A Etnologia e a diversidade sociocultural
O termo ethnologia em seu sentido moderno é creditado ao historiador eslovaco Adam František Kollár (1718-83), chefe da biblioteca real em Viena, capital do então Sacro Império Romano-Germânico, que o cunhou e definiu pela primeira vez em sua obra “Amenidades da história e lei constitucional do reino da Hungria”, publicada em latim, em 1783. Estendendo o domínio da etnologia a “povos” (gens) e “nações” (populus), Kollár definiu etnologia como “a ciência das nações e povos, ou, o estudo dos eruditos através do qual eles investigam as origens, línguas, costumes e instituições das várias nações e, finalmente, a pátria e suas antigas fundações, para, então, poder melhor julgar as nações e povos de seus próprios tempos”.[1] Interessado pela diversidade linguística e cultural que constituía o reino multiétnico e multilíngue da Hungria, Kollár encontrava-se entre os acadêmicos iluministas alemães preocupados com a origem dos povos, das línguas, dos Estados, cujas reconstruções histórico-descritivas usavam material etnográfico e linguístico. Suas preocupações ecoavam também aquelas sobre a ausência e as dificuldades de uma unidade política entre os povos germânicos, que impediam a conformação do Estado nacional na Alemanha, compreendidas como resultado da persistência e do apego às tradições e aos costumes que resistiam aos avanços da modernidade. Contudo, as terminologias que empregavam eram oriundas da filosofia, história e geografia, ainda não formatando a etnologia enquanto um campo circunscrito de conhecimento. Porém, é importante destacar que foi dessa tradição acadêmica que surgiu a formulação do moderno conceito de cultura (Kultur), cuja compreensão constituiu o cerne da antropologia, especialmente a que se desenvolveu adiante nos Estados Unidos sob a liderança de Franz Boas. [2,3]
Será a partir do último quartel do século XIX que a etnologia se consolidará como um campo próprio de conhecimento, não apenas focando a conformação da diversidade dos povos no continente europeu, mas também lançando seu olhar para fora, sobre os povos não ocidentais, dominados pela Europa desde o século XVI. A conquista europeia sobre os demais continentes, que se intensifica em escala e complexidade desde então, teve um papel importante na formulação de novas noções do Ocidente (o mundo ocidental), especialmente sobre a natureza humana e a diversidade de seus modos de vida. Os relatos, as narrativas daqueles exploradores europeus que se aventuravam nestes outros mundos cada vez mais publicizados, informavam sobre povos, pessoas, que se comportavam e falavam de modo muito diferente, tinham costumes exóticos, viviam nas matas, eram selvagens, canibais, habitavam continentes nunca antes imaginados, ou mencionados na Bíblia; sobre quem tinham dificuldade de compreender como parte da humanidade. A constatação desses povos e mundos tão diferentes contribuía não só para imaginários de selvageria, canibalismos,[4] mas também para promover grandes mudanças no modo de pensar entre os intelectuais europeus, estimulando cada vez mais a secularização da produção do conhecimento, e as reflexões sobre a natureza dos seres humanos, sua mente e suas instituições. Ainda que distorcessem as realidades observadas, os relatos sobre os povos não ocidentais forneciam farto material aos pensadores europeus, que os tomavam para sustentar suas proposições e reflexões filosóficas, assim como se inspirou Jean-Jacques Rousseau nos relatos sobre “le bon sauvage” para afiançar as proposições de seu contrato social.
A expansão do mundo europeu sobre os outros continentes intensificou os contatos entre os mais diversos povos, colocando-os cada vez mais próximos e tornado comum e visível a diferença, a existência de muitos outros mundos que não europeus, assim como a necessidade de compreender a diversidade sociocultural que se apresentava em todas as partes. Instigada pelos ideais iluministas que cultivavam o florescimento da ciência e da filosofia na Europa, a busca por esta compreensão encontrará suas principais respostas na conformação da antropologia no século XIX, trazendo a etnologia para o centro de suas investigações e se consolidando como um campo de conhecimento próprio, com objeto e corpo teórico-metodológico delimitado, especializado para explicar a diversidade sociocultural e o desenvolvimento das sociedades humanas.
