Cesar Lattes e a bola de fogo

Fenômeno influenciou pesquisas atuais na área de física de partículas e consolidou parceria científica entre Brasil e Japão

Resumo

Nesta nota, relato lembranças – do ponto de vista de um observador lateral – sobre o Professor Lattes e a Colaboração Brasil-Japão (CBJ), bem como comento a influência que estudos sobre o fenômeno “bola de fogo” teve para pesquisas atuais na área de plasma de quarks e glúons.

Lembranças sobre Lattes e a CBJ

Como é bem conhecido, o nome de Cesar Lattes (mais precisamente, Cesare Mansueto Giulio Lattes) faz parte de um dos mais importantes capítulos da história da física no Brasil e no mundo, de forma que existem muitos documentos disponíveis sobre ele e suas realizações – por exemplo, veja os artigos deste número especial, as referências (1-3) ou busque o nome dele na internet.

Meu contato com Lattes representa só um lapso no tempo e no espaço da vida e obra desse físico brasileiro. Ele ficou mundialmente conhecido pelas duas detecções (natural e artificial) do méson pi (π). Mas sua obra vai bem além desses feitos, o que me obriga a afirmar que não tenho condições de acrescentar nada de novo às suas múltiplas atuações e contribuições.

Contudo, no plano pessoal, tenho algo a oferecer: Lattes foi o fator decisivo na minha vida no Brasil, que se iniciou há mais de meio século. Além disso, ele influenciou grande parte de minhas linhas de pesquisa desde então.

Assim, nesta ocasião muito especial, me sinto muito feliz e honrado por ter a oportunidade de relatar algumas de minhas lembranças pessoais sobre Lattes, bem como comentar sobre sua influência em minha vida como pesquisador.

É bem conhecido que, no início da década de 1960, Lattes começou um projeto de pesquisa sobre raios cósmicos no observatório no monte Chacaltaya (Bolívia), a cerca de 5 mil metros de altitude em relação ao nível do mar. Essa colaboração se deu com um grupo de físicos japoneses liderados por Yoichi Fujimoto. (Figura 1)


Figura 1. Cesar Lattes em Chacaltaya
(Fonte: Arquivo Unicamp. Reprodução)

 

Para quem não a conhece, a Colaboração Brasil-Japão (mais conhecida pela sigla CBJ) pode aparentar estranha: afinal, reunia dois países que, literalmente, estão em lados opostos da Terra – e isso se deu numa época em que a viagem entre Brasil e Japão era bem mais difícil do que é hoje.

Mas houve vários fatores que impulsionaram a CBJ. Naturalmente, um deles foi a forte relação entre Cesar Lattes e Hideki Yukawa, a partir da descoberta da partícula mesón π (hoje, píon), prevista teoricamente em 1935 por esse físico japonês e detectada por Lattes e outros pesquisadores[1-4] em 1947, no Reino Unido, e no ano seguinte, nos Estados Unidos.

A CBJ começou a ser planejada ainda em 1959, como mostra carta de Yukawa para Lattes.[5] Nessa época, no Japão, o grupo de pesquisa em raios cósmicos liderado por Yoichi Fujimoto e Jun Nishimura desenvolveram uma nova forma de usar emulsões nucleares[6] para detectar raios cósmicos.

 

“O modo como e quais partículas são produzidas numa colisão contém informações sobre os mecanismos de interação entre as partículas elementares.”

 

Essa técnica ficou conhecida como “câmara de emulsão nuclear”. A ideia era construir um bloco de várias camadas de emulsões nucleares alternadas com placas de chumbo. Também eram inseridas placas fotográficas sensíveis aos raios-x. O conjunto final lembra as camadas de um sanduíche.

Essas câmaras tinham a vantagem de não só reduzir o tamanho das emulsões nucleares, mas também de aumentar a precisão na determinação da natureza dos traços criados por raios cósmicos nessas chapas. No Japão, a eficiência dessa técnica foi verificada em experimentos sobre raios cósmicos feitos com balões e no alto de montanhas.

