De menino negro e pobre da Bahia a referência nacional, a história de um médico que humanizou tratamentos e desafiou preconceitos em nome da ciência.
Juliano Moreira nasceu em 6 de janeiro de 1872, em Salvador, Bahia, em uma sociedade marcada pela escravidão e pelo racismo científico. Filho de Galdina Joaquina do Amaral, uma mulher negra que trabalhava como empregada doméstica, e do português Manoel do Carmo Moreira Junior, ele superou barreiras sociais para se tornar um dos maiores nomes da medicina brasileira. Ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia aos 14 anos e, aos 18, concluiu o curso com uma tese que já demonstrava sua visão inovadora.
Uma tese revolucionária
Sua tese de formatura, “Etiologia da Syphilis Maligna Precoce”, trouxe abordagens inéditas sobre a sífilis, doença que devastava populações no final do século XIX. O trabalho chamou a atenção internacional, marcando o início de uma carreira que revolucionaria a psiquiatria no Brasil. Inicialmente focado em dermatologia, Juliano Moreira aprofundou-se no campo da saúde mental, tornando-se pioneiro na introdução de práticas mais humanas no tratamento psiquiátrico.
Desafios e confrontos com o racismo científico
Durante sua formação, Juliano Moreira teve como professor Raymundo Nina Rodrigues, um dos expoentes do racismo científico no Brasil. Raymundo Rodrigues defendia teorias de degenerescência racial que associavam a miscigenação a doenças mentais e outros males sociais. Juliano Moreira rejeitou essas ideias, posicionando-se contra a visão predominante de que características psicológicas e comportamentais eram determinadas pela raça.

Figura 1. Juliano Moreira (quinto da esquerda para a direita), entre 1896 e 1902.
(Foto: Arquivo pessoal de Fátima Vasconcelos. Reprodução)
Juliano Moreira argumentava que doenças mentais estavam ligadas a fatores como alcoolismo, sífilis, condições sanitárias precárias e falta de educação, combatendo a ideia de que climas tropicais ou misturas raciais causavam degeneração. Embora não tenha questionado diretamente a teoria da degenerescência como um todo, seu trabalho trouxe uma perspectiva mais científica e menos preconceituosa, enfrentando o racismo disfarçado de ciência.
Humanizando o tratamento psiquiátrico
Entre 1895 e 1902, Juliano Moreira realizou estudos e estágios em diversos países da Europa, onde conheceu teorias e práticas avançadas em psiquiatria. Ao retornar ao Brasil, implementou mudanças significativas no modelo de atendimento aos pacientes psiquiátricos. Ele aboliu práticas desumanas como o uso de camisas de força e grades nas janelas, criou oficinas terapêuticas e incorporou a música como parte do tratamento.
“Aprofundou-se no campo da saúde mental, tornando-se pioneiro na introdução de práticas mais humanas no tratamento psiquiátrico.”
No Hospício São João de Deus, na Bahia, inaugurou o Pavilhão Seabra, equipado com oficinas de trabalho que promoviam a recuperação dos pacientes e lhes forneciam uma fonte de renda. Sua abordagem integrativa e empática foi revolucionária, tornando-se referência para gerações futuras.
Reconhecimento e legado
Mesmo enfrentando preconceitos, Juliano Moreira teve uma carreira brilhante. Foi o primeiro negro a ser eleito membro da Academia Nacional de Medicina e patrono da cadeira 57. Além disso, seu nome batiza instituições de saúde em reconhecimento às suas contribuições.
“Seu trabalho trouxe uma perspectiva mais científica e menos preconceituosa, enfrentando o racismo disfarçado de ciência.”
Em 2001, a Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia criou o Prêmio Juliano Moreira, destinado a estudantes que se destacam em atividades de extensão. Seu trabalho é preservado no Memorial Juliano Moreira, localizado em Salvador, que também busca manter viva sua memória e legado.

Figura 2. Hospital Juliano Moreira é referência em saúde mental em Salvador.
(Foto: Divulgação)
Juliano Moreira faleceu em 2 de maio de 1933, em Petrópolis, vítima de tuberculose. Sua trajetória, entretanto, permanece um exemplo de resistência, ciência e humanidade. Sua luta contra o racismo científico e seu pioneirismo na psiquiatria são pilares para entender a importância de práticas científicas fundamentadas no respeito e na ética.