No “capitalismo de plataforma” e “capitalismo de vigilância”, a produção de valor é centrada nas plataformas digitais sediadas no Norte Global
Vivemos em uma era em que plataformas digitais, redes sociais, celulares, jogos online e até palavras e sentimentos, como “fascismo” e “ódio ao diferente”, estão moldando uma nova fase do capitalismo. Após a predominância do capitalismo financeiro entre os anos 1990 e o início do século 21, um modelo centrado na tecnologia e na produção massiva de desinformação emerge, transformando a forma como riquezas são acumuladas e a política é disputada. Neste cenário, sentimentos extremos e narrativas fabricadas em escala industrial alimentam um ciclo de polarização, enquanto mega-grupos econômicos prosperam.
“Ao falar de desinformação e discurso de ódio, usamos as categorias ‘capitalismo de plataforma’ e ‘capitalismo de vigilância’”, explica Tathiana Chicarino, cientista política e coordenadora do Curso de Graduação em Sociologia e Política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). “Nesse modelo, a produção de valor está centrada em plataformas digitais, principalmente no ‘Norte global’, como os Estados Unidos. A fonte desse valor são os nossos dados pessoais. Passamos muito tempo nessas plataformas, especialmente nas redes sociais, e deixamos rastros digitais – nossos gostos, afetos, preferências políticas e culturais.”
Essa massa de dados, conhecida como Big Data, não apenas reflete valores e comportamentos, mas também alimenta um mercado altamente lucrativo. “Não precisamos pagar para estar nas redes sociais, mas a monetização ocorre por meio desses dados”, aponta Tathiana Chicarino. No capitalismo de vigilância, esses dados são utilizados para finalidades que vão desde estratégias de marketing até práticas mais obscuras e não especificadas.
“Não se trata de um conteúdo específico, mas da industrialização da desinformação, que envolve estratégias e táticas bem definidas.”
Embora tenha similaridades com o capitalismo tradicional, o capitalismo de dados traz peculiaridades marcantes. “Estamos sempre sendo monitorados”, alerta a pesquisadora. “Aplicativos de inteligência artificial, reconhecimento facial e monitoramento de saúde capturam nossas percepções e comportamentos.” A desinformação, por sua vez, sempre existiu, mas hoje opera em um ecossistema diferente, sinérgico às plataformas digitais. “Se olharmos para o nazismo, por exemplo, falamos de uma era em que os meios de comunicação de massa emergiam – rádio, televisão e sistemas centralizados. Era uma configuração piramidal, com poucos emissores e muitos receptores”, analisa.
Nesse ecossistema, a desinformação e o discurso de ódio se espalham por meio de fluxos capilarizados. “Atores humanos e não humanos, como robôs, além de spin doctors – figuras influentes nas redes –, desempenham papéis essenciais na disseminação dessas narrativas”, explica a pesquisadora. A combinação de tecnologia, dados e desinformação caracteriza uma nova fase do capitalismo, em que cada rastro digital contribui para um ciclo de vigilância, controle e polarização global.
A crise de legitimidade da ciência e da imprensa
A extrema-direita adota a desinformação como parte de sua estratégia global, não apenas no Brasil, mas em todo o Ocidente. “Eles operam nesse novo sistema de mídia, onde as autoridades tradicionais que legitimam um discurso — como universidades, ciência e imprensa — perdem força. Nesse contexto, a extrema-direita encontra uma oportunidade relevante para agir. Enquanto a esquerda e o campo progressista cometem [desinformação] ocasionalmente, para a extrema-direita, ela é intrínseca e indissociável. Não se trata de um conteúdo específico, mas da industrialização da desinformação, que envolve estratégias e táticas bem definidas”, analisa Tathiana Chicarino.
Especialista em fascismos, Demian Mello, professor de História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF), concorda com a visão. Ele aponta a convergência entre o discurso de figuras da extrema-direita, como o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) e o entorno político do ex-presidente Jair Bolsonaro, com estratégias militares. “A política é tratada como guerra, onde se ataca os adversários continuamente, sem recuar, utilizando cortinas de fumaça discursivas. O militarismo, nesse caso, é uma visão estratégica da política”, explica Mello, que é autor de livros e artigos sobre a direita extrema no Brasil. Em 2014, ele escreveu um capítulo para o relatório da Comissão Nacional da Verdade sobre o apoio mútuo entre a ditadura militar de 1964 e empresas.
Um aspecto pouco explorado da extrema-direita global é o militarismo como ideologia, observa Jorge Oliveira Rodrigues, pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). “Não se trata apenas da relação com as forças armadas, mas da valorização de certos princípios, como hierarquia, disciplina, mando e obediência. Esses elementos, combinados ao masculinismo do soldado-herói, parecem ser uma base comum que explica a similaridade nas comunicações da extrema-direita em diferentes contextos”, analisa. (Figura 1)
Figura 1. O então presidente Jair Bolsonaro realiza desfile de carros blindados e armamentos da Marinha do Brasil, na Esplanada dos Ministérios.
(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil. Reprodução)
Nesse cenário, valores humanistas são frequentemente colocados à prova para despertar reações emocionais. “Por que o ataque aos direitos humanos, por exemplo? Porque assim [a extrema-direita] se contrapõe às autoridades que têm legitimidade no debate crítico. A propaganda total, como no nazismo, impede o dissenso. Ela cria um consenso absoluto em torno de uma autoridade que não se legitima pelo espaço público e crítico, mas pela imposição. Desinformação e discurso de ódio andam juntos”, alerta Tathiana Chicarino. Ela também destaca que, enquanto empresas jornalísticas estão sujeitas ao escrutínio público, as redes sociais oferecem um espaço onde esse controle é inexistente.