Lattes se interessou pela ideia de usar as câmaras de emulsão nuclear no observatório de Chacaltaya. E, assim, iniciou-se a colaboração Brasil e Japão (CBJ). O lado do Japão ficou responsável em fornecer as emulsões nucleares e o material da câmara. A parte do Brasil, por arrecadar recursos para a viagem e montagem das câmaras naquela montanha.

Vale comentar que, além do motivo científico, o grupo de físicos japonês tinha outro J(igualmente forte) para estabelecer a colaboração: era uma forma de agradecer à colônia japonesa no Brasil (ver, por exemplo, as referências 2, 7 e 8).

Quando eu era ainda aluno de graduação na Universidade Waseda (Tóquio), os professores Yoichi Fujimoto e Shun-ichi Hasegawa já estavam trabalhando na CBJ. Como o tema de minha tese de bacharelado era a equação da matéria nuclear e sua aplicação à estrutura de estrela de nêutrons, eu tinha muito interesse em física de partículas elementares e raios cósmicos. Por isso, visitava frequentemente o laboratório de ambos os professores e aproveitava a ocasião para conversar com colegas de turma que trabalhavam nessas áreas.

O ambiente do laboratório sempre foi muito aberto, e nós costumávamos ficar lá até muito tarde, batendo papo regado com um pouco (?!) de álcool. Com isso, tive a chance de observar de perto como funcionava a CBJ, conhecendo os nomes de pesquisadores brasileiros que participavam da colaboração: Cesar Lattes, Alfredo Marques, Neusa Amato, Anna Maria Endler, Marta Mantovani, Edison Shibuya, Armando Turtelli Jr., entre tantos outros.[9]

Ainda me lembro de que Hasegawa estava no Brasil em 1964, logo após o golpe militar. Nessa ocasião, escreveu carta para o Prof. Fujimoto em que reclamava que o salário dele do Japão tinha sido totalmente congelado, sendo obrigado a comer bananas todos os dias. O problema é que, naquela época, no Japão, a banana era uma fruta importada e muito cara. Reagindo ao conteúdo da carta, nós estudantes comentávamos: “Que inveja!”.

 

“Foi por meio da interação altamente energética de raios cósmicos com núcleos atômicos atmosféricos que foram descobertos tanto o múon (à época, méson mi), na década de 1930, quanto o píon, na seguinte.”

 

No fim da década 1960, meus colegas seniores, Akinori Ohsawa, primeiro, e Toru. Shibata no ano seguinte, viajaram ao Brasil e foram a Chacaltaya, para participar do trabalho da CBJ. A tarefa de ambos era semelhante: montar e recolher as câmaras de emulsões. As análises das imagens dos traços deixados pelos raios cósmicos nas emulsões nucleares foram feitas na Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)[10] e no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). No Japão, eram feitas principalmente em Waseda. Nessa época, ouvi muito de Ohsawa e Shibata sobre como era a vida no Brasil e fiquei bastante atraído.

Na década de 1960, o Japão estava num período de expansão econômica muito rápida, e os estudantes formados eram imediatamente contratados pelas indústrias e empresas. Mas, para quem queria continuar na comunidade acadêmica, a situação era extremamente difícil – havia visão generalizada de que a física de partículas e astrofísica não tinham aplicação nos temas que interessavam à iniciativa privada. Nesse período, raramente, eram abertas novas vagas nas universidades. Assim, quando eu estava terminando meu doutorado, não havia possibilidade alguma de conseguir uma posição universitária ou mesmo um pós-doutorado.

Um dia, encontrei com Fujimoto no metrô a caminho da universidade e perguntei a ele se poderia me indicar para um pós-doutorado fora do Japão. Ele pensou um pouco e, por fim, me perguntou se eu gostaria de ir para Brasil. Explicou que, recentemente, Lattes o tinha sondado sobre a possibilidade de conseguir um jovem teórico para trabalhar no Brasil. Minha resposta foi imediata – e sem pensar muito sobre os detalhes da empreitada: “Sim!”

