Confira entrevista com Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP e vice-presidente da SBPC
O planeta está ficando mais quente. Com isso, eventos climáticos extremos se tornarão cada vez mais frequentes. É só acompanhar os noticiários: regiões batendo recordes de chuvas por um lado, Estados com secas mais longas por outro, além de inundações, ciclones, desertificação… “As mudanças climáticas não são mais uma coisa do futuro: elas estão conosco aqui hoje no presente”, afirma Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Para o pesquisador, que também é membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, o Brasil está caminhando para um aumento médio de temperatura de 4°C, podendo chegar a 5,5 °C no Brasil Central, com uma redução de chuvas de 30%. Esse cenário fará com que áreas onde hoje são produzidas soja e carne possam não ter mais condições de produzir competitivamente daqui a 20 ou 30 anos. “Então um Brasil que dependa demasiado da produção de soja e carne pode não ser um Brasil tão viável no futuro quanto ele é hoje”, afirma. Artaxo ainda aponta que muitos dos danos causados pelo homem no meio ambiente são irreversíveis: “quando você destrói 500 km² de floresta amazônica, mesmo que você abandone aquela terra, ela nunca vai recuperar a vitalidade original que tinha”, ressalta. Mas também afirma que a sociedade e o governo devem trabalhar juntos para minimizar esse impacto e tornar o Brasil mais viável economicamente e mais justo socialmente. “Dependendo das nossas ações hoje, nós podemos minimizar os danos para a geração futura”.
Confira a entrevista completa!
Ciência & Cultura – Estamos no Ano internacional da Ciência Básica para o Desenvolvimento Sustentável, definido pela ONU e pela Unesco para valorizar a ciência básica. Por que há essa diferenciação e essa necessidade de se dar mais importância à ciência básica?
Paulo Artaxo – Eu não faça uma distinção tão “preto no branco” entre ciências básicas e ciências aplicadas. Todas as componentes científicas têm uma parcela de ciências básicas e uma parcela de ciências aplicadas. Temos que equilibrar esse discurso dicotômico, porque que na realidade não existe essa dicotomia. Toda ciência básica tem aplicações na nossa sociedade. Essas aplicações podem não ser tão visíveis facilmente numa primeira abordagem, mas certamente são essenciais e podem ter aplicações no futuro. Existem vários exemplos na história da ciência e essa questão é muito clara. Einstein, quando bolou a teoria da relatividade, por exemplo, não imaginaria as aplicações que teríamos hoje.
“O atual sistema socioeconômico aumenta as desigualdades não só econômicas, mas também questões como acesso à água e à alimentação.”
C&C – Temos ciência básica suficiente para alcançar os ODS?
PA – Em primeiro lugar, temos que ter em mente que o Brasil não está isolado de um cenário internacional e, do ponto de vista de um cenário internacional, nós estamos muito longe de atingir os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Por exemplo, o ODS 1 é a erradicação da pobreza e o que nós vemos é o contrário: estamos aumentando a renda dos bilionários e diminuindo a renda da população mais pobre. O atual sistema socioeconômico aumenta as desigualdades não só econômicas, mas também questões como acesso à água e à alimentação. O Brasil hoje tem mais de 30 milhões de pessoas que passam fome. E nós não estamos isolados: há muitos países que estão em situação ainda mais dramática do que o Brasil. Então nós precisamos acelerar esse processo de atingir os 17 ODS o mais rápido possível se quisermos construir uma sociedade mais justa. O Brasil é um dos signatários formais das convenções que cuidam da sustentabilidade do nosso planeta, não só do Acordo de Paris, mas da Agenda 2030. Nós temos que retomar essa agenda e isso é um esforço de toda sociedade, não só do governo federal. Isso tem que ser um esforço das indústrias, da sociedade civil, dos sistema judiciário, legislativo e executivo.
C&C – O atual sistema econômico é um dos desafios que precisam ser enfrentados para se atingir os ODS?
PA – O atual sistema econômico é insustentável. O Fórum Econômico Mundial que se reúne em Davos (Suíça) todo início do ano deixa isso muito claro: ou mudamos o atual sistema econômico global, ou mudamos o atual sistema econômico global. Nós temos essas duas alternativas. Isso é fundamental porque o atual sistema é baseado na exploração cada vez maior do trabalho barato, dos recursos naturais (que estão chegando ao máximo possível de exploração, veja a Amazônia), e assim por diante. Então nós temos que mudar esse sistema econômico. O grande problema é: mudar para qual o sistema? Ninguém tem uma solução no bolso do colete pronta. Ao mesmo tempo, nós temos que sensibilizar a população em geral do quanto que o sistema econômico atual é injusto para com os mais pobres e o quanto ele é insustentável para o planeta, mesmo a curto prazo. Esse novo modelo de sistema socioeconômico terá que ser construído pela sociedade como um todo. Quem detém o capital hoje vai fazer todo o possível para não perder os privilégios – é só ver o que temos vivido no Brasil quando se fala de aumentar o salário mínimo e certos grupos começam a “espernear”, dizendo que isso vai levar o país à falência. É claro que isso não vai acontecer. Isso faz parte de um jogo para continuar um sistema superinjusto de exploração dos mais pobres que nós temos no Brasil e isso que vai ter que ser mudado a partir da própria população.
