Nos tempos atuais, a desinformação não é apenas um fenômeno pontual, mas uma ameaça sistemática que mina os pilares da democracia. Com a popularização das redes sociais, informações falsas ou manipuladas se espalham em uma velocidade alarmante, criando um campo fértil para a desconfiança, o extremismo e a polarização. Juremir Machado, professor de jornalismo e coordenador de pós-graduação em Comunicação na PUC-RS, tem se destacado no combate a esse cenário, defendendo a importância de um jornalismo crítico e esclarecedor. Para ele, o principal desafio reside na disseminação de fake news, que distorcem a realidade e geram um ambiente de constante incerteza, prejudicando a capacidade das pessoas de discernir a verdade. A perda da confiança nas fontes de informação enfraquece a democracia e alimenta a ascensão de narrativas autoritárias.
A desinformação vai além de um simples erro ou distorção; ela tem o poder de inflamar discursos de ódio, criando divisões cada vez mais profundas na sociedade. Nesse contexto, a intolerância e a violência se tornam mais visíveis, com um efeito devastador sobre o tecido social. O enfrentamento dessa questão exige não apenas uma ação de combate imediato, mas uma reconstrução das bases do diálogo e da confiança. Juremir Machado destaca que a polarização alimenta um ambiente hostil, onde o debate construtivo cede lugar à retórica agressiva e maniqueísta, transformando a política em um campo de guerra de narrativas. Para ele, a comunicação e o jornalismo devem ser ferramentas de resistência contra esse processo de fragmentação da sociedade.
Em sua trajetória, Juremir Machado tem se dedicado a promover uma comunicação inclusiva, capaz de engajar a sociedade de maneira esclarecedora e responsável. Ele acredita que o jornalismo científico desempenha um papel crucial nesse processo, pois sua função é informar com clareza, empatia e precisão. Em um momento em que a ciência também é alvo de distorções e manipulações, a divulgação responsável e acessível do conhecimento é mais urgente do que nunca. O jornalismo não deve se limitar a relatar os fatos, mas também a contribuir para a formação de uma consciência crítica, essencial para a defesa da democracia. Para ele, a comunicação deve ser entendida como um espaço de aprendizado e de construção coletiva, onde as diferentes vozes possam se expressar, sem cair nas armadilhas da desinformação.
A reflexão de Juremir Machado, que alia sua experiência acadêmica e profissional no campo do jornalismo e da comunicação, aponta para um cenário em que a verdade e a transparência se tornam o principal baluarte contra a ascensão de discursos autoritários. Ele não vê a democracia como algo dado, mas como uma construção contínua que exige vigilância, participação ativa e, acima de tudo, a garantia de que a informação que circula seja fidedigna e acessível. Nesse sentido, ele coloca o jornalismo como um elemento central para a promoção de uma sociedade mais justa, informada e democrática.
O desafio, portanto, é não apenas combater as fake news, mas também criar condições para que a comunicação cumpra seu papel vital na construção de uma sociedade mais consciente e resistente ao autoritarismo. Juremir Machado nos convida a refletir sobre o papel de todos nós nesse processo, em que a responsabilidade social e o compromisso com a verdade devem ser os principais motores da ação.
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Renato Janine Ribeiro – Juremir Machado é um dos principais nomes da comunicação no Brasil, e vamos dialogar com ele sobre o tema “Desinformação, Democracia e Autoritarismo”, que é o foco deste número especial da Ciência & Cultura. Para começar, pergunto como você, como estudioso da comunicação, vê a crise pela qual a desinformação tem assumido um vulto tão grande. E já aproveito para acrescentar uma subpergunta: temos a tendência de responsabilizar os comunicadores de fake news pelas mentiras e pelos efeitos que elas causam – como o impacto sobre o número de votos de seus candidatos, a destruição da democracia que promovem, entre outros – mas raramente nos questionamos sobre por que a recepção desse tipo de discurso é tão favorável. Ou seja, gostaria que você falasse sobre a produção desse discurso e sua recepção.