Com a ajuda de Alfredo Marques, me instalei no CBPF, no Rio de Janeiro (RJ), no fim de 1971. Pouco depois, visitei a Unicamp, no estado de São Paulo, para agradecer a Lattes a oportunidade de emprego. Ele convidou a mim e a Shibata para jantar na casa dele. Era meu primeiro contato com o famoso Cesar Lattes – em minha cabeça, era como encontrar Hideki Yukawa, que ganhou o Nobel de Física de 1949, pela proposição do píon. Portanto, fiquei bastante tenso.

Quando chegamos à casa de Lattes, já estava escuro. Ele abriu a porta, cumprimentou Shibata, e, me olhando, disse: “Ah! Você é o Kodama. Uma pergunta. Os elétrons de um átomo, por que eles ficam estáveis?”. Fiquei assustado, pois estávamos ainda fora da casa – e eu com a minha mala na mão. Demorei para abrir a boca, pois não tinha entendido direito a pergunta. Mas, de dentro da casa, dona Martha, mulher de Lattes, gritou: “Cesare, o jantar está na mesa!”. Fui salvo, literalmente, pelo gongo.

Naquela noite, Lattes não repetiu a pergunta no jantar, mas, na hora de se despedir, tocou novamente no assunto. Quando voltei ao Rio de Janeiro, levei quase uma semana para mostrar que, pela mecânica clássica, a órbita de elétron em torno de um núcleo ficaria instável, sendo necessária a mecânica quântica para resolver a questão.

Na verdade, essa resposta é bem conhecida e está nos livros-textos. Mas achei que Lattes queria me testar e ver como eu responderia à sua pergunta. Escrevi, então, uma carta para ele, mostrando todos os cálculos em detalhe.[11] A carta resposta dele foi bem lacônica: “OK”.

Posteriormente, encontrei Lattes várias vezes no laboratório no CBPF de Neusa Amato, membro da CBJ. O laboratório me lembrava um pouco aquele de Fujimoto na Universidade Waseda – acredito que, devido à saudade do Japão, eu visitava o local frequentemente. Fora o primeiro susto, Lattes foi sempre suave comigo e costumava me contar piadas (em particular, sobre japoneses). Nessas ocasiões, ele nunca falava em inglês comigo. Infelizmente, meu português à época não era suficientemente bom para entender todas as piadas – hoje, desconfio que algumas seriam politicamente incorretas…

Alfredo Marques – à época diretor do CBPF – costumava me contar vários episódios sobre Lattes, seu grande amigo. Lembro-me em especial de um deles: quando Marques levou Lattes para uma consulta médica que este último não queria ir. Os dois estavam sentados na sala de espera, e Lattes seguia reclamando. Quando o médico apareceu e perguntou “Sr. Lattes?”, este, imediatamente, apontou para Marques e disse: “Ele”. O médico quase levou Alfredo Marques para a sala de atendimento.

Lattes gostava de fazer esse tipo de brincadeira inesperada. E ficou famoso por esse tipo de comportamento (às vezes, excêntrico). Pessoalmente, desconfio da veracidade de alguns dos episódios contados por ele. Por exemplo, aquele em que ele queria levar um livro da Biblioteca do CBPF para a casa. A bibliotecária pediu para ele assinar o registro de saída de livros. Ele respondeu que não ia assinar. A funcionária, obviamente, ficou constrangida e explicou para ele que alguém tinha que assinar. Então, ele, tranquilamente, levantou seu cão, Arthur, e colocou a marca da pata dele no registro…

Apesar dessas excentricidades, Lattes sempre foi extremamente sério em assuntos que envolviam trabalho acadêmico. Uma vez, fui convidado para ser membro de uma banca de tese de doutorado relativa a temas diretamente ligados à CBJ. Antes da defesa, ele chamou todos os membros da banca e explicou o significado e a complexidade da física do CBJ, bem como a importância do trabalho da tese (particularmente, para os membros teóricos da banca). Fiquei impressionado como ele se preocupava com a formação de seus orientados com muito carinho.

