Introdução
Estamos diante de uma emergência climática. A comunidade científica tem sido bastante eloquente a esse respeito: o sexto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), publicado em 2022, já afirmava que é inequívoco que a influência humana aqueceu a atmosfera, os oceanos e a superfície terrestre. Os relatórios apontam que as emissões de gases de efeito estufa do passado já tornaram irreversíveis algumas consequências do aquecimento global e eventos catastróficos não podem ser descartados; contudo, ainda há margem para ação global.[1]
Nesse contexto, o aumento da frequência e da intensidade de eventos climáticos extremos está forçando cidades globalmente a reavaliar suas estratégias de adaptação. No cenário da atuação climática, a máxima “o pior desastre ainda está por vir e temos que estar preparados para ele” ressoa como um alerta constante, enfatizando a necessidade premente de desenvolver uma cultura de risco e prevenção, com foco em planos diretores bem estruturados. No entanto, a experiência recente do Rio Grande do Sul revela um contraste marcante entre essa urgência e a realidade da gestão pública.
A catástrofe das enchentes de abril e maio de 2024 em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul
O Rio Grande do Sul, e em particular sua capital, Porto Alegre, enfrentou entre abril e maio de 2024 uma das maiores enchentes de sua história, resultado de um volume de chuvas sem precedentes em todo o registro histórico. No mês de maio de 2024, foram registrados 513,6 milímetros de chuva, tornando-o o mais chuvoso da capital, cuja média histórica entre 1911 e 2020 era de somente 112,8 mm. Este volume extraordinário de chuvas afetou centenas de outras cidades gaúchas, culminando no aumento recorde do nível dos rios que deságuam no Guaíba, às margens do qual Porto Alegre foi erguida. O extravasamento do Guaíba submergiu grande parte da cidade por semanas, levando ao colapso de serviços básicos.
As consequências foram devastadoras: todo o sistema hídrico da capital entrou em colapso, resultando em alagamentos generalizados, desabastecimento de água potável, transbordamento das redes pluvial e de esgotos, e falta de energia elétrica. Este evento catastrófico não só causou perdas humanas e materiais significativas, mas também expôs graves falhas na capacidade da cidade de lidar com emergências climáticas. A crise atravessou a cidade por completo, interrompendo serviços essenciais e fechando estradas, rodoviária, aeroporto, hospitais e escolas.
“O aumento da frequência e da intensidade de eventos climáticos extremos está forçando cidades globalmente a reavaliar suas estratégias de adaptação.”
O desastre atingiu 471 municípios do estado. Cerca de 6,9% da população gaúcha, ou 751.030 pessoas, foram diretamente afetadas, sendo que 40% delas (299.156 pessoas) já estavam inscritas no Cadastro Único, indicando uma vulnerabilidade pré-existente ao desastre. Municípios como Eldorado do Sul, Muçum, Igrejinha, Canoas, Colinas, Roca Sales, Marques de Souza, São Sebastião do Caí, São Leopoldo e Travesseiro tiveram mais de 40% de suas populações atingidas. Em termos absolutos, Canoas registrou 152.852 pessoas afetadas, Porto Alegre 121.925 e São Leopoldo 88.608.
Diante da magnitude desse evento, poderia se supor uma certa universalidade do desastre climático, isto é, que haveria a demonstração de que o desastre climático atinge a todas as pessoas, sobrepondo-se a clivagens de classe social, gênero e raça. Contudo, quando analisamos de forma pormenorizada, podemos observar que, ainda que praticamente toda a população do Rio Grande do Sul tenha sofrido consequências diretas ou indiretas do evento extremo, os modos como se vivencia o desastre climático são atravessados por injustiças ambientais. Acselrad; Mello e Bezerra [2] usam o termo injustiça ambiental para designar o fenômeno de imposição desproporcional dos riscos e danos ambientais às populações menos dotadas de recursos financeiros, políticos ou informacionais.
