C&C 4S24 - reportagem - Abordagem de Johanna Döbereiner à educação - capa site

Legado educacional de Johanna Döbereiner: inspiração para a ciência

Visão inovadora de pesquisadora sobre educação científica impulsiona a disseminação do conhecimento e promove o desenvolvimento científico até os dias de hoje.

 

Johanna Döbereiner, agrônoma e microbiologista tcheco-brasileira, é uma das cientistas de maior importância na agricultura do século XX. Em 2024, ano do centenário de seu nascimento, a história e vida de Johanna reforçam seu papel essencial na ciência, onde promoveu práticas agrícolas mais ecológicas e economicamente viáveis que tornaram o Brasil uma potência global na produção de soja.

Estima-se que, atualmente, as técnicas de cultivo derivadas de suas pesquisas poupem mais de 15 bilhões de dólares ao país todo ano, segundo dados da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Johanna Döbereiner foi indicada ao Prêmio Nobel de Química em 1997 pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) e deixou um legado que influenciou diretamente a formação de novos pesquisadores, tornando-se uma das cientistas brasileiras mais citadas pela comunidade científica mundial.

Johanna Döbereiner Kubelka nasceu em 1924 e, juntamente com sua família, também sofreu as consequências da ocupação nazista na antiga Tchecoslováquia. Teve o primeiro contato com a ciência por meio de seu pai, o químico Paul Kubelka, que na segunda guerra ajudou judeus a fugir dos nazistas. Correndo risco de ser preso, Kubelka fugiu do interior rumo à capital Praga para dar aulas. Já sua mãe Margarete Kubelka foi presa em um campo de concentração por milícias tchecas quando Johanna tinha 12 anos. Aos 23 anos, entrou na Universidade de Munique para cursar agronomia e bancava os estudos trabalhando no campo. Enquanto finalizava sua graduação no início dos anos 1950, Paul Kubelka recebeu convite de amigos professores para trabalhar no Brasil e, algum tempo depois, a filha também migrava para o país.

 

Grama verde

Em solo brasileiro, Johanna Döbereiner começou a trabalhar no Laboratório de Microbiologia de Solos, em Itaguaí, no interior do Rio de Janeiro, onde fica atualmente a Embrapa. Ao observar a grama do instituto, começou a se perguntar por que algumas plantas permaneciam verdes e viçosas durante o ano todo, sem precisar de uma adubação com fertilizantes. Foi assim que descobriu que existem determinadas bactérias que realizam a captação de nitrogênio do ar que promove essa adubação natural, denominada como fixação biológica do nitrogênio (FBN). Países onde a temperatura na raiz das plantas é inferior à faixa de 30 a 35 graus Celsius possuem o clima ideal para a proliferação dessas bactérias.

 

“A economia com a não aplicação de fertilizantes nitrogenados torna a nossa soja extremamente competitiva no mercado mundial, além da contribuição indireta para a redução dos gases de efeito estufa”

 

Paralelamente, foi convidada para participar da Comissão Nacional da Soja, em 1964 pelo Departamento Nacional de Pesquisa Agropecuária (DNPEA) do Ministério da Agricultura, visando iniciar e fomentar o cultivo da soja no país. Embasada com sua pesquisa, Johanna Döbereiner se opôs logo de cara à adubação obrigatória com nitrogênio e mostrou que era possível aumentar a produtividade agrícola utilizando processos naturais, ao invés de depender exclusivamente de produtos químicos sintéticos. “Vivíamos em plena era do reinado dos fertilizantes químicos e havia um descrédito em torno dos biológicos, que pensavam ser produtos de segunda categoria, incapazes de alcançar elevadas produtividades. Como convencer que a soja, altamente necessitada de nitrogênio para produzir grãos com grande teor de proteína, poderia ser cultivada com zero fertilizante nitrogenado, tendo como única fonte do nutriente o uso de bactérias? Foi necessária uma verdadeira catequese, um trabalho de geração de dados, divulgação em simpósios, congressos e publicações, entre outros.”, conta Solon Araújo, conselheiro fundador da Associação Nacional dos Produtores e Importadores de Inoculantes (ANPII). “Mas a perseverança e os notáveis resultados da Dra. Johanna venceram. Participar da Comissão Nacional da Soja juntamente com ela e Jardim Freire foi uma grande felicidade e um dos marcos para o sucesso da soja no Brasil”, declara.

Já na época, o método de Johanna Döbereiner reduziu os custos da soja brasileira, aumentando significativamente o potencial agrícola do país. “A economia com a não aplicação de fertilizantes nitrogenados torna a nossa soja extremamente competitiva no mercado mundial, além da contribuição indireta para a redução dos gases de efeito estufa. As pesquisas se intensificaram a partir desse período com novas oportunidades de colaboração no Brasil e no exterior, assim como de recursos para alavancar os estudos bastantes desafiadores na área de FBN”, declara José Ivo Baldani, pesquisador da Embrapa Agrobiologia e amigo de Johanna Döbereiner.