Em outra ocasião, fui convidado para dar uma aula sobre a teoria de matriz S e o polo de Regge, para membros e estudantes do grupo da CBJ na Unicamp. Isso me fez ficar com a consciência um pouco mais leve: até então, eu achava que não havia dado contribuição científica para a CBJ, a qual, por sua vez, havia estimulado meu interesse de pesquisa ao longo da carreira.

 

Bolas de fogo – Produção múltipla de partículas

Quando se fala em “bola de fogo” (ou, por vezes, “bolas de fogo”), o termo está imediatamente associado a Cesar Lattes – e chegou a ser muito popular entre estudantes e até funcionários do CBPF à época da descoberta desse fenômeno de altas energias, no fim da década de 1960.

Isso se deve, em parte, pelo fato de as bolas de fogo terem sido uma das principais descobertas da colaboração. Esse fenômeno envolve a produção múltipla de partículas causada pelo choque de raios cósmicos contra núcleos atômicos da atmosfera. No instante da colisão, um estado de altíssima densidade de energia (bola de fogo) é formado e, rapidamente, decai em muitas partículas. (Figura 2)


Figura 2. Fenômeno envolve a produção múltipla de partículas causada pelo choque de raios cósmicos contra núcleos atômicos da atmosfera. No instante da colisão, um estado de altíssima densidade de energia (bola de fogo) é formado e, rapidamente, decai em muitas partículas.
(Crédito: Physicsworld.com. Reprodução)

 

O modo como as partículas são produzidas numa colisão contém informações sobre os mecanismos de interação entre as partículas elementares. Portanto, sua observação pode fornecer a chave para responder a questões fundamentais (eternas), como: “O que é o constituinte fundamental da matéria?”, “Qual é o mecanismo da interação?”

Foi por meio da interação altamente energética de raios cósmicos com núcleos atômicos atmosféricos que foram descobertos tanto o múon (à época, méson mi), na década de 1930, quanto o píon, na seguinte.

A chave fundamental para o fenômeno ‘bola de fogo’ é a famosa fórmula de Einstein que relaciona energia e massa:

 

E = mc2

 

onde E é a energia, m é a massa, e c é a velocidade de luz. Ela indica que a energia e a massa são equivalentes. Em outras palavras, a massa pode se converter em energia e vice-versa – com taxas de eficiência variáveis. Qualquer processo que acompanhe a produção de energia também acompanha a variação da massa. Por exemplo: uma reação química, tipo a queima de uma folha de papel, causa a conversão de massa em energia na ordem de 10-6 (um sobre um milhão)%, ou seja, imperceptível para nós. Mesmo numa reação nuclear, a proporção da variação da massa convertida em energia é da ordem de apenas 0,1%.

Inversamente, podemos converter a energia em massa, inclusive com taxas altíssimas de eficiência. Nas colisões entre partículas, a energia incidente de colisão pode ser convertida quase totalmente em massa, levando à produção múltipla de partículas. Esse fenômeno foi observado já na década 1950, por meio de traços de raios cósmicos em emulsões nucleares.

O primeiro modelo teórico de bola de fogo foi proposto por Enrico Fermi,[12] em 1950. Nele, o pesquisador supôs que, nas colisões, um gás de píons em alta temperatura se forma e explode isotopicamente no referencial de seu centro de massa, quando atinge seu estado de máxima compressão. Mais tarde, Lev Landau[13] introduziu a dinâmica dessa bola de fogo, por meio de uma modelagem hidrodinâmica relativística. Esse fenômeno é considerado excelente para estudar a origem e a natureza da interação entre partículas elementares sob condições de extrema temperatura e densidade. “Bola de fogo” é, portanto, o nome geral que se dá aos estados iniciais que levam à produção múltipla de partículas.