Juremir Machado – Sabemos que as fake news não surgiram agora, mas elas adquiriram uma capacidade de produção em escala, mais do que industrial. Sempre me lembro de duas pequenas histórias: uma muito citada nas teorias da comunicação e outra da literatura brasileira. Machado de Assis, numa crônica dos anos 1870, conta talvez uma das primeiras grandes fake news da história do Brasil. Certa vez, na rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, onde tudo acontecia, as pessoas souberam que teria ocorrido um golpe de estado no Rio Grande do Sul, e que o general Osório, herói da Guerra do Paraguai, teria tomado o poder, instaurando uma república. Logo em seguida, surgiu outra notícia: o ministério estabelecido pelo general Osório teria caído e outro ministério já teria sido empossado. E assim por diante. Até se chegou a noticiar uma possível aproximação com a Banda Oriental para a formação de um novo país. Naquela noite, as pessoas dormiram acreditando nesse golpe de estado no Rio Grande do Sul. No dia seguinte, ficou-se sabendo que tudo não passara de um boato: não houve golpe, o general Osório não fez nada, nada aconteceu. Mas por um dia, na rua do Ouvidor, essa foi a grande notícia. Claro que, naquela época, desmentir podia ser lento, mas o poder de disseminação era muito menor. A outra história é a de um general britânico na Primeira Guerra Mundial, que recebeu duas fotos dos Serviços Secretos: numa delas, soldados alemães estavam sendo levados para enterrar mortos, e na outra, cavalos estavam sendo levados para serem mortos e transformados em sabão. O general britânico decidiu trocar as legendas das fotos e colocou na imagem dos soldados a legenda: “soldados sendo levados para fazer sabão”. Ele enviou essas fotos para a China, que eles queriam influenciar sobre o conflito. Como a China tem uma grande tradição de respeito aos mortos, a reação foi de indignação com a profanação dos corpos humanos. Isso para mostrar que fake news sempre existiram na política. São inúmeros os casos, até para ganhar eleições. Mas hoje temos uma nova escala. Nunca foi possível produzir e disseminar notícias falsas com tanta eficácia e rapidez. Isso começa a influenciar comportamentos, a afetar resultados eleitorais e a ser um perigo para a democracia. Na comunicação, temos realizado estudos, orientado dissertações e teses, feito pesquisas sobre os efeitos das notícias falsas e da desinformação no mundo atual. Tivemos uma experiência em tamanho real, que foi a pandemia, com tantas notícias falsas e desinformação circulando. E isso afetou comportamentos, com consequências diretas na vida das pessoas. Até hoje, encontramos pessoas que se orgulham de não ter tomado nenhuma vacina, acreditando que as vacinas causam grandes males ao corpo humano. Esse é um problema completamente novo. Diria que, neste momento, ainda há muita dúvida sobre como lidar com isso nas teorias da comunicação. Temos três fases. Na primeira, as teorias eram psicologizantes: o emissor era muito forte, o receptor era muito fraco e a mensagem passava exatamente como o emissor queria. Era a teoria do estímulo-resposta, ou da agulha hipodérmica, em que a manipulação das pessoas parecia muito fácil. Depois surgiu a teoria da recepção: o receptor tem uma história de vida, filtros, capacidade de interpretação. O canal, o código, os ruídos entre o emissor e receptor, tudo isso interfere. As pessoas não recebem as mensagens da mesma maneira; há desvios e interpretações divergentes. Isso tornou tudo mais complexo. Mas essa teoria também fortaleceu tanto o receptor que parecia que ele estava pronto para se defender de qualquer manipulação. Hoje, busca-se identificar as condições em que a manipulação pode ocorrer. Aí, chego ao final da sua pergunta: por que a desinformação parece se espalhar mais rápido do que a informação? Temos campanhas na televisão, como “Se beber, não dirija”, que nunca surtiram o efeito esperado. Todos os veículos de comunicação dizem isso. Por que não funciona? Por que as pessoas bebem, dirigem e morrem? A resposta não é simples, mas hoje, nas redes sociais, sabemos que funciona uma espécie de lógica e estética do exagero. Para gerar engajamento, é preciso causar um impacto forte, um efeito diferencial, que geralmente vem de teorias da conspiração ou informações tão exageradas que mexem com as sensações instintivas das pessoas, ao invés de seguir os processos de verificação. O jornalismo deveria verificar a informação antes de divulgá-la. Hoje, tudo vai muito rápido, é tão acelerado, que não há tempo para verificação. E, muitas vezes, nem há o desejo de verificar, pois perderia o efeito da notícia falsa, que já teria provocado o impacto desejado. Estamos vivendo uma nova realidade. A meu ver, hoje temos mais dúvidas do que certezas sobre como lidar com isso.
“O ódio e o ressentimento, que antes eram desabafos de quem se sentia isolado e não podia expressar suas frustrações, agora estão nas redes sociais.”
RJR – Eu queria conectar essa questão com uma hipótese que formulei há algum tempo, de que o êxito das fake news está muito ligado ao fato de que elas pertencem ao mundo do entretenimento. Vemos, por exemplo, que estamos conversando quatro dias antes das eleições municipais, e o grande personagem de todas as eleições no Brasil é um influencer chamado Pablo Marçal, que está concorrendo à prefeitura de São Paulo e se notabilizou pelo uso escancarado de mentiras e pelo incitamento ao ódio. Eu te perguntaria: por que o ódio parece ser mais poderoso que o amor? Ou, como chamaria o filósofo Spinoza, por que as paixões negativas têm mais efeito do que as positivas? As paixões positivas aproximam as pessoas, geram amizade e amor, enquanto as paixões negativas, como medo e ódio, afastam. Parece que isso tomou uma proporção gigantesca no tempo atual. Do ponto de vista da comunicação, como você vê isso?