“Além de contrapor e rechaçar o etnocentrismo, a noção de relativismo cultural também teve importante papel em ressaltar a diversidade sociocultural existente no mundo em seu próprio direito, no direito de existir diferentemente.”
As publicações de Charles Darwin, “A Origem das Espécies” (1859) e “The Decend of Man” (1871), traduzindo as novas compreensões sobre a formação e a diversificação das espécies no mundo natural, forneciam perspectivas de compreensão também sobre a origem e a trajetória dos seres humanos e de seus coletivos. Do mesmo modo que as demais espécies, os seres humanos também apresentariam processos evolutivos sobre situações precedentes e, portanto, teriam em sua formação um primevo, um inaugural, do qual se havia partido até alcançar a civilização, topo da escala evolutiva, onde se encontrava a sociedade europeia.
Em seu contraponto, sociedades e povos então vistos como selvagens, com ausência de Estado, de escrita, foram concebidas como representações vivas dos primórdios da humanidade, seus ancestrais vivos, seus primevos, que por razões várias estariam estacionadas na escala da evolução humana. Elas se encontrariam no patamar mais inferior da evolução humana, e a compreensão sobre estas “sociedades primitivas” deveria fornecer as explicações para a origem e os processos evolutivos das sociedades humanas e de suas instituições. A antropologia se concebe, então, como a ciência dedicada à compreensão dessa “humanidade primitiva”,[5] assentando seu método de investigação na teoria da evolução, que estabelecia os graus de desenvolvimento que a humanidade teria escalado; nas “sociedades primitivas” como objeto de estudo; e na comparação entre as distintas sociedades. As diferenças passaram a ser explicadas pelos graus evolutivos, e são vários os estudos que se dedicam a entender a evolução da família e do parentesco, da religião, das crenças, das cidades, do Estado, do direito ou da propriedade, visando descobrir as leis e a história da evolução humana em seu suposto ponto inicial.
Contudo, esses estudos iniciais se pautavam em informações trazidas por comerciantes, missionários, agentes governamentais, e exploradores, que se encontravam nas colônias longínquas, cujas descrições se revelavam insuficientes, distorcidas, de pouca confiabilidade para a investigação científica, e apontavam para a necessidade de levantamentos de campo junto a esses povos por profissionais treinados e capacitados. Esforços nesse sentido logo começam a ser empreendidos, com expedições organizadas por profissionais altamente qualificados se lançando ao convívio com os “primitivos”, os “selvagens”, para obter informações diretamente com eles sobre os seus modos de vida, como foi a expedição liderada por Alfred Haddon, em 1898, para as Ilhas do Estreito de Torres. Mas será especialmente com a etnografia de B. Malinowski,[6] “Os Argonautas do Pacífico Ocidental” (1922), baseada em levantamentos obtidos através de longo trabalho de campo, de convivência com os nativos (primitivos), com domínio da sua língua, observação direta de seus comportamentos e rituais, que a moderna etnologia toma forma e conteúdo, angariando força e destaque.
Através da descrição e análise de um sistema de comércio, o Kula, que interconectava as populações costeiras das ilhas do Arquipélago de Trobriand, na Nova Guiné, Malinowski apresenta sociedades organizadas em instituições sólidas e complexas, cujos costumes, comportamentos e crenças adquirem significados plenos, revelando ações coerentes e integradas que asseguravam a sua funcionalidade e reprodução. A etnografia que constrói, demonstrando os alcances em reproduzir e transmitir diferentes experiências de vida, desconstruiu imagens de aglomerados de crenças e costumes irracionais e desconexos que eram atribuídas a estes povos considerados selvagens, como próprios de sua primitividade. Assim, promoveu uma verdadeira revolução na antropologia aos apresentá-los como sistemas de valores integrados, coerentes, inteligíveis, que ordenavam e davam sentido aos costumes e comportamentos. A diversidade dos coletivos humanos não poderia mais ser explicada como produto de estágios de evolução, mas pela constituição de sistemas e complexos culturais através dos quais os serem humanos se associariam e se organizariam. O foco de investigação recairia sobre a integração das diferentes dimensões da cultura que conformariam uma totalidade integrada, coerente, que deveria ser apreendida em seus próprios termos a partir da observação direta. Com essa apreensão, estabeleceu as novas bases para a investigação etnológica, com levantamentos a serem obtidos diretamente do campo.
