a relação entre consumo do sal e a hipertensão? Qual é a relação do sal com o soro fisiológico? Quem, onde e por que estimula as pessoas a beberem água com sal? É possível levantar muitos questionamentos passíveis de serem investigados. Os estudantes podem ser instigados com essas questões, o que os levam ao engajamento na busca das respostas”.

 

“Na atualidade, as fake news vêm sendo divulgadas não com uma totalidade de mentiras, mas partem de pressupostos legais, legítimos ou verdadeiros que deturpam seu significado e sugerem ações ou desafios no sentido da disseminação da desinformação.”

 

É importante também estimular o letramento digital, ou seja, introduzir o aluno a um conjunto de competências que o permitam decodificar melhor os conteúdos que estão consumindo nas redes digitais, avaliando se eles são confiáveis ou não. Fernando Lopes acredita que é preciso um esforço contínuo nesse sentido, uma vez que a linguagem e as estratégias retóricas das notícias falsas estão em constante evolução, tornando-se cada vez mais sofisticadas: “Na atualidade, as fake news vêm sendo divulgadas não com uma totalidade de mentiras, mas partem de pressupostos legais, legítimos ou verdadeiros e deturpam seu significado e sugerem ações ou desafios no sentido da disseminação da desinformação. Tudo isso em espaço de um vídeo de TikTok”.

 

Disputa pelo currículo

É importante lembrar que as notícias falsas que circulam nas redes e na sociedade são parte de um problema maior: movimentos políticos as utilizam como instrumentos de persuasão, tentando influenciar parcela da população a apoiar suas pautas e posicionar-se de determinada forma em relação a alguns temas. No Brasil, movimentos e partidos conservadores de extrema-direita têm sido responsáveis pela disseminação de notícias falsas sobre o conteúdo programático das escolas. Uma das mais famosas foi a notícia falsa sobre um suposto material didático que estaria induzindo os jovens a práticas homossexuais. Sob a alcunha de “kit gay”, o material foi criticado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro em período de campanha eleitoral. Tratava-se, no entanto, de uma informação falsa. O material pedagógico destinava-se à educação sexual e combate à homofobia e não chegou a ser distribuído nas escolas. O objetivo dos disseminadores dessa notícia falsa era tão somente defender pautas de costumes caras ao movimento de extrema-direita, como a intolerância à diversidade sexual.

Mariângela Bairros, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do Grupo de Estudos e Políticas Públicas para o Ensino Médio (GEPPEM), acredita que esse tipo de estratégia pode influenciar a opinião pública a tolerar com mais facilidade alterações no currículo escolar que empobrecem a formação dos alunos: “Um exemplo importante é o da reforma do ensino médio. A lei 13.415 de 2017 foi implementada durante o governo Bolsonaro e inaugurou um grande retrocesso no ensino médio, etapa por onde passam os jovens para concluir a última etapa da educação básica. As disciplinas de sociologia, filosofia e artes desapareceram do currículo — pior, passaram a ser perseguidas, empobrecendo a formação dos jovens. Filosofia e Sociologia perderam 70% da sua carga horária, enquanto História e Geografia diminuíram 50%.”

 

“Projetos de lei em câmaras municipais e no congresso nacional, cotidianamente expressam o desejo e materialidade de calar os professores, de dizer o que pode e não pode ser dito.”

 

Na esteira do retrocesso, vimos florescer recentemente o movimento Escola Sem Partido. Criado em 2003 pelo procurador do Estado de São Paulo, Miguel Nagib, e popularizado em 2014, o movimento alegava que professores utilizavam-se de diversos conteúdos do currículo escolar para promover pautas de movimentos políticos de esquerda, em uma tentativa de “doutrinar” os estudantes. Após anos de adesão tímida, o movimento ganhou tração devido à divulgação de políticos de extrema-direita — como o deputado estadual Flávio Bolsonaro — que apresentaram projetos de lei com o intuito de censurar e perseguir professores. Nenhum projeto dessa natureza foi aprovado, mas as ideias conquistaram a opinião de parte da sociedade mais conservadora, que passou a assediar professores para alterar ou omitir determinados quesitos do currículo. (Figura 1)


Figura 1. Professores protestam contra a Escola Sem Partido
(Reprodução)

 

Não é raro vermos reflexos desse movimento no dia a dia dos professores. Em outubro deste ano, uma professora de 51 anos da Escola Rural Boa União, na região metropolitana de Salvador, foi apedrejada por alunos em retaliação a um conteúdo sobre religiões de matriz africana. Conteúdos sobre a cultura afro-brasileira (especialmente os relacionados a religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé) são alvos frequentes da Escola Sem Partido, pois o movimento está associado a religiões neopentecostais que praticam a intolerância religiosa em relação a religiões de matriz africana. Nas redes sociais do movimento há um documento disponível para download que os pais podem imprimir, preencher com seus dados e apresentar às escolas em uma tentativa de evitar que seus filhos tenham acesso a esse conteúdo. (Figura 2)


Figura 2. Documento disponível para download para os pais apresentarem às escolas em uma tentativa de evitar que os filhos tenham acesso a acesso a conteúdos considerados “ofensivos”.
(Reprodução)

 

Ações como essas ameaçam o caráter democrático das escolas e a pluralidade de ideias. Apesar da derrota da extrema-direita nas últimas eleições, Mariângela Barros é cética em relação a um possível arrefecimento desse movimento nos próximos anos: “O projeto Escola Sem Partido ainda vive. Projetos de lei em câmaras municipais, no congresso nacional, expressam cotidianamente o desejo e materialidade de calar os professores, de dizer o que pode e não pode ser dito. Chegamos ao absurdo de um professor de sociologia, ao falar de Marx ou sobre agrotóxicos, estar doutrinando. Perdemos a razão. As forças de direita e extrema-direita tomam os espaços escolares realizando, aí sim, a famigerada doutrinação”.

Para a pesquisadora, o currículo escolar está sempre sob disputa, de modo que é preciso uma luta contínua não só para avançar, mas para assegurar que conquistas antigas não sejam perdidas: “O currículo, cerne da educação escolar, é uma construção histórica. Ele representa as forças sociais, políticas e ideológicas em disputa na sociedade, sendo expressão dos avanços e recuos, inclusive mostrando uma face conservadora e/ou progressista”, conclui.

 

Capa. Informações falsas divulgadas em redes sociais, aplicativos de mensagens e portais online afetam o currículo e a educação nas escolas.
(Foto: EBC/ Arquivo. Reprodução)
Paula Gomes

Paula Gomes

Paula Gomes é escritora, doutora em cinema e especialista em divulgação científica.
Paula Gomes é escritora, doutora em cinema e especialista em divulgação científica.
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