JM – Parece ser realmente isso: as paixões negativas engajam mais do que as positivas. Por quê? Vou começar com um paralelo histórico, já que você mencionou a data. Veja só: em 3 de outubro, uma revolução comandada por um gaúcho, Getúlio Vargas, foi vitoriosa, durou um mês, não teve batalhas sangrentas – morreram poucas pessoas – e unificou o Brasil, dividindo o país entre o antes e o depois de 1930. É um feriado nacional, mas não aqui no Rio Grande do Sul. O feriado aqui é 20 de setembro, dia da Revolução Farroupilha, que durou dez anos e terminou em derrota. Por que a Revolução de 1930, que levou Getúlio ao poder e durou tantos anos, não causa tanto engajamento aqui no Rio Grande do Sul quanto a Revolução Farroupilha, que perdemos? Talvez porque a Revolução Farroupilha tenha sido mais grandiosa, com batalhas, mortes, uma república proclamada, uma separação. Se pensarmos em entretenimento, ela teria muitos capítulos, reviravoltas, traições – daria uma boa série. Já a Revolução de 1930 é mais burocrática, não tem o épico. Por um lado, estamos numa sociedade treinada para o entretenimento, como já dizia a Escola de Frankfurt nos anos 1930. Hoje, o jornalismo se tornou parte dessa lógica do entretenimento. O telejornal não pode ser mais sisudo, precisa ser leve, engraçado, cheio de reviravoltas e informalidade. A lógica do entretenimento é a lógica da sensação, e, para provocar sensações, ele precisa ir cada vez mais longe. Por exemplo, filmes de terror ou o Coringa, com muita violência, são os mais populares. Eu prefiro algo mais edificante, mas isso não engaja. O que realmente engaja é a aceleração da violência, da radicalização. A sociedade se construiu assim: hipercompetição, entretenimento, aceleração. O que nos arrebata, mesmo que seja mentira, nos prende. O desejo por histórias impactantes ultrapassou a fronteira entre o real, o verdadeiro e o noticioso. Talvez seja um reflexo do relativismo que se espalhou, como se a verdade dependesse do ponto de vista. Outro dia, perguntei a um aluno que dizia que “tudo depende do ponto de vista”: “Então, nesse caso, a Terra pode ser plana, porque depende do ponto de vista de quem diz isso?”. Acho que estamos em um momento em que a lógica do entretenimento e o aumento da radicalização criaram um “efeito de espiral” onde só uma mentira mais forte e mais impactante é capaz de fazer mais sucesso. (Figura 1)
Figura 1. Mídias sociais se tornaram terreno fértil para disseminação de discurso de ódio
(Foto: Freepik.com. Reprodução)
RJR – Eu li na semana passada que o assassino do Shopping Morumbi foi solto após 25 anos na cadeia. Pelo que entendi, ele cumpriu parte substancial da pena. Isso me fez lembrar de um episódio: passava naquele cinema do Shopping Morumbi, em São Paulo, o filme Clube da Luta. Aí, um estudante de medicina entrou na sala de cinema, sacou uma metralhadora e começou a atirar, matando várias pessoas. A primeira reação das pessoas que estavam ali foi acreditar que aquilo fazia parte do filme. Só depois perceberam que era o mundo real. Isso me faz refletir sobre duas questões que me interessam muito na discussão sobre o efeito da violência e do sexo na mídia: a visão mimética e a visão catártica. Muitas pessoas têm receio da violência ou do sexo na TV e na mídia, acreditando que isso vai levar as pessoas a se tornarem violentas ou a praticarem sexo desenfreado. Existe uma campanha que volta e meia ressurge sobre isso. Essa é uma visão platônica, a da imitação: vemos a violência, e a imitamos. Esse rapaz que cometeu o assassinato é um caso típico de mimeses. Ele foi lá e passou ao ato. Já o outro lado argumenta que você assiste a um filme de violência não para mimetizar a violência, mas para descarregar a violência que está dentro de você. Então, ao sair do espetáculo, você se sente aliviado, sem a necessidade de sair matando porque o Coringa matou. O que você pensa sobre essas duas visões do impacto, especialmente da violência e do sexo, na mídia?
