Confira entrevista com a antropóloga e escritora Miriam Goldenberg, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Envelhecer é um privilégio, mas nem sempre é visto como tal. Em uma sociedade que valoriza a juventude e trata o envelhecimento como um fardo, Miriam Goldenberg desafia estereótipos e propõe uma nova perspectiva: a “bela velhice”. Antropóloga e escritora, com mais de 30 anos de pesquisa sobre gênero e envelhecimento, ela se tornou uma referência no tema, trazendo à tona questões como etarismo, autonomia e o prazer de viver a maturidade com leveza e propósito. “A antropologia é uma ferramenta essencial para demonstrar que nossos medos e inseguranças não são fracassos individuais, mas reflexos de uma cultura que nos pressiona, muitas vezes de forma invisível, a corresponder a um modelo inalcançável de juventude, beleza e saúde”, explica. Autora de mais de 30 livros, entre eles “A Invenção de uma Bela Velhice” (2020) e “A Arte de Gozar” (2023), Goldenberg faz de sua trajetória acadêmica e pessoal uma ponte para discutir como as mulheres podem se libertar das pressões sociais e encontrar satisfação em todas as fases da vida. Ativista contra a violência e a discriminação dos mais velhos, ela defende que o verdadeiro gozo da maturidade não está em um grande projeto de vida, mas em pequenos prazeres diários. “Para mim, cada mulher que se liberta inspira e liberta muitas outras que ainda estão aprisionadas em uma cultura que gera sofrimento, insegurança e medo”, destaca. Nesta entrevista, Miriam Goldenberg fala sobre sua pesquisa, os desafios de envelhecer no Brasil – um país que, segundo ela, ainda cultiva um forte etarismo – e a importância de ressignificar o envelhecimento. Com uma atuação ativa nas redes sociais, ela busca inspirar mulheres a assumirem a velhice como um momento de autonomia, prazer e liberdade.
Ciência & Cultura – Sua pesquisa sobre gênero e envelhecimento trouxe à tona questões fundamentais sobre como a sociedade lida com o envelhecimento, especialmente no caso das mulheres. Quais são, na sua visão, os principais estigmas e desafios enfrentados por mulheres mais velhas no Brasil? E como sua pesquisa contribui para desconstruí-los?
Miriam Goldenberg – Comecei a pesquisar envelhecimento, autonomia e felicidade em 1990. Em todas as minhas pesquisas, a busca pela autonomia na velhice foi um tema central, tanto para mulheres quanto para homens. Ao longo desses mais de 30 anos, percebi que um dos maiores desafios é enfrentar a violência – física, verbal e psicológica – que ocorre dentro das próprias famílias e combater a velhofobia presente em nossa cultura e em nós mesmos, especialmente nas mulheres. Chamo de velhofobia esse verdadeiro pânico que muitas mulheres de 30, 40, 50, 60 anos ou mais sentem diante do envelhecimento em uma sociedade que supervaloriza a juventude, a beleza, o corpo e a sensualidade. Mesmo mulheres poderosas, bem-sucedidas e financeiramente independentes sofrem com esse medo. O que mais me interessa nas minhas pesquisas é compreender esse sofrimento e encontrar caminhos para a libertação. Tenho me dedicado a esse tema há mais de três décadas, e acredito que “A Invenção de uma Bela Velhice” é o livro que melhor sintetiza essa busca. Nele, falo sobre os medos, as inseguranças e as vergonhas que tanto mulheres quanto homens sentem ao envelhecer em uma cultura velhofóbica.
“Esse olhar antropológico não apenas me permitiu entender melhor a minha cultura, mas também o sofrimento das pessoas que vivem nela, incluindo o meu próprio.”
C&C – Em sua trajetória acadêmica, você acompanhou a evolução das discussões sobre gênero, tanto na sociedade quanto na academia. De que maneira a antropologia tem contribuído para ampliar o entendimento dessas questões? E que transformações ainda são necessárias nesse campo?
MG – Sou antropóloga, professora, pesquisadora e escritora. Acabei de finalizar um novo livro, que será publicado este ano, provavelmente em março, no qual reflito sobre como a antropologia – e minha forma de escutar homens e mulheres de diferentes gerações – me ajudou a compreender meus próprios medos, inseguranças e vergonhas de envelhecer na cultura brasileira. Apesar de estudar outras áreas, como filosofia e psicologia – recentemente concluí meu terceiro pós-doutorado em psicologia social sobre envelhecimento, autonomia e felicidade – foi a antropologia que me ensinou a observar, escutar e compreender sem julgar. Esse olhar antropológico não apenas me permitiu entender melhor a minha cultura, mas também o sofrimento das pessoas que vivem nela, incluindo o meu próprio. A antropologia é uma ferramenta essencial para demonstrar que nossos medos e inseguranças não são fracassos individuais, mas reflexos de uma cultura que nos pressiona, muitas vezes de forma invisível, a corresponder a um modelo inalcançável de juventude, beleza e saúde.
C&C – Como professora aposentada da UFRJ, qual foi sua experiência na formação de novos pesquisadores e pesquisadoras, especialmente na área de estudos sobre gênero e envelhecimento? Quais são os maiores desafios para as mulheres nesse campo da antropologia?