Com a descoberta das bolas de fogo pela CBJ, a colaboração passou, então, a tentar identificar esse fenômeno por meio das trajetórias deixadas pelas partículas produzidas na câmara de emulsão, bem como inferir o mecanismo de sua produção, com base na distribuição e energias estimadas.

Temos que lembrar que, à época (fim da década de 60), ainda não existiam aceleradores de partículas com energia suficiente para produzir bolas de fogo. Portanto, os raios cósmicos eram a única forma de ter acesso a esses fenômenos.

Mas, quando se trata de raios cósmicos, os eventos observados são aleatórios e não há como controlar as condições iniciais dos eventos – ou seja, não se pode definir à priori nem a energia incidente da colisão, nem o tipo da partícula incidente e do alvo. Essas informações são inferidas à posteriori, com base na análise dos traços do evento registrado nas emulsões nucleares.

Em outras palavras, os eventos observados na câmara de emulsões têm que ser analisados um a um, para determinar que tipos de partículas foram produzidas e estimar a energia incidente que provocou o evento. Dessa forma, a precisão dos dados acaba sendo bastante limitada.

Nesse aspecto, experimentos em aceleradores têm uma grande vantagem: podem se definir à priori o tipo da colisão e sua energia e, com alta precisão, detectar as partículas produzidas. A partir da década de 1950, com a ajuda de aceleradores (então, não muito potentes) e dos raios cósmicos, muitas partículas foram descobertas. Foram tantas que mereceram até piada do norte-americano Willis Eugene Lamb Jr. em discurso pelo agradecimento do Nobel de Física de 1955: “Tenho escutado que o descobridor de uma nova partícula elementar costumava ser agraciado com o prêmio Nobel, mas isso, agora, deveria ser punido com uma multa de US $10.000.” Com isso, nós falávamos, brincando: “Agora, o prêmio Nobel vai para quem reduzir o número de partículas”.

 

“Através da análise de densidades das trajetórias deixadas pelas partículas produzidas, foram estimadas pela CBJ as energias da bola de fogo que deu origem a cada evento, tendo identificada a existência de distintos tipos de bola de fogo”.

 

De fato, a piada acima acabou deixando de ser uma piada. Com a descoberta de novas partículas, vários pesquisadores passaram a tentar entender como classificá-las em termos de diferentes composições de poucas partículas fundamentais, em analogia ao que os químicos fazem ao classificar compostos com base em poucos elementos químicos, que ficam bem determinados apenas pela quantidade de prótons e nêutrons que contêm em seu núcleo.

O precursor dessa abordagem foi Shoichi Sakata, em 1956. Suas ideias abriram caminho para classificar as partículas a partir de um formalismo matemático conhecido como teoria de representação de grupo.

Esse tipo de abordagem foi estendido, em 1964, por Murray Gell-Mann e George Zweig, que introduziram novas partículas fundamentais hipotéticas, os chamados quarks por Gell-Mann, e aces por Zweig. A diferença fundamental dessas partículas hipotéticas é que elas têm cargas elétricas que são fração da carga do próton (por exemplo, +2/3 ou -1/3). Em 1969, Gell-Mann recebeu o prêmio Nobel por “suas contribuições e descobertas sobre a classificação de partículas elementares e suas interações”.

Hoje, o entendimento sobre as propriedades das partículas elementares está sintetizado no chamado Modelo Padrão de Partículas, que engloba as três formas de interação: fraca, eletromagnética e forte.

No Modelo Padrão, no setor de interação forte, as partículas tradicionalmente consideradas elementares – por exemplo, próton, nêutron e píon, denominados hádrons – não são mais nem elementares, nem objetos puntiformes. Elas são constituídas por quarks, ficando confinadas a um espaço de raio inferior à ordem de 10-13 cm. É a combinação de quarks que define as cargas e tipo de um hádron. Por exemplo, o próton é formado por três quarks, enquanto o píon por um quark e um antiquark.

