A união da América Latina em um momento de turbulências e crises é um desafio – mas também uma solução
A abordagem do tema “Integração Latino-Americana e Democracia” será realizada de um modo multidisciplinar, envolvendo as dimensões ecológicas, econômicas, políticas, científicas e culturais.
Poderíamos denominar nosso tempo de “A Era da Mundialização de Conflitualidades”, marcada pelo crescimento da produção industrial, o avanço do capital financeiro, o aumento das migrações internacionais, a pós-modernidade como forma cultural, a revolução das tecnologias da informação, a crise do meio ambiente e a crise social mundial. Desde os anos de 1990, novos dilemas e problemas sociais emergem no horizonte planetário, configurando novas questões sociais mundiais que se manifestam, de forma articulada e análoga, mas com distintas especificidades, nas diferentes sociedades.
“Vivemos uma situação de incerteza fabricada, na qual há uma pressão contínua para desmantelar as garantias socialmente construídas.”
A lógica cultural dessa era de modernidade tardia, marcada pela insegurança, repõe a alteridade cultural, pois o culto da liberdade individual e o desdobramento da personalidade passam ao centro das preocupações. Entretanto, rompe-se a consciência coletiva da integração social. Vivemos uma situação de incerteza fabricada, na qual há uma pressão contínua para desmantelar as garantias socialmente construídas. Trata-se de uma ruptura do contrato social e dos laços sociais, provocando fenômenos de desfiliação e de ruptura nas relações de alteridade, dilacerando o vínculo entre o eu e o outro.
Partimos de um contexto de incerteza mundial, em sistemas políticos complexos. Destaca Alfredo Pena-Vega (EHESS, Paris), em “Welcome à era da incerteza: uma reflexão antropolítica sobre um futuro global”:
“Encontramo-nos num ponto de viragem decisivo na forma como entendemos e concebemos o nosso destino comum. As policrises globais estão a convergir, mas a sua simultaneidade não é o resultado de uma infeliz coincidência. São semelhantes a todas as outras que marcaram a história. Mas há uma diferença, na medida em que esta é a primeira policrise verdadeiramente global do nosso século. A hipótese central deste artigo é que as incertezas que surgiram na sequência da convulsão planetária da pandemia, da escalada da crise climática e do ressurgimento da guerra no coração da Europa são extremamente abrangentes, mas ao mesmo tempo inesperadas e prescientes. Inesperado, porque, por um lado, revela a necessidade de integrar a dúvida e o erro e a multidimensionalidade dos fenómenos no nosso modo de pensar, que deve ser o sino quo non da investigação, do exame e da reflexão”.
Iniciamos pela análise da integração da América Latina em uma perspectiva econômica. Seria a UNASUL, desde 2007, “uma alternativa econômica viável para que os países sul-americanos, ao se integrarem regionalmente, tenham estabilidade macroeconômica e desenvolvimento econômico e social?”, indaga Fernando Ferrari Filho (UFRGS):
“A integração é uma etapa de agregação de interesses que leva à formação de ‘blocos econômicos’, que por sua vez, vão de zona de livre comércio, à união aduaneira, ao mercado comum e finalmente à união econômica e monetária. Neste sentido, o Mercosul é um processo, por exemplo. Outrossim, a estratégia de integração econômica deve estar aliada a mecanismos de realização da democracia, para gerar uma sociedade pluralista e participante. Do ponto de vista político a região convive entre formalismos eleitorais e profundas clivagens ideológicas, que provocam uma consistente má qualidade da democracia.”
Permanecem, entretanto, os dilemas do espaço político na América Latina, salienta Benício Schmidt (UnB), em seu texto “América Latina: integração e democracia”:
“a legitimação dos regimes democráticos também abarca a existência necessária de políticas públicas de proteção social, de formas previstas de participação popular para garantir a cidadania, e assim por diante. Tudo isso exige a conformidade com a contemporaneidade mundial, que tem destacado a emergência de novos processos de formação da opinião pública, com os usos de redes sociais, campanhas políticas com apelo à psicologia comportamental, uso de inteligência artificial partindo de dados publicamente disponíveis sobre perfis dos cidadãos e de grupos, e outros recursos disponíveis pelo acervo das ciências sociais contemporâneas”.
Lembra o autor que, em um contexto marcado também pelo ressurgimento de ideologias caracterizadas por adesão à xenofobia, misoginia e outras virtualidades, realizar a democracia em consonância com políticas de desenvolvimento econômico continua sendo um desafio.