JM – Durante muito tempo, na área da comunicação, predominou a visão da imitação. Havia grande preocupação com os efeitos nefastos de mostrar violência, pois se acreditava que isso geraria mais violência. Ainda existe hoje um tabu no jornalismo, por exemplo, sobre a ideia de noticiar suicídios. Normalmente, não se divulga, salvo quando é uma celebridade, com base na premissa de que isso poderia incentivar novos casos. Durante muito tempo, a preocupação foi essa. No entanto, muitos intelectuais que trataram da comunicação refutaram essa ideia, como Edgar Morin, que escreveu muito sobre os meios de comunicação, e Gilles Lipovetsky, que tem um texto interessante sobre a culpa da mídia. Eles sustentam que, estatisticamente, o efeito da mídia não é significativo. Eu me lembro do caso do Shopping Morumbi, mas não existem centenas ou milhares de casos influenciados por filmes que resultem em violência. Estatisticamente, são poucos. Então, esses efeitos seriam muito mitigados. Acontece com alguém que talvez tenha uma predisposição maior ou algum problema psicológico, alguma perturbação mental. Por outro lado, alguns pensadores sustentam que, se não tivermos formas simbólicas de fazer a catarse da violência, haveria uma tendência a uma violência explícita. Por exemplo, lembro de uma época em que a França estava muito preocupada com os trotes dos calouros no início do ano universitário, que muitas vezes terminavam em violência. Em São Paulo, houve casos que até resultaram em mortes. Então, começaram a estabelecer regras para domesticar esses trotes. Acredito que, hoje, os trotes estão praticamente extintos. Quando entrei na faculdade, em 1980, fui vítima de trote, me rasparam a cabeça. Era algo bem forte, bem constrangedor. Mas, se controlarmos todas essas formas de violência controlada, ela vai extravasar de outra maneira. Por exemplo, existe uma teoria de que o futebol seria uma espécie de guerra simbólica. Dado que Brasil e Argentina não vão à guerra, eles duelam no futebol. Às vezes, isso pode até descambar para a violência. Resumindo, acredito que a hipótese do mimetismo é limitada. A maioria das pessoas não se deixa conduzir por uma imagem de violência a ponto de praticar violência. Talvez a hipótese da catarse seja mais realista. A gente extravasa, encontra uma maneira de jogar tudo aquilo para fora e sai mais aliviado.
“Acredito que o papel do jornalista é buscar a verdade factual, aquela que pode ser demonstrada.”
RJR – Será que, no caso do sexo, vamos dizer, a normalização ou a naturalização, por assim dizer, do sexo na mídia não contribuiu para liberalizar as atitudes sociais em relação à sexualidade?
JM – Certamente, eu me incluo entre aqueles que concordam com o Foucault nesse ponto. Acho que, na verdade, o ato de uma determinada época não é proibir de falar sobre sexo, mas fazer falar, talvez até para poder controlar, mas fazer falar. Os meios de comunicação, como a televisão, passaram a explicitá-lo, a torná-lo visível de todas as maneiras. Qualquer novela das nove da Globo é uma explosão de sexualidade diante de todos. Mesmo que hoje os mais jovens não gostem de novelas ou de televisão aberta, de alguma forma, esse conteúdo está ali exposto. E isso, a meu ver, tem dois efeitos. O primeiro é que normaliza o comportamento, e com isso enfraquece o conservadorismo, especialmente em relação ao comportamento sexual, algo muito presente na sociedade brasileira. Acho que contribuiu enormemente para eliminar determinadas exigências morais que já não faziam sentido. Por exemplo, famílias que esperavam que as filhas se casassem virgens, sem ter sexo antes do casamento. Ruth Cardoso, uma grande intelectual que trabalhou nesse tema, mostrou como as telenovelas ajudaram a diminuir o conservadorismo nos comportamentos familiares no Brasil. Eu, por várias razões, sempre gostei de assistir às novelas, especialmente as das nove. Ali, por exemplo, vemos uma mudança radical no tratamento dos personagens gays. Há 20 ou 30 anos, o personagem gay nas telenovelas era sempre caricato, existia apenas para criar situações para fazer rir. A única maneira de aceitá-lo era de forma caricatural. Isso mudou completamente. Hoje, o tratamento é outro, o entendimento e o padrão são diferentes. Essa mudança acompanha a alteração da sensibilidade social. Há o famoso texto de Umberto Eco, no livro “Viagem na realidade cotidiana”, em que ele questiona quem influencia quem. Uma novela exibe um jovem com uma camiseta com um determinado símbolo. E, logo depois, todo mundo começa a usar essa camiseta. A novela inventou o símbolo e contaminou as pessoas que começaram a usá-lo, ou ela capturou esse símbolo de alguma camiseta já existente na realidade e o ampliou?