Por sua vez, os quarks interagem entre si por meio da força de um campo de “glúons”. Esse campo atua entre os quarks de forma que estes nunca podem ser observados de forma isolada. Ou seja, os quarks estão sempre “confinados” ao espaço que as partículas elementares ocupam. A teoria atual que descreve as interações de quarks e glúons é chamado cromodinâmica quântica.

Mas, numa situação em que a densidade e/ou a temperatura das colisões ficam muito altas, os hádrons podem “derreter”, formando um novo estado da matéria em que quarks e glúons se comportam (quase) livremente, como se fossem elétrons e núcleos num plasma. Esse estado é chamado plasma de quarks e glúons (QGP, na sigla em inglês). O estado de QGP pode ser atingido, por exemplo, no interior de numa estrela de nêutrons, onde a densidade da matéria fica extremamente alta, e as áreas de confinamento de cada nêutron se fundem.

O estado de QGP também ocorre no processo de colisão da matéria nuclear a altas energias, ou seja, naquele que leva à formação de bola de fogo. Hoje, os colisores de íons pesados, como os do CERN (Organização Europeia para a Investigação Nuclear), podem atingir o estado de QGP e, portanto, estudar as propriedades desse estado – ver, por exemplo, os artigos de revisão[14] e as referências ali citadas.

 

Eventos extremos e plasma de quarks e glúons

Do fim da Segunda Guerra até o fim da década de 1970 – quando se deu o desenvolvimento de aceleradores de altas energias – o alvo dos experimentos com raios cósmicos passou por vários redirecionamentos. O principal deles: a área passou a privilegiar a detecção de sinais de fenômenos astrofísicos ou cosmológicos em detrimento do estudo do mecanismo de interações das partículas elementares.

Nesse sentido – exceção para os casos de experimentos de neutrinos e a busca da matéria escura – podemos dizer que a CBJ foi a última geração de experimentos de raios cósmicos arquitetada para descobrir novas partículas elementares e investigar suas interações.

As bolas de fogo espetaculares observadas pela CBJ – por exemplo, o evento Andromeda[16] e os misteriosos eventos Centauros[17] – estimularam muitos pesquisadores e jovens estudantes que acompanharam o desenvolvimento da CBJ. Pessoalmente, fiquei muito atraído pelos eventos Centauros no início da década de 1970, chegando a estruturar (infelizmente, sem sucesso) um modelo que quebrava a simetria espontaneamente no espaço de isospin.

Hoje, considerando a escala de densidade da energia estimada, acredito que os fenômenos de bola de fogo, observados pela CBJ, certamente, atingiram o estado de QGP. Assim, o fenômeno de produção múltipla (ou seja, a física da “bola de fogo”) acabou se tornando um dos temas principais de minha pesquisa ao longo da vida, a física do QGP.

De fato, o título de projetos submetidos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) ou outros órgãos de fomento eram sempre na linha “Propriedades de Matéria sob Condições Extremas”. Portanto, não seria exagero dizer que grande parte de minha vida como pesquisador girou em torno da “bola de fogo” de Cesar Lattes e da Colaboração Brasil-Japão. Sei que isso não ocorreu só comigo. Ocorreu também com muitos outros jovens pesquisadores à época, influenciados por Lattes.

Falando ainda de bola de fogo, tive a sorte de conhecer à época Yogiro Hama, da USP, que trabalhava com modelagem de produção múltipla de partículas, empregando, para isso, hidrodinâmica. Iniciamos uma colaboração bastante frutífera por longo tempo até mesmo depois de sua aposentadoria. Portanto, gostaria de aproveitar esta ocasião para manifestar meus sinceros agradecimentos a Hama e agradecer também aos muitos colegas com quem trabalhei sobre questões associadas à bola de fogo, além de Alfredo Marques, Yoichi Fujimoto e Shun-ichi Hasegawa. Por fim, agradeço a ajuda fundamental de Cássio Vieira para a revisão do texto e várias sugestões cruciais.