A cooperação econômica regional ressurge na reportagem de Bianca Bosso, pois mesmo com o avanço de regimes democráticos na América-Latina, a situação política dos países ainda se mostra como um dos dilemas a serem superados. Acresce-se a questão crucial do desenvolvimento sustentável, explica a matéria de Mariana Hafiz: a necessidade de implementar políticas públicas para segurança alimentar e nutricional, o combate ao desmatamento ilegal e a conservação do patrimônio genético da floresta. Também se destacou a importância de incluir os povos originários em todos os debates envolvendo o desenvolvimento sustentável da Amazônia nos próximos anos, incluindo mulheres e amazônidas urbanos. Cita o projeto de Alfredo Wagner (UFMA) que trata de garantir o desenvolvimento sustentável e levantar ações para combater mudanças climáticas, criando condições para os povos que habitam a região promoverem as suas próprias formas de proteção e defesa dos territórios, e de áreas preservadas, incluindo as terras e rios da região.
“Em um contexto marcado também pelo ressurgimento de ideologias caracterizadas por adesão à xenofobia, misoginia e outras virtualidades, realizar a democracia em consonância com políticas de desenvolvimento econômico continua sendo um desafio.”
A Era da Mundialização de Conflitualidades e das incertezas repõe a literatura e a arte como reflexões sobre a sociedade, a ciência e a política. Na América Latina, dede o século XVI, sucederam-se três modos de representação: o discurso da abundância, o discurso da carência e da violência e o discurso do futuro virtual.[1] Neste século XXI, ainda que os outros persistam, assoma-se a forma da violência:[2] as metamorfoses do romance histórico, do romance testemunho, do romance policial ou do romance da violência, vem a expressar tais figurações e hibridismos.[3]
Escreve Enio Passiani (UFRGS), em “Memória, trauma e Ditadura no Brasil: A literatura testemunhal de Renato Tapajós”, que a violência política exige a restauração da memória contra a indiferença:
“Tal política da memória, por conseguinte, mantém abertas feridas traumáticas e instala um luto insuperável, contribuindo para que o passado não passe, comprometendo o nosso futuro, mesmo quando essa política é invocada em nome da conciliação e da superação em prol da transição (supostamente) harmônica e saudável dos regimes autoritários para os democráticos”.
Precisa o objeto de seu estudo:
“O romance testemunhal, como é o caso do livro de Renato Tapajós, não deixa de representar uma espécie de trabalho coletivo de elaboração do passado traumático uma vez que permite e amplia a circulação social de um conjunto de experiência dolorosas vividas individualmente, mas que são o produto de condições sociais e históricas que ressoam coletivamente, possibilitando o reconhecimento da dor alheia”.
Também o estudo das memórias e trajetórias de mulheres exiladas da América Latina e do Cone Sul, no período ditatorial das décadas de 70 e 80, exige uma abordagem das práticas repressivas estatais e paraestatais, bem como recordar as trajetórias ideológicas.
O texto de Nília Viscardi (UDELAR, Uruguay), em “Exilios y resistencias de militantes uruguayas: arte, cuerpo y género a 50 años del golpe de estado” evoca a memória de uma dançarina, Ema Haberli, expressando uma combinatória corpo-solidariedade-trabalho-dança contemporânea e militância ecológica:
“A revisão das biografias de mulheres no exílio centra-se nas diferenças a partir de uma perspectiva de gênero para compreender a memória e reconstruir a própria história oral. A forma como o exílio é percebido e como se dá a resposta às situações de vida que nele surgem mostram diferenças entre homens e mulheres expressas nos problemas de vida que são abordados nas biografias”.
César Barreira menciona que “falar de memória social é adentrar uma temática com diversas possibilidades de análise”. Inicia por problematizar a memória social com base em algumas máximas que delimitam esse tema e analisa situações que configuram reconstruções de memória social.
Chegamos, então, a lembranças da ciência: memória, genética e energia. Distintos cientistas podem ser evocados, in memoriam: Ivan Izquierdo, Francisco Mauro Salzano e Roberto Fernando de Souza, todos da UFRGS.
O professor Izquierdo frisava: “o sistema nervoso governa todas as atividades dos seres humanos e não humanos (…) através da memória. O tema (…) é a relação entre formas de aprendizado e formas de memória. Os seres fazem o que fazem porque lembram, e lembram porque alguma vez aprenderam”. Finaliza dizendo “que a memoria é composta por formas de aprendizado e de esquecimento”.
Francisco Mauro Salzano (Genética, UFRGS) escreveu sobre as relações entre Biologia e Cultura. Afirmava que a relação entre biologia e cultura é uma relação dialética, pois “no século XIX e início do século XX havia um consenso de que os fatores genéticos eram muito importantes no condicionamento do comportamento humano”, o que depois mudou com o desprezo da genética. Porém, “o que atualmente se verifica é que houve uma mudança quanto a essas duas polaridades, chegando-se a uma ideia de que é preciso criar uma interação entre esses dois conjuntos de elementos e, assim, poder interpretar o comportamento humano”.