Em outro contexto, contemporaneamente, Franz Boas, que havia partido da Alemanha, dedicava-se aos estudos sobre os povos nativos da costa noroeste dos Estados Unidos, entre os quais conviveu e desenvolveu extensas investigações com base na observação direta. Das suas investigações, entre as tantas contribuições para o pensamento antropológico e compreensão das sociedades humanas, Boas contrapôs a visão de uma história linear e única para toda a humanidade, como se fosse partícipe de uma única cultura que se desenvolvia através de diferentes estágios de evolução, tal como era apregoada pelos antropólogos evolucionistas, para demonstrar que as histórias são particulares de cada povo, e delas derivam suas distintas culturas e modos de vida. Para Boas, a conformação das diferenças culturais era resultante de razões históricas, ambientais e psicológicas, que teriam atuado em suas configurações, distinguindo uma cultura de outra. Os objetivos da etnologia, então, deveriam ser o de buscar as razões e os processos que promoveram a existência de determinados costumes e crenças, em síntese, “descobrir a história de seu desenvolvimento”.[7] Sendo as histórias plurais, as culturas das quais derivam também só poderiam ser concebidas como plurais.
Resultantes, portanto, de condições histórias particulares e específicas, as culturas não poderiam ser mensuradas para hierarquizar os diferentes povos e, portanto, nenhuma cultura poderia ser compreendida como superior a outra, ou mais ou menos evoluída. Defendia que para compreender uma cultura distinta da sua, o etnólogo deveria evitar juízos de valor, abandonando seus próprios códigos culturais para buscar apreender os hábitos da sociedade estudada a partir dos valores que ela possui. Com essas proposições, embora nunca tenha utilizado o termo, Boas pautou o relativismo cultural, que acabou sendo levado para o centro das discussões raciais que se configuraram no final do século XIX e tomaram grande vulto nas primeiras décadas do século XX. Além de contrapor e rechaçar o etnocentrismo, a noção de relativismo cultural também teve o importante papel de ressaltar a diversidade sociocultural existente no mundo em seu próprio direito, no direito de existir diferentemente. A partir das histórias particulares de cada cultura, apreendidas em seus próprios termos e direitos, nos processos próprios que teriam promovido e assegurado a sua existência, o mundo pode começar a se pensar como diverso culturalmente, a aceitar e valorar as diferenças como parte constitutiva da humanidade. Ainda que seu percurso tenha sido, e continua sendo, um tanto turbulento.
Das bases para a moderna etnologia lançadas por Boas ou Malinowski para a compreensão da diversidade sociocultural, de suas estruturas mentais e organizacionais, tradições de conhecimento ou pressupostos cosmológicos, muitos foram os seus desdobramentos, adicionando novas concepções e formulações teórico-conceituais e a propagação de novas escolas. Estes novos aportes de pesquisa promoveram progressos consideráveis para a compreensão das dinâmicas e formações constitutivas das sociedades humanas, consolidando e destacando a etnologia como um campo sólido e fértil de conhecimento entre as Ciências Humanas, a ponto de ser muitas vezes compreendida como sendo a própria antropologia. Contudo, apesar do alargamento do campo de conhecimento etnológico na Europa e nos Estados Unidos, de novos paradigmas interpretativos, até meados do século XX os povos originários das Américas, da Oceania ou da África continuavam sendo tomados como um “primitivo” e distanciado objeto de estudo, como se as suas organizações sociais e cosmologias fossem sistemas isolados e autônomos e, principalmente, a-históricos.[8,9] Tomando as sociedades não ocidentais como unidades autoexplicativas e atemporais, as análises etnográficas ignoravam os processos de dominação, violência e extermínio a que estavam submetidos pelo projeto colonizador, cujos efeitos eram entendidos como obstáculos às investigações ou de pouco interesse etnográfico.[10, 11] A despeito dos manifestos avanços nos modos de produzir conhecimento, a etnologia parecia ainda ter dificuldades em quebrar o congelamento histórico atribuído aos povos não ocidentais pelos antropólogos evolucionistas, quando os estacionaram em um passado prístino, concebendo-os como exemplares sobreviventes de nossa ancestralidade. O interesse etnográfico continuava recaindo sobre aquele nativo supostamente ancorado em um passado remoto, exótico, sem história, sem coetaneidade com o etnólogo.[9]