RJR – Eu queria retomar uma outra expressão que você usou. Você falou sobre a Revolução Farroupilha oferecer uma narrativa mais atraente do que a Revolução de 30, embora esta última tenha tido efeitos muito mais poderosos sobre a sociedade brasileira. E eu queria pegar essa palavra “épica”. Eu me lembro do enfrentamento Collor versus Lula, há cerca de 30 anos, e na sequência disso, com a vitória de Fernando Henrique Cardoso. Eu sentia que havia uma épica de direita, simbolizada por Fernando Collor de Melo, que surgia inclusive na esteira de uma novela, Que Rei Sou Eu?, na qual havia um jovem príncipe extremamente honesto, inimigo da corrupção. Essa novela foi lançada no começo de 1989, e a Rede Globo, de forma inédita, reprisou-a às vésperas da eleição presidencial do mesmo ano – o que acabou consagrando Collor como um ato de campanha a seu favor. Por outro lado, me parecia que Lula oferecia uma épica de esquerda. Então, eu via duas épicas em confronto. De certa forma, quem colheu os frutos cinco anos depois foi Fernando Henrique, não com uma épica, mas com uma prosa. Alguém disse que Fernando Henrique era prosaico, e isso foi uma crítica a ele. Eu não acho uma crítica, penso que a democracia tem muito a ver com a prosa. Primeiro, porque é necessário haver diálogo, o que se faz pela prosa, pela conversa. Segundo, também por uma certa redução das paixões, uma limitação da força delas, sem a qual não é possível governar. O que você pensa sobre essa questão da prosa e da épica?
JM – Me parece uma análise brilhante. O problema é que o marketing eleitoral e as redes sociais tendem a favorecer e explorar as possibilidades épicas, que estão na ordem do exagero. Eu te dou um exemplo: aqui no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, durante a campanha eleitoral de 2024, três candidatos realmente estão em disputa: Sebastião Melo, do MDB, prefeito que estava no poder durante a enchente. É visível que faltou manutenção do chamado sistema de proteção contra cheias. Mesmo assim, Sebastião Melo chega ao final da campanha do primeiro turno liderando amplamente nas pesquisas. É até estarrecedor. As outras candidatas em disputa são Maria do Rosário, do PT, e Juliana Brizola, neta de Leonel Brizola, do PDT. Por que tanta vantagem de Sebastião Melo em relação a elas? A meu ver, foi construída uma narrativa épica em torno de Sebastião Melo, que corresponde um pouco aos famosos passos da “jornada do herói”. Sebastião Melo era um rapaz pobre de Goiás, ele recebe um chamado, segundo essa retórica, para vir morar em Porto Alegre. Inicialmente, ele hesita, tem medo, recusa o chamado. Depois, finalmente aceita o desafio e vem para cá, “com uma mão na frente e outra atrás”. Aqui, ele mora em pensões, em casas de estudante, trabalha nos empregos mais banais possíveis, coisas de pouco ganho e muito esforço braçal. E vai avançando até que surge o desafio da política, no qual ele entra e vence. Ele é vereador, deputado, vice-prefeito. Outros obstáculos vão surgindo e ele vai contornando até que acontece o que poderia ser chamado de “travessia do deserto”. Ele perde uma eleição e fica sem mandato, uma das primeiras vezes ou a única vez em que ele ficou sem mandato. E fica um pouco abandonado, desesperadamente querendo voltar. Ele vence esse espetáculo, volta, e se bolsonariza para se eleger. Mas foi construída para ele uma narrativa de enfrentamento e vitórias. Conta-se essa história, mostrando que ele continua o mesmo homem simples, que usa chapéu de palha, que toma uma cachacinha no boteco da esquina com os eleitores, que fala a linguagem do povo, que conhece todas as vilas e favelas de Porto Alegre. Há uma narrativa épica de um herói que sai do nada, que constantemente enfrenta obstáculos, os contorna e vence. E prossegue, enquanto os outros não conseguiram apresentar qualquer narrativa. A campanha de Rosário é uma campanha, digamos, em torno da ideia racional de convencimento. Ela está muito mais direcionada a convencer o eleitor pela razão. A campanha de Juliana mescla um pouco mais de emoção, principalmente na exploração do avô dela, Leonel Brizola, esse sim, com uma narrativa épica inacreditável. Então, a meu ver, o marketing está conseguindo explorar uma épica, uma emocionalidade, construindo uma narrativa para o personagem, enquanto os outros não têm. E, nesse ponto, eles parecem estar perdendo, porque não conseguem apresentar qualquer narrativa, qualquer história. Concordo contigo, o ideal é isso, é o convencimento. Por isso, acho que Fernando Henrique foi tão grande, porque conseguiu ganhar em política duas vezes pela prosa e não pela épica. Em um país emocional como o Brasil, isso é uma façanha.
