Processo e ocorrência
A desertificação consiste em um processo que pode ser desencadeado de forma natural por intempéries do clima e de forma antrópica, devido ao manejo inadequado do solo.
A variabilidade e mudança do clima ocorrem em qualquer região e o impacto nos recursos hídricos pode ser grave, principalmente quando o resultado é um déficit de longo prazo.[1] A exploração não planejada dos recursos naturais associada às intempéries do clima pode acarretar danos irreversíveis ao meio ambiente, como o desencadeamento de processos de desertificação.
A desertificação é um processo dinâmico de degradação da terra resultante de variações climáticas e atividades humanas. A principal causa é a retirada da cobertura vegetal, que provoca a exposição do solo aos agentes erosivos.[2] O solo sem a cobertura vegetal fica exposto à erosão eólica, solar e pluvial.
Embora a variabilidade temporal e espacial seja uma característica comum do clima, as mudanças climáticas se tornaram um tema de maior preocupação nas últimas décadas. As modificações nos padrões climáticos que estão sendo apresentados pelos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) podem acarretar o desencadeamento ou a aceleração de processos de desertificação em áreas mais vulneráveis. Segundo a Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação (UNCCD), entende-se a desertificação como “a degradação da terra nas zonas áridas, semiáridas e subúmidas secas, resultante de vários fatores, incluindo as variações climáticas e as atividades humanas”, considerando áreas susceptíveis aquelas com índice de aridez entre 0,05 e 0,65.[3] O Índice de Aridez (IA) consiste na razão entre a precipitação média e evapotranspiração potencial média em um determinado período. As áreas potencialmente suscetíveis ao processo estariam situadas dentro do IA de 0,05 a 0,65, que engloba as zonas de climas árido, semiárido e sub-úmido seco, segundo o United Nations Environment Programme (UNEP).[4]
A desertificação ocorre em diversas regiões do planeta. O Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) apresenta como área susceptível à desertificação no Brasil parte dos Estados de Alagoas, da Bahia, do Espírito Santo, do Maranhão, de Minas Gerais, da Paraíba, de Pernambuco, do Piauí, do Rio Grande do Norte e de Sergipe, além de todo o Estado do Ceará.[5] Correspondem, na sua maioria, área do semiárido, em particular área recoberta pela caatinga. A Caatinga é um bioma exclusivamente brasileiro, com biodiversidade adaptada às altas temperaturas e à falta de água. Esse bioma apresenta uma flora e fauna rica em endemismo, representando o maior núcleo de Florestas Tropicais Sazonalmente Secas (Seasonally Dry Tropical Forests – SDTF) dos Neotrópicos.[6] O desmatamento elevado no bioma Caatinga vem gerando processos de desertificação em diversas áreas, alterando diretamente a biota, o microclima e os solos.[7] Vale ressaltar que no Nordeste do Brasil, além das condições climáticas adversas de baixa pluviosidade, temperaturas elevadas e alta taxa de evaporação, os problemas socioeconômicos como pobreza, desigualdade social, concentração de terras e exploração de recursos acima da capacidade de suporte do ambiente surgem como intensificadores ao risco à desertificação.[8] (Figura 1)
Figura 1. A Caatinga é um bioma exclusivamente brasileiro, com biodiversidade adaptada às altas temperaturas e à falta de água, mas que está ameaçado pela desertificação.
(Foto: Agência Brasil/ Arquivo. Reprodução)
Os primeiros trabalhos sobre desertificação no Brasil foram coordenados pelo professor João de Vasconcellos Sobrinho, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), por volta de 1971, pioneiro no conceito de núcleos de desertificação, que destaca também que a produção acadêmica no Brasil acerca do tema compreende os mais variados aspectos.[5] Trata- se de um tema transdisciplinar com aspectos relacionados a diversas áreas como social, econômica e ambiental. O trabalho do CGEE apresenta um histórico dos importantes estudos sobre desertificação no Brasil. A ciência tem contribuído muito para o tema com produções contínuas e multi, inter e transdisciplinares. Tem-se o desafio de transformar esse conhecimento, juntamente com as políticas públicas formuladas em ações efetivas para o combate e o controle da desertificação, além de convivência com o semiárido, considerando a situação atual e com as projeções de cenários de mudanças climáticas.
Pesquisas de identificação, acompanhamento e projeções frente às mudanças climáticas
Como a área de desmatamento da caatinga vem crescendo, tanto por questões antrópicas como resultado de padrões ambientais e também relacionados às mudanças climáticas, é necessário o emprego de metodologias para acompanhamento das alterações na fenologia dessa vegetação. Nesse sentido, o sensoriamento remoto é uma importante ferramenta para avaliação da fenologia da vegetação caatinga (SDTF), principalmente por ter uma longa série de dados da vegetação, permitindo o relacionamento com diferentes fatores ambientais.[6] Diversas pesquisas nessa temática têm sido publicadas avaliando e reportando resultados em sítios experimentais diversos e com cenários de projeção de mudanças climáticas.[9, 10, 11, 12]
“Problemas socioeconômicos como pobreza, desigualdade social, concentração de terras e exploração de recursos acima da capacidade de suporte do ambiente surgem como intensificadores ao risco à desertificação.”
