Superabundância de informações controversas leva OMS a colocar a desinformação como uma das principais ameaças à saúde em nível global
As plataformas de comunicação estão cheias de anúncios de medicamentos falsos, campanhas globais contra vacinas, disseminação de tratamentos milagrosos, mas sem comprovação científica e receitas mágicas para emagrecer. A cada minuto circulam incontáveis mensagens enganosas pelo WhatsApp, Instagram, Facebook, TikTok, YouTube que fazem da saúde o campo da ciência em que mais são disseminadas “notícias” falsas. Os pesquisadores chamam de “infodemia” essa superabundância de informações controversas relativas a qualquer assunto em específico. A Organização Mundial da Saúde (OMS) coloca a desinformação como uma das principais ameaças à saúde em nível global.
“A infodemia tende a provocar medo e incerteza, politizando temas de saúde e promovendo a hesitação vacinal.”
“A psicologia cognitiva e a neurociência têm buscado explicar essa ‘irracionalidade’, ainda que de forma pouco consensual. Autores têm falando em cognição motivada, ou em efeitos de influência contínua das redes sociais e de atores influentes que nelas atuam, instrumentalizando os sistemas de crença e até a ideia de que notícias falsas podem ser compartilhadas por internautas que acham que seria bom se fosse verdade, como uma forma de reforçar suas crenças”, explica Luis Henrique do Nascimento Gonçalves, pós-doutorando no Projeto Datificação da atividade de comunicação e trabalho de arranjos de comunicadores, na Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). (Figura 1)
Figura 1. Desinformação e negacionismo contribuíram para queda na campanha vacinal em todo o país
(Foto: Valter Campanato/ Agência Brasil. Reprodução)
Ele também aponta que interesses comerciais têm motivado a massiva disseminação de informações falsificadas. “A infodemia tende a provocar medo e incerteza, politizando temas de saúde e promovendo a hesitação vacinal. Isso pode ser potencializado quando agentes desinformadores, por exemplo, exploram casos isolados e estatisticamente inevitáveis de reações às vacinas. Essa exploração política e econômica também pode estimular a crença em tratamentos caseiros e alternativos, que podem catalisar os eventos do citados no primeiro parágrafo oferecendo esses tratamentos como uma resposta das pessoas comuns não só à doença, mas a uma ciência cada vez mais fechada e controlada por grande grupos econômicos, o que inclusive é uma verdade em boa medida. Por exemplo, o estímulo ao ineficaz tratamento precoce contribuiu com um aumento de vendas da hidroxicloroquina em 6.856.481,39% e da ivermectina em 12.291.129,32%”.
Crise de referências e o impacto dos falsos especialistas no debate público
A crescente desconfiança nas autoridades cognitivas tradicionais, como a ciência, o jornalismo e a academia, tem contribuído para um ambiente de incerteza e desinformação. “A proliferação de falsos especialistas gera muita confusão no debate público. Isso tem implicações políticas e ideológicas que acabam impactando a saúde pública”, acrescenta Marco André Feldman Schneider, pesquisador-titular do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict) e professor do departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). “As pessoas não são especialistas. Elas acreditam em explicações aparentemente plausíveis e que contrariam o que a ciência diz”, completa. “Existe falta de formação e de confusão das pessoas em relação às fontes nas quais elas confiam ou não. Há uma crise de referências. As referências tradicionais — a ciência, o jornalismo, a academia — têm sido muito atacadas. Isso cresce a partir de uma crise de credibilidade das autoridades cognitivas tradicionais da modernidade”.
“A proliferação de falsos especialistas gera muita confusão no debate público. Isso tem implicações políticas e ideológicas que acabam impactando a saúde pública.”
Riscos à saúde pública
O resultado prático de estratégias como essa são os piores, em termos de saúde pública. “Graças ao trabalho de combate ao negacionismo e de intenso planejamento local, o Brasil saiu da lista dos 20 países que menos estavam vacinando no mundo”, relatou a Ministra da Saúde, Nísia Trindade, em recente entrevista coletiva. Segundo ela, a queda das coberturas vacinais começou a ser notada a partir de 2016, devido à disseminação de desinformação sobre os imunizantes. (Figura 2)
Figura 2. Devido ao trabalho de combate ao negacionismo e ao intenso planejamento local, o Brasil deixou a lista dos 20 países que menos estavam vacinando no mundo.
(Foto: José Cruz/ Agência Brasil. Reprodução)
Em 2023, observou Nísia Trindade, o Brasil voltou a registrar aumento da vacinação de 13 das 16 principais vacinas do calendário do Programa Nacional de Imunizações (PNI). A média de alta nos imunizantes que apresentaram recuperação foi de 7,1 pontos percentuais. Nacionalmente a que mais cresceu em cobertura foi a vacina tríplice bacteriana, com 9,23 pontos, passando de 67.4% para 76,7%.
De acordo com o Ministério da Saúde, em outubro de 2023 o governo federal lançou o programa Saúde com Ciência, criado para combater a desinformação na área da saúde, valorizar a ciência, e oferecer informação verificada e confiável sobre vacinas e outros temas. Cerca de 100 mil conteúdos e comentários foram analisados, revelando que as mentiras mais comuns associavam falsamente a vacina contra covid-19 a doenças como câncer, aids, e até controle populacional por meio de chips implantados. Nesse período, as vacinas contra a covid-19 são as que mais sofrem com desinformação.
“Há uma crise de referências. As referências tradicionais – a ciência, o jornalismo, a academia – têm sido muito atacadas.”
Porém, esse problema da queda da cobertura vacinal não tem uma causa apenas, como aponta Luis Gonçalves: “Este é um problema multideterminado. Pode haver uma espécie de efeito paradoxal do sucesso das vacinações anteriores que, ao erradicarem doenças, eliminaram também a memória social sobre elas e a luta científico-sanitária pela sua superação. A crescente complexidade da ciência, combinada com um letramento em saúde insuficiente, pode provocar ceticismo e desconfiança, principalmente em lugares onde há histórico de abusos de experimentos em saúde, especialmente em populações marginalizadas, como nos Estados Unidos. Além disso, esses e outros fatores podem ser amplificados pelas redes sociais e sua economia da atenção, onde conteúdos emocionados e apelativos alcançam maior engajamento e audiência, aumentando o faturamento publicitário de plataformas como Instagram e TikTok. Por exemplo, essa estrutura favorece interferências políticas e geoeconômicas, como no caso das notícias falsas sobre as vacinas chinesas disseminadas na Ásia pelo governo dos os Estados Unidos”.