MG – Não me considero aposentada. Trabalho todos os dias, quase 24 horas por dia – nem durmo! Continuo pesquisando, ensinando, orientando e escrevendo obsessivamente. Estou prestes a publicar meu 33º livro, e algumas das minhas obras já foram lançadas fora do Brasil, em países como Alemanha, Portugal, Turquia e Coreia do Sul. Além disso, escrevo quinzenalmente para a Vogue, semanalmente para a Folha de S.Paulo e dou aulas, conferências e palestras. Não paro – e nunca vou parar. Acredito que essa paixão pela pesquisa e pela antropologia me dá coragem para continuar. Para mim, cada mulher que se liberta inspira e liberta muitas outras que ainda estão aprisionadas em uma cultura que gera sofrimento, insegurança e medo. Meu objetivo é contribuir para que mais mulheres tenham autonomia e se sintam livres para viver a velhice de forma plena.
“Não podemos nos deixar abater nem nos tornar invisíveis, apesar da violência verbal e psicológica que ainda existe no meio acadêmico e em muitos outros espaços.”
C&C – O que você acredita que as universidades e instituições de pesquisa poderiam fazer para fomentar um ambiente mais inclusivo e apoiar mais efetivamente as mulheres cientistas, especialmente aquelas que trabalham com temas que envolvem questões sociais e culturais?
MG – Acabei de escrever um novo livro, que deve sair provavelmente em março, sobre como o meio acadêmico é extremamente rico, produtivo e apaixonante. Ensinar alunos de graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado me ensinou muito sobre fazer antropologia e ser professora. Sem essa experiência, eu não seria a mulher que sou hoje. No entanto, é também um meio extremamente competitivo, agressivo e, em alguns casos, até violento. Mas não acho que essa seja uma característica exclusiva do meio acadêmico. Creio que isso permeia todos os ambientes de trabalho na nossa sociedade. Também não vejo essa violência restrita às mulheres; já presenciei mulheres em posições de poder sendo extremamente competitivas e hostis com outras mulheres. Acredito que é preciso coragem para enfrentar essa realidade sem fugir dela ou se acovardar. Há muito espaço no meio acadêmico para que as mulheres produzam, escrevam e criem coisas incríveis. Temos inúmeros exemplos de antropólogas, no Brasil e no exterior, que deixaram um legado. Recentemente, escrevi um artigo sobre Berta Ribeiro, uma referência nos estudos indígenas, que construiu uma obra impressionante e foi muito mais do que “a mulher de Darcy Ribeiro”. Ela teve coragem de criar sua própria trajetória e se tornou protagonista de sua história. Não podemos nos deixar abater nem nos tornar invisíveis, apesar da violência verbal e psicológica que ainda existe no meio acadêmico e em muitos outros espaços.
C&C – Sua obra abrange temas cruciais sobre o lugar da mulher na sociedade e as diferentes fases da vida. Na sua opinião, como as narrativas sobre as mulheres podem ser mais bem representadas na academia e na sociedade para que se compreenda melhor a diversidade das experiências femininas?
MG – Já existem muitos estudos e pesquisas incríveis sobre a questão da mulher e o envelhecimento. Orientei centenas de alunos nesses temas. O problema é a pouca visibilidade dessas pesquisas dentro e fora do mundo acadêmico. Há um muro difícil de transpor. Poucos acadêmicos e pesquisadores conseguem ter espaço fora do meio acadêmico, e às vezes até dentro dele. É muito difícil que nossas pesquisas e estudos rompam essas barreiras e cheguem às pessoas que realmente se beneficiariam deles. Essa é minha maior angústia existencial. Às vezes me perguntam como me sinto ao ter tanto impacto na vida das pessoas mais velhas. Mas eu acho que o que faço ainda é pouco, muito pouco, apesar de trabalhar intensamente. O impacto real ainda é pequeno na sociedade. E isso porque escrevo para a Folha, para a Vogue, tenho livros publicados, dou entrevistas, apareço na televisão, faço palestras e conferências. Agora, imagine as pessoas que não têm essas oportunidades que eu tive e continuo tendo. Precisamos romper essa barreira para que nossas pesquisas tenham um impacto muito maior e mais concreto, no meu caso, na vida das pessoas mais velhas.
“Para superar os desafios, é preciso coragem diária. E a coragem se manifesta de diferentes formas.”
C&C – Em sua longa carreira, você enfrentou desafios como mulher e acadêmica. Como enxerga a evolução do espaço das mulheres na ciência e, em particular, nas ciências sociais e na antropologia? Quais são os maiores desafios ainda presentes e o que precisa ser feito para superá-los?
MG – Tenho lido e relido a obra de Clarice Lispector, suas cartas e crônicas, e uma frase dela se tornou meu mantra: “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta o nosso edifício inteiro”. Os desafios são grandes, mas acredito no conselho do meu melhor amigo, que tem 98 anos: “Tem que ter coragem, Miriam, coragem”. Todos os dias, tento praticar um ato de coragem, por menor que seja, pois os desafios estão sempre presentes. Hoje, vejo as mulheres ocupando espaços de poder e saber, protagonizando uma verdadeira revolução. No século passado, tivemos a revolução dos jovens; agora, vejo uma revolução das mulheres, especialmente das mais velhas. Para superar os desafios, é preciso coragem diária. E a coragem se manifesta de diferentes formas. No meu caso, ela está na escrita. Não sou de brigar, gritar ou competir. Minha coragem está em escrever. Talvez seja um defeito. Aos 21 anos, minha terapeuta me disse: “Pare de escrever e vá viver sua vida”. Nunca parei de escrever, porque sem escrever não sei viver. Talvez esse seja o “defeito” que sustenta meu edifício inteiro.