No caso do desastre de enchentes no Rio Grande do Sul, a injustiça ambiental pode ser identificada a partir de estudos que demonstraram que as áreas mais alagadas em Porto Alegre e sua região metropolitana são áreas que concentram principalmente populações de baixa renda. Além disso, conforme demonstram os mapeamentos conduzidos pelo Núcleo Porto Alegre do INCT Observatório das Metrópoles, as áreas que mais sofreram com as enchentes apresentam uma concentração expressiva de população negra, geralmente acima da média dos municípios. É o caso dos bairros Humaitá, Sarandi e Rubem Berta, em Porto Alegre, e o bairro Mathias Velho, em Canoas. A mesma situação se repetiu no Vale do Sinos, nos municípios de São Leopoldo e Novo Hamburgo.[i]
Foi possível observar também que as mulheres foram desproporcionalmente atingidas, seja em função da sobrecarga do trabalho de cuidado a que foram submetidas, ao tornarem-se majoritariamente responsáveis por gerenciar abrigos voluntários, certificar-se da segurança de crianças, pessoas idosas e pessoas com deficiência em meio às enchentes e administrar a vida doméstica em situações de vulnerabilidade,[3] seja devido ao aumento de casos de violência de gênero denunciadas nos abrigos provisórios onde as pessoas deslocadas pela enchente passaram a habitar.[4]
Constata-se, ainda, que o tempo de resposta para a tomada de medidas de reconstrução atua também como um indicador da segregação social: enquanto bairros mais nobres na capital gaúcha receberam atendimento prioritário para o restabelecimento do fornecimento de água, luz e bombeamento das vias alagadas, bairros periféricos como o bairro Sarandi, em Porto Alegre, mantiveram-se desassistidos por mais de 40 dias após o início da inundação. Em algumas comunidades quilombolas situadas em distintas regiões do estado, por sua vez, passado mais de um ano do evento extremo, há pessoas morando em abrigos provisórios, como escolas da comunidade, visto que suas comunidades seguem sem apoio para reconstrução das moradias.[5] (Figura 1)

Figura 1. Quilombo dos Machado, na zona norte da capital, atingindo pela enchente de 2024
(Foto: Agência Pública. Reprodução)
Desse modo, pode-se constatar que o desastre é vivenciado de forma bastante desigual: os mais atingidos têm raça, classe e gênero bem marcados, e isso deve pautar a agenda de enfrentamento às mudanças climáticas. Contudo, o quanto essa tem sido a baliza para a reconstrução do estado do Rio Grande do Sul? Essa pergunta pode ser respondida a partir de análise conduzida no escopo do INCT Participa,[ii] conforme discutido a seguir.
O Plano Rio Grande: estrutura, ações e controvérsias na reconstrução
O principal instrumento de política pública formulado pelo governo do Rio Grande do Sul é o chamado Plano Rio Grande, instituído pela Lei 16.134, de 24 de maio de 2024, e regulamentado pelo Decreto n.º 57.647, de 3 de junho de 2024. Este programa de Reconstrução, Adaptação e Resiliência Climática do estado visa propor medidas para atenuar os impactos das enchentes. O plano prevê ações em três temporalidades:
- Emergenciais (curto prazo, 3 a 7 meses): focadas no restabelecimento de serviços e direitos essenciais, como acesso à água e moradia, desobstrução de vias e acolhimento de desalojados.
- Reconstrução (médio prazo): com investimentos em projetos de habitação (incluindo interesse social), infraestrutura (escolas, postos de saúde, vias) e recuperação econômica, buscando a reconversão econômica através do hidrogênio verde e da agricultura de baixo carbono.
- Estruturais (longo prazo), sob a etiqueta “Rio Grande do Sul do Futuro”: para o desenho e implementação de medidas de resiliência climática.
A execução do Plano Rio Grande está a cargo da Secretaria da Reconstrução Gaúcha (SERG), criada pela Lei 16.136, de 3 de junho de 2024, e cujo secretário é Pedro Capeluppi.A governança do Plano Rio Grande é complexa, composta por:
- Comitê Gestor do Plano Rio Grande: possui atribuições deliberativas restritas ao executivo, composto exclusivamente por membros do governo estadual, como o Governador, Vice-Governador e Secretários de diversas pastas. O Governador e o Vice-Governador são os atores centrais das medidas reestruturantes.
- Conselho do Plano Rio Grande: presidido pelo vice-governador, conta com um plenário que inclui representantes da sociedade (mínimo de 50%), designados pelo governador. Atualmente, o conselho é composto por 59 representantes do poder público, sociedade civil e pessoas atingidas, incluindo entidades privadas como Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (FIERGS), FECOMERCIO-RS, Federação da Agricultura do estado do Rio Grande do Sul (FARSUL), bem como ONGs e OSCs como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), além de ex-governadores e empresários. O fluxo de trabalho envolve a entrada de demandas, análise nas câmaras temáticas, destinação pelo Comitê Executivo e monitoramento.
- Câmaras Temáticas: São 13 câmaras (como Desenvolvimento Social, Agricultura, Meio Ambiente, Infraestrutura, etc.) coordenadas por secretários estaduais e o vice-governador, sendo consideradas uma arena central para a compreensão das expectativas e delineamentos prioritários do estado pós-evento extremo.
- Comitê Científico de Adaptação e Resiliência Climática: possui atribuições consultivas e propositivas, com 43 membros designados pelo governador.