Jorge Oliveira Rodrigues adiciona outra perspectiva ao debate. Ele lembra que as estratégias militares no campo comunicacional da extrema-direita antecedem o bolsonarismo. “O general Sérgio Augusto Avellar Coutinho e o livro “Orvil” — escrito para negar e reescrever a história da ditadura militar — já apontavam para isso. Ideias como o ‘marxismo cultural’ circulavam nas casernas antes de Olavo de Carvalho ganhar notoriedade. Ainda assim, é interessante perguntar: por que, em outras realidades da extrema-direita, o militarismo não ocupa o mesmo papel que tem no Brasil sob Bolsonaro, embora as estratégias de comunicação sigam caminhos semelhantes, como a camuflagem e a desinformação deliberada?”, questiona.
Ele também compara o cenário brasileiro com o dos Estados Unidos, onde o militarismo se manifesta por meio de milícias armadas e do armamentismo, mas de forma menos organizada do que no Brasil, onde as forças armadas possuem estratégias de comunicação mais estruturadas. “Não há evidências suficientes para afirmar que os militares informam diretamente a comunicação da extrema-direita, mas é claro que compartilham uma base ideológica comum”, conclui Rodrigues, doutorando em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas. (Figura 2)
Figura. O cenário brasileiro se assemelha ao norte-americano, onde o militarismo se manifesta pelas milícias e pelo armamentismo
(Foto: Acima: Tyler Merbler. Abaixo: Marcelo Camargo/Agência Brasil. Reprodução)
Algoritmos opacos
Tathiana Chicarino observa que, no capitalismo de plataforma e no capitalismo de vigilância, os mecanismos de monetização são pouco transparentes devido à lógica algorítmica que os rege. “Quais conteúdos são exibidos para mim? O que vou visualizar, em que ordem e com que frequência? As plataformas operam com algoritmos extremamente opacos. Não há curadoria ou moderação clara. Elas argumentam que são apenas empresas facilitadoras, conectando pessoas que produzem conteúdo. Mas, na prática, funcionam como espaços de comunicação e, por isso, precisam ser regulamentadas como tal. Esses espaços influenciam diretamente o debate público, determinando o que será discutido, como será abordado e quais temas receberão mais ênfase”, explica.
A pesquisadora ressalta que a combinação entre monetização e discursos sensacionalistas, que promovem superficialidade e achatamento do debate, captura mais a atenção das pessoas, fazendo com que passem mais tempo nas redes sociais. Nesse capitalismo de plataforma, a economia da atenção é essencial, considerando o enorme volume de informações circulando.
“Desinformação e discurso de ódio andam juntos.”
As plataformas utilizam trilhas algorítmicas para prender os usuários. “Quando acesso determinado conteúdo e passo um tempo considerável consumindo-o, [as plataformas] passam a me recomendar ainda mais conteúdos similares, incentivando que eu permaneça conectado por mais tempo. Essas trilhas se alinham com as etapas da radicalização, que incluem a naturalização, a familiarização e, finalmente, a radicalização. Assim, começo a me expor cada vez mais a conteúdos extremistas, de ódio e eliminação do outro. É como estar em um ambiente chamado de Câmara de Eco”, conclui.
Filtros bolha e videogames
Com base em um estudo do Instituto Reuters, o Aláfia Lab, um laboratório digital voltado para a transformação social e sediado na Bahia, destaca que os pesquisadores do Instituto Reuters, da Universidade de Oxford, definem o termo “câmara de eco” como uma analogia aos sons que reverberam em um invólucro oco, como sinos. Essa expressão descreve um espaço midiático fechado e interconectado, com potencial para amplificar mensagens ali compartilhadas enquanto as isola de conteúdos contraditórios.
O Aláfia Lab observa ainda que o termo “câmara de eco” é frequentemente confundido com os “filtros bolha”, que se referem à personalização de resultados em motores de busca, como o Google, e nos feeds das redes sociais. Esses filtros criam universos de informação individualizados, baseados nos gostos e preferências de cada usuário. O conceito foi cunhado pelo ativista e empresário Eli Pariser, que chamou a atenção para a influência dessas ferramentas na sociedade contemporânea.
“As plataformas operam com algoritmos extremamente opacos. Não há curadoria ou moderação clara.”
Há mais de 30 anos, extremistas violentos, terroristas e disseminadores de ódio têm explorado ativamente os videogames como ferramentas de propaganda, recrutamento e arrecadação de fundos. Um relatório da Rede de Investigação sobre Extremismo e Jogos (EGRN), vinculada ao Departamento de Estudos de Guerra do King’s College de Londres, analisou o uso de jogos online para espalhar desinformação e até recrutar militantes. A pesquisa abrangeu títulos que representam todo o espectro ideológico: extrema-direita, jihadismo, extrema-esquerda e outras formas de extremismo e ódio, incluindo referências a massacres escolares.
Segundo o relatório, a análise incluiu desde jogos autônomos simples, desenvolvidos para o Atari nos anos 1980, até mods sofisticados de alguns dos jogos mais populares da atualidade. Os canais de distribuição evoluíram de organizações extremistas violentas e mercados clandestinos, como os grupos supremacistas brancos, neonazistas e jihadistas, para repositórios descentralizados de jogos extremistas. Esses jogos estão hospedados em arquivos da Internet, plataformas de compartilhamento de arquivos no Ethereum, Telegram e até mesmo em plataformas convencionais, como o Steam, com títulos codificados de forma sutil.