O uso de sensoriamento remoto e outras abordagens de modelagem permitem o acompanhamento da dinâmica da vegetação, considerando também os diversos cenários de mudanças climáticas. Estudos demonstram que o desmatamento da caatinga interfere nos fluxos de evaporação, reduzindo a fixação de carbono na atmosfera e influenciando na mitigação dos efeitos do acréscimo das concentrações dos gases do efeito estufa na atmosfera.[9] Investigações recentes que avaliaram áreas susceptíveis à desertificação utilizando dados de mudanças climáticas de oito modelos da Fase 6 do Projeto de Intercomparação de Modelos Acoplados (CMIP6), detectaram tendência de alta à moderada no aumento de áreas susceptíveis à desertificação no Brasil, com potencial risco de incrementos de áreas semiáridas. No cenário mais pessimista de mudança climática, os modelos projetam aumento médio de 6 ºC e variação da precipitação em torno de -10,0% a 4,5%.[10] Com maior aplicação voltada para dados de orbitais, um estudo de 2020 utilizou índices de vegetação obtidos por sensoriamento remoto e monitorou a sua resposta às variações de temperatura e precipitação, detectando grande potencial de aplicação dessa metodologia na elaboração de planos de gestão e conservação de ecossistemas naturais no contexto de mudanças climáticas e políticas de desenvolvimento sustentável.[12]
Recentemente, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) detectaram, pela primeira vez, a ocorrência de regiões áridas no país, utilizando dados de precipitação, temperatura máxima e mínima, radiação solar, velocidade do vento e umidade relativa para o período de 1961 a 2020.[13] Áreas com IA inferior a 0,20 (árido) somente foram constatadas no último período avaliado (1990-2020) em uma região localizada no centro norte da Bahia. Além disso, foi detectada tendência de aumento da aridez em todo o país, exceto na região Sul, fator associado às mudanças climáticas. O estudo aponta, ainda, o efeito da expansão de áreas semiáridas no país, com destaque para o Nordeste (Figura 2), a uma taxa de 75 mil km2 para cada época considerada. Esses fatores colocam ainda em maior evidência a necessidade de identificar e monitorar áreas susceptíveis à desertificação, especialmente quando se considera o atual cenário de mudança do clima no Brasil.
Figura 2. Evolução histórica do contorno que define áreas com índice de aridez inferior a 0,50 no Nordeste Brasileiro.
(Fonte: Tomasella et al., 2023)
Políticas públicas
Para o conhecimento da problemática, além de várias pesquisas realizadas, destaca-se a delimitação das áreas susceptíveis à desertificação (ASD) pelo PAN-Brasil (Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca).[14] O Programa visa promover a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais, para reduzir a vulnerabilidade socioambiental de áreas suscetíveis à desertificação e à seca. As ASD são determinadas segundo os pressupostos da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação (UNCCD), utilizando como critério o IA que, no Brasil, considerava valores entre 0,20 e 0,65. Com o novo estudo realizado pelo CEMADEN e o INPE, as ASD agora compreendem áreas com IA entre 0,05 e 0,65. Além disso, consideram-se áreas de entorno de regiões semiáridas e subúmidas secas.[15]
O PAN-Brasil estabelece que o monitoramento e avaliação são requisitos necessários para a gestão em escala nacional, envolvendo diversos atores sociais e instâncias gestoras, com princípios que consideram a participação qualificada de todos os atores envolvidos no combate à desertificação, levando em conta o complexo solo-água-fauna-flora. Esse monitoramento deve considerar as pressões (antrópicas ou não) exercidas sobre os ecossistemas, o estado da desertificação e os resultados provocados pelo fenômeno. De modo geral, o monitoramento e avaliação do PAN-Brasil está em concordância com os procedimentos realizados pela UNCCD.
Em 2015, foi instituída a Política Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca – PNCD (Lei n.º 13.153/2015), que prevê a criação da Comissão Nacional de Combate à Desertificação (CNCD) e tem o intuito de prevenir e combater a desertificação, recuperar áreas afetadas, apoiar o desenvolvimento sustentável e instituir mecanismos de proteção e conservação em ASD, integrar a gestão hídrica com ações de prevenção de combate à desertificação, entre outros, através da articulação com programas que tenham ações afins com a PNCD e o PAN-Brasil.[16]
“O monitoramento e a avaliação são requisitos necessários para a gestão em escala nacional, envolvendo diversos atores sociais e instâncias gestoras.”