Será no pós-Segunda Guerra Mundial que a etnologia sofrerá grandes reviravoltas. Primeiramente, pelos efeitos do próprio conflito, que teve as raças e as culturas, as intolerâncias e o genocídio em relação à sua diversidade, no centro de suas motivações. Em seguida, pelos movimentos de independência das nações africanas que o sucederam, através dos quais se formularam severas críticas aos modos como a etnologia dos países hegemônicos os havia descrito até então, assim como pelo entendimento da disciplina como forte instrumento da colonização para o exercício da dominação.[12,13] Na Europa, por sua vez, foi sob a liderança de Max Gluckman, na Escola de Manchester, Inglaterra, e de Georges Balandier, na França, que encontraremos as principais críticas à produção etnológica que desconsiderava os contextos da colonização sobre os povos não ocidentais, através das quais propuseram novas perspectivas teórico-metodológicas que apreendessem os processos de dominação e violência decorrentes do projeto colonial e seus efeitos sobre as organizações sociopolíticas e culturais desses povos.
As noções de situação social [14] e situação colonial[12] representaram uma ruptura nos modos de abordar os povos não ocidentais, ao destacar a dupla história que eles passam a experienciar com o advento do projeto colonizador europeu, e de como a dominação imposta por uma minoria estrangeira, “racial” e culturalmente diferente, estava na base das transformações dos sistemas sociais tradicionais. O mundo que esses povos tradicionais passaram a vivenciar estava decisivamente atravessado pelas relações de poder colonial, e sua compreensão exigia ser apreendida a partir do encapsulamento imposto por estas relações de dominação. Dessa perspectiva possibilitar-se-ia compreender também como, nas situações coloniais específicas, configuraram-se os processos de adaptação e recusas desses povos, pontos e estratégias de resistências, e de reinvenção dos modelos sociais tradicionais destruídos. Os povos originários, portanto, não poderiam ser concebidos como passivos e estacionários de um passado remoto, mas sujeitos ativos, em estreita relação com o mundo ocidental, cuja alteridade constituía um grande campo de disputas e de poder.
Dessas compreensões das situações coloniais muitos foram os seus acréscimos e reapropriações, que permitiram melhores compreensões sobre o mundo dos povos não ocidentais e das relações de dominação sofridas, mas também sobre o mundo do colonizador, sobre a constituição de suas instituições e modos de imposição e manutenção das relações de dominação. Ao começar a olhar o mundo dos povos colonizados em sua relação com o colonizador, em sua coetaneidade e relações desiguais de poder, a etnologia estabeleceu novos parâmetros para pensar as alteridades e as suas manutenções, assim como ofereceu um espelho à sociedade ocidental para que pudesse também se mirar nesse campo de poder. Essa perspectiva terá forte influência na etnologia que se desenvolveu no Brasil. (Figura 1)
Figura 1. Indígenas Munduruku, em ritual a mãe-terra. Comunidade de Taquara, município de Belterra (PA).
(Foto: Edviges M. Ioris)
Etnologia indígena no Brasil
A etnologia que se desenvolve no Brasil, assim como no restante da América Latina, tem dedicado seus estudos e investigações aos povos originários, constituindo-se como etnologia indígena. Todavia, Florestan Fernandes[15] nos assinala que a institucionalização da etnologia como ciência acadêmica, no segundo quartel do século XX, em um contexto de grandes transformações na sociedade brasileira, de criação do ensino universitário de ciências sociais, tinha a cargo não só o estudo dos povos indígenas, mas também dos negros, camponeses e imigrantes. Como destaca, a institucionalização da etnologia focada sobre esses três setores populacionais refletia sua vinculação com as preocupações com os grandes temas nacionais e a discussão dos problemas brasileiros. Os estímulos advindos para esta configuração resultavam das preocupações com a questão indígena, ou, como identifica, o “problema indígena”, que se colocara no país desde que a colonização se iniciou; com o “problema do negro”, associado aos desdobramentos da abolição da escravatura e sua inserção na sociedade brasileira; e dos problemas relacionados aos imigrantes que adentravam o país oriundos de vários continentes. No contexto de conformação e consolidação do estado nacional brasileiro, a presença indígena, negra e de outras culturas estrangeiras foi sucessivamente tema das discussões com a composição da diversidade étnico-racial do país, e sobre o destino e o lugar a que estas lhes seriam reservados na sociedade brasileira.