A pesquisadora também aplicou esse método no cultivo da cana-de-açúcar e os resultados permitiram a implementação do Programa Proálcool, criado por decreto governamental no Brasil em novembro de 1975 e que contribuiu para impulsionar a produção de bioenergia no país. Atualmente, o Brasil é o segundo maior produtor de etanol do mundo, de acordo com a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis do Ministério de Minas e Energias do Governo Federal. “A Dra. Johanna sempre foi uma defensora da energia limpa e uma entusiasta das pesquisas que visavam reduzir os impactos ambientais na agricultura e no meio ambiente. Era uma ecologista nata sem ser radical e inclusive, com o Proálcool, adquiriu um carro movido a álcool que permaneceu com ela até os últimos dias de vida”, relembra José Ivo Baldani. (Figura 1)


Figura 1. A pesquisa de Johanna Döbereiner também foi realizada no cultivo da cana-de-açúcar, o que resultou na implementação do Programa Proálcool.
(Foto: Usina São Martinho, em São Paulo/Wikimedia Commons. Reprodução)

Abordagem pedagógica

Embora a maior parte de sua carreira tenha sido dedicada à pesquisa científica nos campos da microbiologia e agronomia, Johanna Döbereiner atuou no curso de Pós-graduação em Solos na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), desempenhando um papel marcante na vida dos muitos alunos que conviveram com ela. “Tive o privilégio de ser seu orientando de mestrado. Ela conseguiu atrair muitos estudantes para atuar na área de FBN e que culminou com dezenas deles tornando-se pesquisadores e professores em diversas instituições de pesquisa e ensino no Brasil”, declara José Ivo Baldani.

 

“Ela conseguiu atrair muitos estudantes para atuar na área de FBN e que culminou com dezenas deles tornando-se pesquisadores e professores em diversas instituições de pesquisa e ensino no Brasil.”

 

No Centro Nacional de Pesquisa de Agrobiologia (CNPAB), vinculado à Embrapa, ela supervisionava pesquisas em microbiologia, destacando a importância das soluções biológicas para os desafios agrícolas. Defensora de uma ciência prática, Johanna Döbereiner incentivava seus alunos a saírem do laboratório para o campo, em busca de resultados aplicados a resolver problemas reais. Isso ajudou a formar um forte senso de propósito e impacto social. “Desde meu primeiro estágio com a Dra. Johanna, com apenas seis meses de graduação em agronomia, percebi nela algumas características muito próprias. Ela tinha uma total dedicação em transmitir os ensinamentos. Ao mesmo tempo em que havia um rigor científico, percebia-se também um lado bastante humano, sempre nos deixando à vontade para questionar”, relembra Solon Araújo. (Figura 2)


Figura 2. Johanna Döbereiner incentivava seus alunos a saírem do laboratório para o campo, buscando resultados práticos para resolver problemas reais
(Foto: Embrapa. Reprodução)

Ciência mais acessível

Com uma grande habilidade de traduzir conceitos complexos de microbiologia e bioquímica do solo em práticas acessíveis para agricultores, Johanna Döbereiner publicou mais de 500 artigos em revistas nacionais e internacionais, disseminando a ideia de que a ciência precisa ser compreendida e utilizada por todos, não apenas pelos cientistas. “Ela fazia questão de repassar os trabalhos científicos que recebia para os jovens pesquisadores e estudantes, destacando os assuntos para cada um. Além disso, fazia um esforço enorme para que eles pudessem estudar nos melhores laboratórios do exterior para ganhar experiência ou realizar seus mestrados e doutorados”, pontua José Ivo Baldani.

Johanna Döbereiner trabalhou na Embrapa até o final da vida, falecendo em 2000, aos 76 anos. Teve três filhos e dez netos. Ao longo de quase 50 anos de pesquisa, recebeu diversos destaques, foi nomeada doutora honoris causa pela Universidade da Flórida e pela UFRRJ, entrou para a Academia Pontifícia das Ciências do Vaticano, ganhou o Prêmio de Ciências da UNESCO, recebeu a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito, foi vice-presidente da ABC sendo indicada ao Prêmio Nobel de Química em 1997. Além disso, novas espécies de bactérias fixadoras foram batizadas em sua homenagem e contribuiu com a criação direta de diversos programas nacionais e internacionais.

 

“Em cada pacote de inoculante que os agricultores utilizam em suas lavouras tem um tanto dos conhecimentos de Johanna Döbereiner, que estão até hoje integrados às práticas agrícolas em todos os solos do país.”

 

Seu impacto na ciência e na sociedade continua a beneficiar tanto a agricultura brasileira quanto mundial. “Em cada pacote de inoculante que os agricultores utilizam em suas lavouras, tem um tanto dos conhecimentos de Johanna Döbereiner, que estão até hoje integrados às práticas agrícolas, em todos os solos do país, com um legado importantíssimo que deixou na agricultura brasileira e mundial. E o melhor de tudo é que seus ‘filhos e filhas’ científicos continuam disseminando e ampliando estes conhecimentos em aulas e pesquisas”, afirma Solon Araújo.

 

Capa. Abordagem de Johanna Döbereiner à educação continua a inspirar a disseminação científica
(Foto: Embrapa. Reprodução)
Priscylla Almeida

Priscylla Almeida

Priscylla Almeida é jornalista e produtora de conteúdo para áreas de saúde e ciência, marketing e publicidade. Apaixonada por filmes, gatinhos e pela rotina dinâmica que a comunicação traz: o contato com gente, a curiosidade de assuntos diversos, a troca.
Priscylla Almeida é jornalista e produtora de conteúdo para áreas de saúde e ciência, marketing e publicidade. Apaixonada por filmes, gatinhos e pela rotina dinâmica que a comunicação traz: o contato com gente, a curiosidade de assuntos diversos, a troca.
João F. F. Nogueira é desenvolvedor de software, professor e pesquisador. Transita por diversos temas, das ciências humanas às exatas, sempre estudando algo novo. Adora jogar videogame quando não está viajando.
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