RJR – Claro que, no caso de Fernando Henrique, ele esteve muito ligado ao Plano Real, que realmente trouxe uma paz ao país, que estava desesperado. Então, se a hiperinflação tivesse continuado, é possível que alguma epopeia como a do Collor, “vou acabar com a inflação com um soco”, tivesse mais convencimento. Essa narrativa foi muito forte no período anterior, mas o Brasil estava, de certa forma, esgotado de tanto tempo disso. Então, um bom medicamento foi realmente a prosa. Eu queria passar para uma outra questão que você levantou na resposta aos seus alunos relativistas. Quando eu estudei na França, fiz uma visita ao jornal Le Monde, e lembro de uma jovem jornalista nos guiando, muito empolgada, e nos contando que havia um jornalista que ainda escrevia à mão nos anos 1980. Um ponto importante que lembro disso é a necessidade de se ater aos fatos. Sabemos que as teorias da comunicação mostram como os fatos são construídos como objetividade. Não há muita crítica na história. Um historiador alemão do século XIX, Leopold von Ranke, dizia que o papel da história era relatar os acontecimentos como realmente aconteceram. Isso tudo foi muito criticado, muito contestado. Em função disso, há uma tendência nesse relativismo, de achar que tudo depende do ponto de vista, tudo depende de perspectiva. Hoje, o termo “narrativa” vai ser usado para eleger um candidato, ou como você limita uma narrativa tendenciosa para seu lado. Agora, um ponto que acho muito comum à ciência e ao jornalismo é que não é possível tê-los sem uma certa crença na verdade, sem um certo postulado de verdade. No caso do jornalista, seriam mais os fatos; no caso da ciência, seriam mais os fenômenos. Mas isso é o que limita, o que faz com que não possamos sustentar que a Terra é plana. Enfim, se não tivermos algum mínimo de factualidade, o próprio diálogo se torna impossível. Veja, por exemplo, o que jogou o Brasil nesse horror. Talvez o ponto de partida tenha sido Aécio Neves contestando os resultados das eleições de 2014. O resultado das eleições, ao que tudo indica, é extremamente objetivo, são fatos reais expressos pela totalização dos votos via informática. Há toda uma série de cuidados em cada seção eleitoral. O que quero dizer é: como determinamos o que é fato ou o que é interpretação? Em que ponto seu aluno tem razão? E em que ponto, sem algum mínimo de factualidade, o diálogo – e como podemos chamar isso – se torna impossível, também afetando a democracia?
“Para tomar o controle da narrativa, você precisa primeiro enfraquecer a noção de verdade. Quando se ataca a verdade, se enfraquece a credibilidade de qualquer um. Isso é uma derrota histórica.”
JM – É uma reflexão muito importante. Felizmente, em relação aos alunos, é a minoria que acaba pensando nesse relativismo mais extremado. No jornalismo, há algo muito curioso, que é o seguinte: volta e meia se consagra a ideia de que a objetividade, a imparcialidade, a neutralidade, nada disso existe. Mas há uma cobrança constante. Aquele mesmo indivíduo que diz que a imparcialidade é impossível critica a Globo por não estar sendo imparcial. Então, é algo curioso. O tempo inteiro, quando a revista Veja atacou o Lula, havia, por parte da esquerda que sustenta constantemente que não existe imparcialidade, uma cobrança paradoxal. Mas, se não há imparcialidade, então cada um escolhe o que quer dizer e ponto. Há uma questão que continua sendo discutida na epistemologia da comunicação. Eu entendo o seguinte: o jornalismo trabalha com um espectro de factualidade que é possível alcançar. Por exemplo, é possível demonstrar se houve ou não houve fraude nas eleições. Até agora, não há nenhum elemento consistente que diga que houve fraude. Então, há um limite para dizer que as coisas podem ser relativas. Todos os elementos disponíveis mostram que a Terra não é plana. Então, no jornalismo, o curioso é que, às vezes, fazemos experiências bem simples. Pegue cinco pessoas, pode ser cinco estudantes, e diga: “saibam que vamos fazer tal coisa aqui dentro, e, quando voltarem, alguém vai contar o que aconteceu”. A expectativa é que teremos uma narrativa diferente para cada um, mas não é o que acontece. As narrativas são muito próximas, quando não são praticamente idênticas. Então, eu diria que não há tantas narrativas sobre um fato, quando há um núcleo comum. Por exemplo, qualquer um de nós vê um acidente na rua, um caminhão atropelando alguém. Se formos cinco testemunhas, provavelmente vamos ter a mesma narrativa, porque há o fato. Agora, é claro que se tivermos uma interpretação ideológica do fato, vamos dar um outro viés. Em relação à comunicação, o que é fundamental é a combinação entre empatia, análise e articulação da questão factual. Eu diria que as narrativas políticas nunca devem estar acima da factualidade.