O Tribunal de Contas da União (TCU) publicou recentemente, em 2023, o resultado de auditoria a respeito do tema, destacando que a iniciativa se justificou pelo processo crescente de degradação ambiental que as terras do semiárido brasileiro têm apresentado, denominado de desertificação, em função do clima e das ações antrópicas, prejudicando os solos, os recursos hídricos, o bioma Caatinga e a qualidade de vida da população. A auditoria avaliou, com base PNCD, as políticas e as ações estaduais de combate à desertificação e de mitigação dos efeitos da seca, bem como outras políticas públicas transversais referentes à região do Semiárido e ao bioma Caatinga. A auditoria operacional foi realizada nos estados do Ceará, da Paraíba, de Pernambuco, do Rio Grande do Norte e de Sergipe e uma das principais conclusões é que para que a política pública de prevenção e combate à desertificação do Semiárido seja efetiva, faz-se necessária a transversalidade com outras políticas e a existência de governança ao nível vertical, horizontal e com atores não governamentais. É destacada a importância da integração das políticas de recursos hídricos, meio ambiente, desenvolvimento rural e regional, mudança climática, agricultura familiar e educação para a região susceptível à desertificação no país.[17]
Atividades mitigadoras
Para mitigar os efeitos da desertificação no Brasil, é preciso a adoção de ações e medidas que visem a redução das causas desse processo. Algumas alternativas de ações mitigadoras são consideradas pelo PAN-Brasil e pelo PNCD. O PAN-Brasil indica ações concretas a serem adotadas pelos poderes públicos e estabelece providências imediatas para a sua implementação, destacando a necessidade de um arcabouço político. Nesse sentido, a principal ação foi a aprovação da própria Lei n° 13.153/2015. Com a finalização do PAN-Brasil, os governos dos Estados iniciaram a elaboração dos seus Planos, Programas e/ou Políticas de Ações Estaduais de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (PAE), com detalhamento das ações públicas e privadas ao nível local.[5]
“Globalmente, diversos países estão investindo para que a bioeconomia traga contribuições socioeconômicas e aumente a sustentabilidade do planeta.”
O CGEE, a partir da análise de documentos referentes aos PAE dos Estados do Nordeste, elencou as principais considerações evidenciadas pelos respectivos governos. Na Bahia (PAE-BA), por exemplo, é destacado o comprometimento com políticas redutoras das desigualdades sub-regionais e sociais nas ASD; em Pernambuco (PAE-PE), nota-se o interesse do governo de traçar caminhos para combater a desertificação e mitigação dos efeitos da seca; na Paraíba (PAE-PB), o PAE é apontado como instrumento que pode alavancar uma nova fase da relação sociedade/natureza; no Ceará (PAE-CE), o instrumento visa contribuir para uma melhor convivência com o semiárido, por meio da sustentabilidade ambiental do bioma Caatinga, a partir de políticas ambientais, sociais e econômicas, focadas na redução da pobreza. Os demais Estados traçam caminhos semelhantes com o intuito de desenvolver ações e medidas que visem mitigar o problema.
Do ponto de vista prático, o PNCD determina, resumidamente, que cumpre ao poder público, dentre outras ações: a) promover a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais e o fomento às boas práticas sustentáveis adaptadas às condições ecológicas locais; b) promover a instalação de sistemas de captação e uso da água da chuva em cisternas e barragens superficiais e subterrâneas, bem como de poços artesianos onde houver viabilidade ambiental, entre outras tecnologias adequadas para o abastecimento doméstico e a promoção da pequena produção familiar e comunitária, visando à segurança hídrica e alimentar e; c) promover a implantação de sistemas de parques e jardins botânicos, etnobotânicos, hortos florestais, herbários educativos e bancos de sementes crioulas, particularmente para a conservação de espécies e variedades tradicionais da agrobiodiversidade brasileira, adaptadas à aridez e aos solos locais.
Entre as estratégias mais eficientes de combate à desertificação e mitigação da seca há, ainda, a bioeconomia que, segundo o CGEE, pode ser definida como o “desenvolvimento e a utilização de recursos biológicos nas áreas da saúde humana, agricultura, pecuária, processos industriais e biotecnologia”.[18] Globalmente, diversos países estão investindo para que a bioeconomia traga contribuições socioeconômicas e aumente a sustentabilidade do planeta. (Figura 3)
Figura 3. Bioeconomia pode trazer contribuições socioeconômicas e aumentar a sustentabilidade do planeta.
(Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil. Reprodução)
A bioeconomia vem crescendo no Brasil e a tendência é de que se alcance, cada vez mais, conhecimentos suficientes para a criação de tecnologias sustentáveis que possibilitem o abastecimento da sociedade sem provocar impactos significativos ao meio ambiente e sem comprometer o direito das minorias.[19]
Agradecimentos
A autora agradece ao CNPq, pela bolsa de Produtividade em Pesquisa – PQ (processo 313392/2020-0). Agradece, ainda, ao pesquisador Diego Cezar dos Santos Araujo, da UFPE, bolsista do projeto INCT – ONSEAdapta – Observatório Nacional de Segurança Hídrica e Gestão Adaptativa (CNPq Proc. 406919/2022-4).