Frente a essas motivações, a etnologia que foi se conformando trazia preocupações não só de ordem teórico-metodológica, mas também de ordem prática, como a que se verificava junto ao Serviço de Proteção aos Índios (SPI), principal promotor e financiador das pesquisas etnológicas com povos indígenas. Como salienta Fernandes, frente aos escassos recursos financeiros então destinados à investigação científica, o SPI, que necessitava de informações sobre os povos indígenas com os quais atuava, oferecia oportunidades para os jovens pesquisadores conduzirem seus estudos etnológicos, cujos trabalhos tinham um sentido prático de orientar as ações do órgão indigenista. Será precisamente a partir da atuação junto ao SPI que uma primeira geração de etnólogos brasileiros, com formação e preparo técnico, através de intenso trabalho de campo junto aos indígenas, produzirá etnografias sobre os seus modos de vida, as quais suscitarão discussões bastante originais nos modos de abordar os povos originários no país. Desses, destaca-se Darcy Ribeiro, que em 1952 passou a dirigir a Seção de Estudos do SPI, para o qual também se juntaram Eduardo Galvão e Roberto Cardoso de Oliveira. No ano seguinte, em 1953, Darcy Ribeiro criou o Museu do Índio, no qual, dois anos depois, organizou o primeiro curso de pós-graduação em antropologia cultural do Brasil.[16] A atuação desses etnólogos junto ao órgão indigenista também conferia uma especificidade da etnologia que desenvolviam, de aliar a produção de conhecimento à defesa dos povos indígenas frente às violações e esbulhos territoriais sofridos. O envolvimento deles na criação do Parque Indígena do Xingu, o primeiro no país visando a proteção da sociodiversidade dos povos nativos da região, exemplifica as preocupações que tinham com o destino dos povos indígenas. (Figura 2)
Figura 2. Indígenas Munduruku. Comunidade de Bragança, município de Belterra (PA).
(Foto: Edviges M. Ioris)
Até então, os levantamentos dos povos indígenas no Brasil haviam sido realizados majoritariamente por investigadores estrangeiros, que desde o século XIX percorreram os interiores do país e registraram a existência de centenas de povos e etnias, como Karl von den Steinen,[17,18] que visitou a região do Rio Xingu, em 1884 e 1887, até suas nascentes. Representando o início das expedições puramente etnográficas na América do Sul, e as teorias evolucionistas que vigoravam na Europa no último quartel do século XIX, von den Steinen se dirigiu ao alto Xingu para estudar o que considerava os povos “primitivos” em seu estado de isolamento ou, como explicitou, “primitivos como saíram das mãos da natureza”, visando entender a pré-história do espírito, a origem da arte e dos variados elementos culturais.[19] Descreveu com detalhes desde os adornos, indumentárias, técnicas materiais e representações plásticas, rituais de magia e de dança, mas também observou a violência a que os indígenas do Xingu eram vitimados, os quais eram “caçados como feras” por não indígenas. Sensibilizado, em seu retorno ao Rio de Janeiro, em conferência com a presença da família Imperial, solicitou à Princesa Isabel que tomasse providências para “proteger os naturais deste continente”. Assim, semeou a ideia do que adiante se materializou com a criação do Parque Indígena do Xingu, em 1961, quando os indígenas ainda continuavam sofrendo violências e invasão de seus territórios.
“A partir das histórias particulares de cada cultura, apreendidas em seus próprios termos e direitos, nos processos próprios que teriam promovido e assegurado a sua existência, o mundo pode começar a se pensar como diverso culturalmente, a aceitar e valorar as diferenças como parte constitutiva da humanidade.”