RJR – Lembro de um conto de Jorge Luis Borges, em que ele fala de um chinês que sonhou que era borboleta e, ao acordar, ficou na dúvida se ele não seria, na verdade, uma borboleta que sonhou que era chinês.
JM – É um tanto angustiante. Às vezes, penso como Umberto Eco, que, em determinado momento, disse que as redes sociais deram voz aos imbecis. Mas o que realmente penso é que existe um problema recorrente nas redes sociais: a invisibilidade. Elas são uma espécie de antiga banca de revistas, um quiosque repleto de publicações, mas nem todas ficam visíveis. Algumas ofuscam as outras. Então, a grande questão é como se tornar visível. Eu posso criar um canal no YouTube ou ter uma conta em qualquer rede social, mas o problema é quantas pessoas realmente verão. Isso é algo com o qual todos estão lidando hoje. Eu, por exemplo, gostava muito do antigo Twitter, agora chamado X. Eu tinha um bom número de seguidores lá. Mas o Twitter acabou. Então, fui para uma outra rede, chamada Bluesky. É bem legal, porque é o Twitter sem o Elon Musk, o que já é um bom começo. Mas o problema é que as pessoas ainda não estão lá. Lá, você pode dizer o que quiser, porque não tem muita gente propagando discurso de ódio. O clima é tranquilo. As redes sociais são como bares: tem gente que prefere um bar dançante, outros gostam de um lugar mais tranquilo, onde seja possível conversar sem a música alta. O Bluesky é esse tipo de bar, tranquilo, onde você pode conversar pacificamente. O problema é que não tem muita gente lá, então, não há muita visibilidade. A saudade do velho X é inevitável – onde, apesar de escorrer sangue, havia sempre uma grande audiência. O grande desafio é como se tornar visível. E a lógica parece simples: para se tornar visível, é preciso intensificar a provocação. Como as redes são livres, salvo pela moderação ou algum processo judicial, qualquer um pode ir lá e dizer o que normalmente diria em um bar. E, se antigamente isso repercutia apenas na mesa de quem falava ou, no máximo, no bar inteiro, agora pode se espalhar globalmente. O ódio e o ressentimento, que antes eram desabafos de quem se sentia isolado e não podia expressar suas frustrações, agora estão nas redes sociais. A maioria ainda fala sozinha, sem ser ouvida. Mas, dependendo da magnitude da provocação, o que se diz pode repercutir e criar a falsa impressão de que quem espalha discurso de ódio está sendo ouvido. Voltamos então à questão inicial: as paixões negativas geram mais engajamento do que as positivas. Elas engajam quando atingem um certo nível de provocação, algo que soa diferente. Eu vejo isso muito no futebol, porque sou fã de futebol. Se eu comento sobre um jogo dizendo que o time não jogou bem, isso não vai gerar grande repercussão. Agora, se eu disser que o time foi péssimo, que deve demitir todo mundo, aí sim, a repercussão é garantida. A lógica das redes é aumentar a intensidade, dobrar a aposta, chegar ao exagero máximo. É uma lógica hiperbólica, que só funciona dessa forma. Talvez, com o tempo, à medida que a literacia digital avance, a gente aprenda a usar as redes para um sentido mais prosaico, racional, informativo e dialógico. Mas, por enquanto, as redes sociais não são dialógicas. Elas são espaços de provocação, porque são estruturadas para recompensar o número de visualizações. Para ter engajamento, você precisa conquistar likes, ter seu conteúdo replicado, gerar mais interações. Até agora, só com razoabilidade, a lógica hiperbólica é que traz engajamento. Então é um problema. Talvez fosse necessário educar as crianças para uma lógica diferente. Mas, como estamos num mundo hipercompetitivo, a lógica do engajamento também é pautada pela competição. É como um jogo de cartas: para vencer a carta anterior, preciso dar um golpe mais forte, mais provocador. Isso cria uma escalada sem fim. Muitas pessoas acabam adoecendo, desistindo ou se exaustando, porque o processo é insustentável. E, como as redes seguem uma lógica de recompensa, quem não tem a repercussão esperada começa a se inquietar. Se minha postagem não teve tantas visualizações, fico preocupado e percebo que preciso aumentar a provocação. Isso é um teste constante de popularidade. E o mais interessante é que, quando o influenciador vê que algo não está funcionando, ele vai procurar algo mais chamativo. Ele vai fazer algo mais ousado. Eu acredito que, em algum momento, haverá uma saturação. Vamos parar e recomeçar. Mas ainda não chegamos lá. O perfil do influenciador típico das redes sociais, infelizmente, é o de alguém como o Pablo Marçal, um provocador. E, como ele é um provocador, todo mundo passa o tempo inteiro desmentindo o que ele diz, muitas vezes sem que ele se importe com isso. É uma lógica patológica e, insisto, ainda não sabemos como domar isso.