Roberto Fernando de Souza (Química, UFRGS) analisou a relação entre energia e sustentabilidade: focou na “modificação de fontes energéticas” e defendeu que “temos que mudar de tipo de energia e para que lado podemos ir, a procurar uma solução global, do ponto de vista brasileiro”; propôs, assim, “uma economia orientada ao hidrogênio”. Afinal, trata-se de reconhecer heranças, sofridas e afetuosas, a palmar o futuro, nos versos da cientista poeta Ângela Wyse, Neurocientista (UFRGS):
“Ouço alguém pisando o chão
Vejo marcas positivas deixadas no
Caminho de quem muito andou
E passos na terra deixada por quem plantou”[4]
No plano das virtualidades futuras, as lutas sociais, os sindicatos e os movimentos sociais traçam, juntamente com segmentos da intelectualidade universitária, uma agenda política para o aprofundamento da democracia na América Latina.
“Há necessidade de se garantir o financiamento adequado das universidades públicas e dos sistemas de ciência, tecnologia e inovação, inclusive para propiciar aos jovens uma presença relevante no futuro da sociedade.”
As forças democráticas defendem o papel central das universidades na produção de conhecimento, ciência e tecnologia, seja nos processos de fabricação ou nas tecnologias sociais e, em particular, na construção da cidadania. Inclusive, ressaltam o papel fundamental das associações científicas – como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) – nessa empreitada.
Da mesma forma, há necessidade de se garantir o financiamento adequado das universidades públicas e dos sistemas de ciência, tecnologia e inovação, inclusive para propiciar aos jovens uma presença relevante no futuro da sociedade. Acelera-se, ainda, a combinação de práticas de democracia representativa com a democracia participativa (e o orçamento participativo), assim como a democracia deliberativa (em conselhos, por exemplo).[5]
Foi possível, então, formular uma agenda para a democratização profunda das sociedades da América Latina, para além das especificidades nacionais:[6]
- Implementar um marco legal para a ciência, tecnologia e inovação;
- Revitalizar o ensino secundário, combinando a cultura humanista com a educação científica e tecnológica;
- Garantir o papel central das universidades na produção de conhecimento, ciências, produção e tecnologias; em particular, na construção da cidadania. Portanto, o retomar do financiamento adequado das universidades públicas e dos sistemas de ciência, tecnologia e inovação, inclusive para proporcionar aos jovens papel relevante no futuro da sociedade.
- Importa efetivar uma série de medidas contra a exclusão social e o desemprego, com a redução da pobreza e o aumento real dos salários-mínimos, acentuando a expansão do empreendedorismo, a participação da mulher e a geração de emprego e renda a fim de ampliar a inclusão social.
- Disseminar a inclusão digital em todos os espaços sociais.
- Garantir do Estado Democrático de Direito.
- Combinar as formas da democracia representativa com as formas da democracia participativa e deliberativa.
- Retomar o crescimento económico, com a afirmação da Quarta Revolução Industrial, a economia digital, o fortalecimento da produção industrial e do sector dos serviços, e a expansão das micro e médias empresas.
- Expandir a Reforma Agrária ampla e geral e assegurar um papel relevante aos produtores familiares.
- Afirmar o modo de produção da segurança cidadã, como possibilidade de superação das violências e da violência de gênero.
- Garantir os territórios, a economia e a cultura dos povos originários.
- Preservar o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável.
- Assegurar a produção da diversidade cultural, da democratização dos meios de comunicação e da valorização da multiplicidade de conhecimentos, num diálogo crítico entre o senso comum, os pontos de vista tradicionais e o conhecimento científico, reafirmando o hibridismo como contribuição universal.
- Reconhecer a diferença, afirmando os direitos humanos coletivos, garantindo os direitos das mulheres, reconhecendo a juventude, e promovendo a diversidade étnica e as ações afirmativas.
- Renovar o multilateralismo nas relações internacionais, afirmando as interfaces Sul-Norte e Sul-Sul, e propondo o desenvolvimento sustentável, em um novo horizonte da cooperação latino-americana.
- Afirmar a Paz como direito universal.
Este número da Ciência & Cultura insere-se em um contexto de imaginação econômica, política, científica e cultural, vislumbrando virtualidades para a América Latina do futuro. Pois, segundo o antropólogo Caleb Alves (UFRGS),
A leitura invade
as linhas da mão
e procura
na indiferença dos pares
qual destino
ainda tem forças
para resgatar
tua humanidade