Curt Nimuendajú (Curt Unckel), jovem autodidata etnólogo de origem alemã que ganhou fama internacional, chegou no Brasil no início do século XX e trabalhou junto aos povos indígenas até sua morte, que ocorreu no alto Rio Solimões, Amazonas, em 1945. Percorreu o Brasil visitando e convivendo com muitos povos indígenas, registrando seus modos de vida, cosmologias e rituais, além de montar muitos acervos enviados para museus do Brasil e da Europa. Nimuendajú também trabalhou em vários momentos junto ao SPI, com destacada atuação em defesa dos indígenas, cuja postura indigenista é aventada como hipótese para sua morte por envenenamento, por um civil da região.[20] (Figura 3)
Figura 3. Criança Guarani, Santa Catarina.
(Foto: Edviges M. Ioris)
As violências sofridas pelos indígenas, registradas pelos etnólogos desde von den Steinen, evidenciaram muito prontamente a necessidade de compreendê-los nos seus respectivos contextos de dominação. É nesse sentido que os etnólogos que estavam na Seção de Estudos do SPI na década de 1950, saídos dos recém-criados centros universitários, com longos e sólidos levantamentos junto aos povos indígenas, e também registrando as violências contra os povos indígenas, destacarão a necessidade de compreendê-los não como sistemas sociais estacionários da história, inexoravelmente fadados a desaparecer, como então se apregoava. Suas pesquisas salientarão a necessidade de compreender a sua presença e permanência após cinco séculos de colonização, ainda que em situações historicamente muito adversas. Em um contexto antropológico dominado pelas teorias da aculturação, que preconizavam como inevitável o desaparecimento das culturas nativas frente aos avanços da sociedade ocidental, a permanência dos povos indígenas e de seus referenciais culturais, apesar das violências e vicissitudes do contato interétnico, forçava estes etnólogos a novas abordagens e aportes teóricos que apreendessem as dinâmicas e as condições de suas continuidades.
Neste sentido, Darcy Ribeiro [21] destacou o avanço das diferentes frentes econômicas no país e seus efeitos sobre os povos indígenas e seus territórios e, através do conceito de transfiguração étnica, apontou o preconceito da sociedade branca como principal barreira para a incorporação dos indígenas na sua formação nacional. Roberto Cardoso de Oliveira, por sua vez, tomando a noção de situação colonial de George Balandier,[12] focou nas situações de contatos interétnicos e nos conflitos históricos e estruturais para demonstrar como os indígenas estavam inseridos em duras relações de dominação, como as dos sistemas de seringais na Amazônia, nos quais era fundamental a sua mão-de-obra. Saindo do SPI e se transferindo para o Museu Nacional, ao longo da década de 1960, Cardoso de Oliveira dedicou-se ao projeto de pesquisa “Áreas de Fricção Interétnica no Brasil” e outros estudos comparativos sobre a organização social dos indígenas, além de organizar cursos de especialização lato senso na área de Antropologia Social, ampliando a formação de etnólogos no país.
Os estudos etnológicos desenvolvidos em diferentes “áreas de fricção interétnica” no país, assentados em sólidos levantamentos de campo, começaram a produzir novos parâmetros para compreensão das relações dos indígenas com a sociedade regional na qual estavam inseridos. Assim, demonstraram como as relações entre essas duas sociedades em oposição (étnica e economicamente), em fricção, possuem dinâmicas e contradições próprias, que revelam que, não obstante constituírem-se a partir de interesses diametralmente opostos, são, paradoxalmente, interdependes. Em muitas situações, essas relações se estabeleceram a partir da incorporação dos indígenas como reserva de mão de obra ou como produtores especializados de certos artigos para o comércio. A manutenção dos referenciais étnicos importava para o sistema de dominação da sociedade regional assegurar a sobre-exploração do trabalho e da produção dos indígenas. Assinalando para a reprodução de relações coloniais sobre os povos originários por uma sociedade branca, entendidas como colonialismo interno, encapsulando os modos de vida indígenas, destaca que, “o que fizemos foi penetrar na dimensão política da situação de contato a fim de descrever e analisar a estrutura de poder subjacente: o poder na esfera tribal, tradicional, e como ele é transfigurado quando a sociedade indígena se insere em outra maior, mais poderosa que lhe tira sua autonomia”.[22] (Figura 4)
Figura 4. 2ª Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, em Brasília, 2021.