RJR – Isso me lembra uma iniciativa de Fernando Henrique Cardoso. Quando ele era presidente, falou sobre a importância da Internet, afirmando que ela abriria espaço para um novo renascimento. Em um encontro com empresários em 1996, ele estava entusiasmado, mas os empresários não deram atenção ao assunto. Mais tarde, uns dez anos depois, já ex-presidente, ele chamou várias pessoas, incluindo eu, para o Instituto Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo, e disse que queria criar um espaço de discussão política, não partidária, chamado “Observador Político”. A ideia dele era clara: a Internet seria um espaço de debate público. Mas deu tudo errado. O Observador Político surgiu, mas foi unilateral. A lógica que você mencionou – a de dobrar a aposta no conflito e não no diálogo – realmente prevaleceu. A Internet não é um espaço de diálogo. Eu espero que, em algum momento, isso seja possível. Talvez, para isso, seja necessária uma saturação. Mas eu queria te fazer uma última pergunta. Você é um grande jornalista e um notável cientista da comunicação. A ciência lida com uma ideia de verdade, que é sempre passível de ser modificada ou superada. Mas, no fundo, algo permanece, mesmo que seja alterado um pouco. O exemplo clássico é: a água ferve a 100 graus. Sim, mas dependendo da pressão atmosférica, o ponto de ebulição pode variar. A pressão atmosférica não refuta os 100 graus, ela só permite variações. O jornalismo também trabalha com a busca pela verdade, com a apuração de fatos. O jornalismo investigativo é um bom exemplo disso. Minha hipótese é que a extrema-direita é hostil tanto ao jornalismo quanto à ciência, porque lida com inverdades, com a produção de mentiras. Isso também pode ocorrer por parte da extrema-esquerda, embora hoje esta tenha praticamente desaparecido. O que você pensa sobre esse papel?
JM – Infelizmente, até agora, a Internet e as redes sociais não são uma ágora, mas um ringue de lutas, um mundo de luta livre. E, normalmente, nas lutas formalizadas, existem regras, mas nas redes sociais, todo golpe é válido. O único critério de validação do golpe é a repercussão. O que vale é o engajamento. Isso ainda precisa ser administrado e transformado. Como jornalista, acredito que o papel do jornalista é buscar a verdade factual, aquela que pode ser demonstrada. Tenho a hipótese de que, devido a todas as distorções em torno de termos como objetividade, imparcialidade e neutralidade, as grandes empresas de mídia se apresentaram como imparciais, quando muitas vezes não são. Passou-se a argumentar que é impossível alcançar imparcialidade, mas tenho a sensação de que, no dia a dia, muitas vezes somos imparciais. Normalmente, a discussão surge assim: “Mas qual é o seu conceito de imparcialidade?” Dado o conceito, o interlocutor diz: “Não, mas não é isso.” E nunca se chega a um consenso. Se estabelecermos a imparcialidade de forma simples, talvez até simplória, eu acho que é o que acontece muitas vezes. Eu sou um torcedor apaixonado do Internacional de Porto Alegre, mas se sou comentarista de um jogo entre Internacional e seu maior rival, o Grêmio, e o atacante do Grêmio está prestes a fazer um gol e leva uma voadora do zagueiro colorado, vou dizer que não foi pênalti? Se eu disser que foi pênalti, estou sendo imparcial ou não? Acho que é muito comum, quando nossos interesses partidários são atingidos, conseguirmos ser imparciais. Mesmo que isso vá contra o nosso próprio interesse. A verdade é tal: houve o pênalti, houve a fraude, houve a corrupção. Por fim, tenho uma hipótese: acho que tanto a direita quanto a esquerda contribuíram para a ideia de que a verdade no jornalismo é impossível, que a imparcialidade não existe, e, por trás disso, há um objetivo claro: fazer com que todos se assumam como militantes. Se não há objetividade e imparcialidade, então todos podem militar. As forças de manipulação da política no Brasil, por exemplo, se aproveitam disso. Quando você diz que a extrema-direita não acredita na ciência, você está dizendo uma coisa relevante. Mas não é só a extrema-direita. A extrema-esquerda tem suas versões disso também, com menos força, mas também busca uma forma mais militante de fazer ciência. Acho que, na verdade, a luta é mais para tomar o controle da narrativa. Para tomar o controle da narrativa, você precisa primeiro enfraquecer a noção de verdade. E a verdade científica e jornalística foi o alvo. Quando se ataca a verdade, se enfraquece a credibilidade de qualquer um. Isso é uma derrota histórica. (Figura 2)