- Fundo Plano Rio Grande (FUNRIGS): um fundo público orçamentário para a reconstrução, que contabilizava um saldo de R$ 2.657.013.322,21 em março de 2025. Seu Comitê Gestor é integrado por cinco secretários de estado. O conselho do FUNRIGS reserva um terço de sua composição para universidades, sindicatos, setor produtivo e ambientalistas, contando com 16 representações privadas e 5 públicas, incluindo instituições como a Universidade Federal do rio Grande (FURG), o Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONSEMA), Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (FAMURS), Federação Sindical dos Servidores do Rio Grande do Sul (FESSERGS), centrais sindicais (CUT-RS, CTB-RS), e diversas entidades empresariais e associações.
A governança do Plano Rio Grande tem sido objeto de diversas críticas. Uma das principais é a centralização do poder decisório no executivo e em atores do setor privado, configurando uma “captura” dos espaços de participação social e científica. Esta estrutura orienta medidas estruturantes de grande impacto, como a construção de diques e casas de bombas, e políticas de Parcerias Público-Privadas (PPPs) na gestão dos recursos hídricos, levantando questões sobre a priorização de interesses específicos em detrimento do bem comum.
“Os mais atingidos têm raça, classe e gênero bem marcados, e isso deve pautar a agenda de enfrentamento às mudanças climáticas.”
A participação social é considerada limitada e condicionada, sendo a opacidade das informações sobre o plano um fator agravante. A escassez de dados nos canais oficiais dificulta uma compreensão abrangente das ações e dos atores envolvidos. As câmaras temáticas, embora importantes, carecem de transparência sobre sua composição e funcionamento, sugerindo um acesso restrito a atores com relações pré-estabelecidas com o Estado.
Outro ponto de conflito é a preferência do estado e do município por empresas de consultoria internacionais, em detrimento da expertise das universidades e cientistas locais. Essa abordagem tem sido criticada por focar em diagnósticos genéricos e não trabalhar especificamente com as vulnerabilidades sociais das comunidades atingidas, criando uma lacuna para as ciências humanas.
A sub-representação de movimentos sociais e grupos mais vulneráveis nas câmaras temáticas é uma preocupação, limitando a diversidade de perspectivas na formulação de soluções justas. Paralelamente, a Frente Popular de Enfrentamento às Mudanças Climáticas, juntamente com movimentos sociais como o MST e o MAB, tem buscado mobilizar controvérsias e pressionar por uma reconstrução que atenda às vulnerabilidades sociais, inclusive através de missões com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para denunciar violações de direitos humanos. Há uma clara disputa pela responsabilização e direcionamento das ações de reconstrução: de um lado, o diagnóstico centrado nos cientistas (apoiado pelo governo federal), e de outro, o diagnóstico centrado em consultores (preferido pelo estado e município), com a reconstrução via mercado confrontando a reconstrução via atendimento às vulnerabilidades sociais.
Desafios da gestão pública e suas consequências
O cenário da reconstrução no Rio Grande do Sul, evidenciado pela análise do Plano Rio Grande e das discussões que o cercam, revela que a atuação da gestão pública incide significativamente para que as catástrofes não sejam evitadas ou para que seus impactos sejam amplificados. (Figura 2)

Figura 2. Comerciantes retiram entulho para retomar negócios em Porto Alegre
(Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil. Reprodução)
Há instrumentos de política pública voltados para a questão climática, mas eles não são tratados com a centralidade que o tema exige. Ao contrário, prevalece uma setorialização que dissocia a política climática das políticas ambientais. A implementação de políticas climáticas é frequentemente prejudicada pela falta de coordenação e pela priorização de interesses imediatos em detrimento da resiliência a longo prazo. A integração das questões climáticas como uma agenda transversal em todos os aspectos da administração pública ainda é um desafio. A falta de diálogo entre os diversos setores da administração pública e as universidades agrava essa situação.
“A atuação da gestão pública incide significativamente para que as catástrofes não sejam evitadas ou para que seus impactos sejam amplificados.”
Além disso, o impacto da catástrofe de 2024 demonstrou que, quando algumas áreas da cidade apresentam vulnerabilidade, a cidade como um todo se encontra exposta, podendo levar a um colapso sistêmico. As desigualdades sociais acentuam como a crise é vivenciada, com populações marginalizadas enfrentando condições extremas de desalojamento e negligência, mesmo em um colapso abrangente. Ignorar esses marcadores de desigualdade pode resultar em soluções que perpetuam a injustiça e a vulnerabilidade.
Em suma, a experiência do Rio Grande do Sul serve como um alerta crucial: a urgência de uma abordagem integrada e proativa na adaptação urbana às mudanças climáticas é imperativa. A centralidade das políticas climáticas, a coordenação eficaz entre os diferentes níveis de governo, e a mobilização social e participação ativa da comunidade e dos especialistas são fundamentais para construir cidades mais resilientes.