(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil/Reprodução)
A etnologia indígena que se desenvolve a partir de então, e se ampliará nas décadas seguintes com vários desdobramentos e acréscimos, constituindo uma importante corrente do pensamento etnológico no país, que ajudará a superar a visão dos povos indígenas como sociedades estáticas, a-históricas, cujo interesse etnográfico repousaria precisamente na exotização das suas diferenças, para compreendê-los na relação com as dinâmicas gerais do mundo moderno, nos contextos de expansão das frentes capitalistas que, desde que a colonização se iniciou, têm afetado profundamente os modos de vida dos povos indígenas. Permitiram, desse modo, apreender o mundo colonial dentro do qual os indígenas se encontravam, e estudar as mudanças que se processaram nas suas organizações sociais, em suas bases territoriais, em suas cosmologias e modos de vida. Estudos como os de Silvio Coelho dos Santos (1973) [23] sobre os Xokleng em Santa Catarina, por exemplo, trouxeram compreensão e visibilidade à continuidade de existência dos povos indígenas no sul do Brasil, sobre os quais se afirmava equivocadamente a sua extinção, inclusive pela própria antropologia.[24] Além de visibilidade e compreensão, seus estudos também denunciavam as precárias condições dessa existência, com seus territórios invadidos e vivendo de explorados trabalhos subalternos, assim como a violência e o genocídio físico e cultural a que estes povos estiveram submetidos no processo de contato, e a subsequente “pacificação” empreendida pelo Estado, na virada para o século XX.
“Ao começar a olhar o mundo dos povos colonizados em sua relação com o colonizador, em sua coetaneidade e relações desiguais de poder, a etnologia estabeleceu novos parâmetros para pensar as alteridades e as suas manutenções, assim como ofereceu um espelho à sociedade ocidental para que pudesse também se mirar neste campo de poder.”
Ao colocar os indígenas nos duros contextos de dominação em que se encontram, a etnologia tem possibilitado também conhecer melhor os processos históricos de formação do país, dos seus regimes de violência e apagamentos, de suas constituições regionais. Situações como as vividas pelos Xokleng, e demais indígenas do Sul do país, só podem ser compreendidas no contexto de produção imagética do Brasil como nation building, no último quartel do século XIX, quando se elabora um projeto de nação a partir dos debates sobre o fim da escravatura, migração e o branqueamento da população brasileira.[8,25] A promoção da vinda de imigrantes de origem europeia para ocupar territórios indígenas no sul do país constituía parte das estratégias do projeto de branqueamento que se pensava para a população brasileira. A violência, o extermínio, a apropriação territorial e a sobre-exploração da mão de obra indígena, assim como dos afro-descentes, portanto, constituíram parte do projeto de nação que se pautava em teorias raciais que professavam uma superioridade racial branca e a tomavam como meta civilizatória a ser alcançada.[26] Compreender os indígenas nos contextos maiores em que estão inseridos, no projeto de construção de nação, tem permitido aclarar como a sua presença não tem sido contingente, pitoresca ou de pouca representatividade, mas, como Florestan Fernandes já destacava, historicamente está em relação direta com os grandes temas nacionais e a discussão dos problemas brasileiros. Essa perspectiva permite trazer à luz também de que modo os indígenas têm sido agentes efetivos na formação e construção do Brasil. Para um tema de grande relevância atualmente, nos permite também traçar um olhar sobre as raízes da intolerância e dos racimos tão evidenciados na discursividade sobre a branquitude nos estados do Sul do país. (Figura 5)
Figura 5. Indígenas em frente ao Supremo Tribunal Federal para a realização de uma vigília contra o Marco Temporal, 2021.
(Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil/Reprodução)
Contudo, ao compreender os indígenas em contextos de dominação e violência, foi possível também apreender as agências e as resistências dos indígenas, seus processos de reinvenção e reconstrução enquanto coletividades étnicas, conhecer seus protagonismos e formas pelas quais conseguiram resistir, se reorganizar e atualizar sua cultura na contemporaneidade.[28] Com fortes desdobramentos para a etnologia indígena desde então, exigindo novos aportes interpretativos, o destaque para as várias formas de resistência e protagonismos indígenas trouxe novas compreensões sobre a presença, permanência e representatividade dos povos indígenas no país. A presença indígena se afirma, portanto, não como sobrevivência de um passado que não fora possível eliminar totalmente, mas como resultado de constante resistência e mobilização frente ao projeto colonizador. Dessas, pode-se citar os vários movimentos de reafirmação étnica que se registra no último quartel do século XX, em regiões de colonização antiga, entre povos indígenas que a literatura apresentava como extintos, conferindo uma contra narrativa aos modos como a historiografia e as instâncias do poder dominante os omitiram e renegaram a sua permanência, assim como reinserindo a temática étnica-indígena no âmbito das discussões e relações de poder, tanto locais como nacionais. [29,30]
A mobilização indígena para a elaboração e aprovação do Capítulo V da Constituição de 1988, que assegurou os direitos territoriais aos povos originários ou, mais recentemente, no combate à covid-19 e aos avanços das políticas anti-indígenas, também são exemplos dos protagonismos dos indígenas em defesa da vida, da continuidade dos seus modos de organização étnica e cultural e dos direitos sobre seus territórios. Esses protagonismos têm forjado novas concepções do exercício do trabalho etnográfico e da relação do etnólogo com os interlocutores de pesquisa. Sujeitos protagonistas de seus projetos de vida, articuladores políticos de largo alcance, os indígenas no presente pautam a exigência por uma antropologia dialógica, colaborativa e comprometida na defesa dos povos originários por reconhecimento, direitos e bem viver. Importante trabalho neste sentido é a publicação do livro “A Queda do Céu: Palavras de um xamã yanomami”, elaborado em conjunto pelo líder indígena Davi Kopenawa e o antropólogo Bruce Albert.[31] (Figura 6)
Figura 6. Davi Kopenawa, indígena Yanomami, em palestra na Universidade Federal de Santa Catarina.
(Foto: Edviges M. Ioris)
O protagonismo que se registra com grande visibilidade posiciona os indígenas em muitas frentes de luta e de ocupação dos espaços, inclusive o acadêmico, com a formação de vários etnólogos, que têm trazido valorosas contribuições para o conhecimento sobre os povos originários, as suas relações com a sociedade ocidental, e para a condução da pesquisa etnológica. Trazendo informações de suas vivências, de suas relações com a ancestralidade, com conhecimento da língua, da cosmologia e da história profunda de seu povo, os etnólogos indígenas têm oportunizado novas compreensões que dificilmente um não indígena teria condições de alcançar, possibilitando novas epistemologias à produção do trabalho acadêmico. A premiada tese de Luiz Henrique Eloy Amado,[32] indígena Terena, por exemplo, oferece uma revisão crítica da produção antropológica sobre seu povo, na qual assinala como, ainda que involuntariamente, historiadores e antropólogos que escreveram sem o devido cuidado, desconsiderando a conjuntura histórica do povo Terena, ajudam a ecoar os argumentos utilizados por aqueles que são contrários ao reconhecimento formal de seus territórios. Partindo de sua história de vida, de seu núcleo familiar, e adentrando farta documentação histórica, o autor rebate a caracterização dos Terena como estrangeiros, frisando, inclusive, a sua importante participação na Guerra do Paraguai, em que atuaram do lado brasileiro num conflito que lhes custou a expulsão de seus territórios tradicionais.
Desse modo, a pesquisa etnológica atual não comporta mais o romantismo (e o colonialismo) de seus tempos iniciais em busca de descrever um “outro” distinto, distante, exótico.[33] Os que outrora foram considerados distantes objetos de pesquisas estão hoje lado a lado na academia, nos fóruns políticos, coetâneos, lendo muito criticamente o que tem sido produzido sobre eles, e propondo novos modos de compreensão sobre a presença dos povos originários e de suas relações com a sociedade ocidental e as dinâmicas do mundo moderno. Estão ajudando a romper com dogmas e autoritarismos da ciência acadêmica, para dar lugar ao diálogo de saberes e tradições diferentes, à inclusão de novas epistemologias, e à pesquisa colaborativa e comprometida com o destino dos povos originários e seu bem viver.