“Só com a popularização da ciência e com a educação como um todo nós vamos poder construir um Brasil melhor.”
C&C – Nesse caso, o acesso ao conhecimento, especialmente ao conhecimento científico, poderia contribuir para essa sensibilização da população?
PA – A gente vê uma preocupação cada vez maior dos cientistas em fazer com que a sua ciência chegue na população. Isso a 10 ou 15 anos atrás era muito menos importante do que é hoje, quando vemos muita gente trabalhando na divulgação da ciência, fazendo a ciência chegar ontem ela tem que chegar. Não é um trabalho fácil, não é um trabalho trivial, mas vemos muitas iniciativas nessa direção. A própria Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) trabalham muito nessa direção, acreditando que é só com a popularização da ciência e com a educação como um todo nós vamos poder construir um Brasil melhor.
C&C – É possível abordar consciência ambiental em sala de aula?
PA – Isso é possível desde o ensino fundamental até o ensino superior. Na verdade, nós temos que trabalhar e muito pela melhoria da qualidade do ensino no Brasil em geral, e particularmente no ensino mais fundamental. Não é só fazer o ensino chegar a todas as crianças, mas é fazer o ensino chegar de uma maneira melhor, ensinando essas crianças sobre quem é que manda hoje no nosso governo, na nossa economia, na saúde, na educação, e deixando claro que o atual modelo tem que ser modificado.
“O que observamos claramente é que muitos dos danos são irreversíveis. Agora, dependendo das nossas ações hoje, nós podemos minimizar os danos para a geração futura.”
C&C – É possível reverter os danos causados à camada de ozônio, às florestas, etc.?
PA – Alguns danos são irreversíveis. Alguns danos não têm volta. Por exemplo, quando você derrete o gelo que está na Groenlândia a milhões de anos e esse gelo vira água e aumenta o nível do mar, a ciência não conhece nenhuma maneira de reverter esse processo. Quando você destrói 500 km² de floresta amazônica, mesmo que você abandone aquela terra, ela nunca vai recuperar a vitalidade original que tinha. Então, o que observamos claramente é que muitos dos danos são irreversíveis. Agora, dependendo das nossas ações hoje, nós podemos minimizar os danos para a geração futura. Isso é feito reduzindo o máximo possível, e o mais rápido possível, as emissões de gases de efeito estufa e construindo uma sociedade muito mais justa e muito mais eficiente no uso dos recursos naturais, no uso de energia, mais sustentável a médio e longo prazo. Esse é o caminho que temos que seguir.
C&C – As ações de governos e da ciência são urgentes para enfrentar as mudanças climáticas. É possível consolidar uma base científica e tecnológica para o uso sustentável das florestas tropicais?
PA – Já existem inúmeros exemplos nesse sentido. Por exemplo, no caso da Amazônia é possível sim usar os recursos naturais sem destruí-los. Na verdade, destruir esses recursos naturais é um crime de lesa-pátria que vai impactar e muito a atual geração de brasileiros. Porque as mudanças climáticas não são mais uma coisa do futuro: elas estão conosco aqui hoje no presente. Mas o Brasil é muito mais do que Amazônia. O Brasil tem também que pensar como vamos nos adaptar às mudanças climáticas, por exemplo, nas nossas áreas costeiras, com aumento do nível do mar. Nós temos que pensar, com a redução da chuva no Nordeste, como falaremos da condição de vida para milhões de brasileiros que vivem hoje na região. A economia brasileira é baseada no agronegócio e o agronegócio no Brasil Central vai se tornar muito mais dependente de água. Mas a precipitação está diminuindo no Brasil Central como resultado das mudanças climáticas. Então o Brasil que dependa demasiado da produção de soja e carne pode não ser um Brasil tão viável no futuro quanto ele é hoje. São questões urgentes que temos que resolver como sociedade como um todo. Nós temos que pensar em todos esses aspectos e pensar juntos – a sociedade, o governo, as indústrias – para que possamos traçar uma trajetória futura de um Brasil que seja viável economicamente e mais justo socialmente.