 

Capa. “Bola de fogo” é o nome geral que se dá aos estados iniciais que levam à produção múltipla de partículas.
(Fonte: SciTechDaily.com. Reprodução)

KODAMA, Takeshi. César Lattes e a bola de fogo. Cienc. Cult. [online]. 2024, vol.76, n.1, pp.01-08. ISSN 0009-6725.  http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20240002.
1) OLIVEIRA, ALFREDO MARQUES DE. Reminiscências de César Lattes. Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 27, n. 3, p. 467-482, 2005.
2) VIEIRA, CÁSSIO LEITE; VIDEIRA, ANTONIO AUGUSTO PASSOS. Carried by History: Cesar Lattes, Nuclear Emulsions, and the Discovery of the Pi-meson. Physics in Perspective, 2014. Doi: 10.1007/s00016-014-0128-6
3) VIEIRA, CÁSSIO LEITE; VIDEIRA, ANTONIO AUGUSTO PASSOS. História da Física – Artigos, ensaios e resenhas. Rio de Janeiro: CBPF, 2019.
4) Veja, por exemplo, 50 anos de Méson Pi e as referências ali contidas. Disponível em https://www.ghtc.usp.br/meson.htm
5) https://www.unicamp.br/unicamp_hoje/ju/marco2005/ju281pag06.html Para transcrição da carta de Yukawa, ver Revista Brasileira de Física, v. 12, n. 2, 1982.
6) Tipo de emulsão fotográfica sensível à passagem de partículas carregadas e capazes de registrar suas trajetórias (ver a referência-2 acima).
7) VIEIRA, CÁSSIO LEITE. Quando o Brasil ajudou a física do Japão. Scientific American Brasil, janeiro, 2014.
8) JUSTO, CAROLINA RAQUEL. Fundos para conter conflitos do pós-guerra na colônia japonesa beneficiaram física. Ciência e Cultura, v. 60, n. 2, 2008. ISSN 0009-6725, http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252008000200007
9) Veja a lista completa de participantes da CBJ em LATTES, C. M. G. et al. CHACALTAYA Emulsion Chamber Experiment. Supplement of the Progress of Theoretical Physics, n 47, 1971.
10) Em 1968, Lattes se transferiu da USP para a UNICAMP, então recém-construída.
11) Naquela época, ainda não existia nem a internet, nem o e-mail.
12) FERMI, E. High-energy nuclear events. Prog. Theor. Phys. v. 5, p. 571, 1950.
13) LANDAU, L. D. On the multiparticle production in high-energy collisions. Izv. Akad. Nauk SSSR Ser. Fiz. v. 17, p. 51, 1953.
14) HAMA, Y et al. Brazilian Journal of Physics v. 35, pp. 24-51, 2005; DE SOUZA, R. D. et al. Progress in Particle and Nuclear Physics v. 86, pp. 35-85, 2016 e as referências indicadas.
15) LATTES, C. M. G.; FUJIMOTO, Y.; HASEGAWA, S. Hadronic interactions of high energy cosmic-ray observed by emulsion chambers. Physics Reports v. 65, n. 3, October 1980, pp. 151-229.
16) O evento Andromeda foi estimado como uma colisão nuclear de energia de cerca de 16 mil teraelétrons-volt (ou 16 x 1015 eV). A forma da imagem na emulsão se parecia com a constelação de Andromeda – daí o nome.
17) Os eventos, também de altíssima energia, aparentemente não acompanham a produção de mésons pi. Esses nunca foram observados nos experimentos de aceleradores.
Takeshi Kodama é professor emérito do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi pesquisador titular do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF)(1972-1993) e professor colaborador do Instituto de Física da Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente coordena o programa "Física Nuclear e Aplicações" do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia.

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