Reminiscências de Cesar Lattes

Confira artigo de Alfredo Marques escrito na ocasião da morte de Cesar Lattes

Resumo

Faleceu dia 8 de março de 2005 em Campinas Cesare Mansueto Giulio Lattes. Lattes pertenceu a essa categoria de pessoas que parecem imortais pela forte presença que exercem em nossas vidas, pelo seu passado e presente. Assim, além da tristeza, seu falecimento trouxe perplexidade a parentes, amigos e instituições da física brasileira. Sua imortalidade, entretanto, não é assim tão aparente: passado o choque dos primeiros instantes reencontramos o encanto de sua presença em nossa vivência cotidiana nas instituições de pesquisa que ajudou a criar e valorizar, no contato com colegas, familiares e ex-alunos, cada um portador de uma saudade e, sobretudo, do exemplo de dignidade, dedicação e grandeza que nos legou. Viverá sempre enquanto acalentarmos essa herança e nos esforçarmos para que transcenda nossas vidas e passe à posteridade.

Introdução

Nasceu a 11 de julho de 1924 em Curitiba. Muito já se escreveu sobre sua formação, sobre a descoberta sensacional do méson-pi que fez aos vinte e três anos e sobre as abrangentes consequências que teve no Brasil e no mundo científico do pós-guerra. Estas páginas se referem mais particularmente ao período posterior àquela descoberta, remetendo o leitor aos textos que trataram dela e de seus desdobramentos mais detalhadamente.[1]

Foi da maior significação sua decisão de radicar-se no Brasil após o sucesso da descoberta e da produção artificial do méson-pi. Núcleos acadêmicos, institutos do mundo inteiro com interesse na física, se gratificariam imensamente com a presença de Lattes: numerosos foram os convites que recebeu. Entretanto decidiu retornar ao Brasil, e aqui se instalar, com auspiciosas consequências para nós.

A descoberta do píon em 1947 e sua produção artificial ano seguinte foram de fato eventos que brilham mais alto em sua carreira, não apenas pelos feitos em si, mas pelos desdobramentos que propiciaram. No exterior o sucesso do experimento de produção artificial do píon confirmou também o acerto técnico do novo princípio de modulação da frequência de aceleração entre os D’s do cíclotron, assim viabilizando a construção de máquinas circulares de energias cada vez mais elevadas, em ritmo que só recentemente arrefeceu.

No Brasil, em 1949, fundava o Centro Brasileiro de Pesquisa Física (CBPF) com a ajuda de outros brasileiros dedicados à ciência, particularmente à física, e políticos mais sensíveis à importância da entrada do país na era atômica, tão sinistramente enfatizada com o desfecho explosivo da 2ª Guerra. O CBPF serviu como aval da permanência de Lattes no Brasil, justificando perante a classe política a responsabilidade do passo institucional seguinte: a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) incluindo entre seus departamentos uma Comissão de Energia Atômica. Além disso, suas atividades em Chacaltaya abriram horizontes novos para a física em toda América Latina, de modo que para esses países Lattes é também considerado como figura científica de excepcional significação: recebeu o prêmio Bernardo Houssay da OEA, pelo que propiciou de desenvolvimento para os povos latino-americanos, o Título de Cidadão Boliviano do governo daquele país, a comenda Andrés Bello do governo da Venezuela e o prêmio da Academia de Ciências do Terceiro Mundo pelo conjunto de suas atividades tão efetivas na implantação da pesquisa científica em nossos países. Foi recentemente homenageado pelo CNPq com a criação do “Currículo Lattes”’ que uniformiza os currículos dos pesquisadores brasileiros num grande banco de dados. Recebeu títulos honoríficos de universidades, mais recentemente da Unicamp e da UNIRIO, e teve seu nome selecionado para batizar diversas escolas médias brasileiras.

Da fundação até meados de 1955 exerceu a Direção Científica do CBPF e dedicou-se a vários projetos no campo da radiação cósmica em Chacaltaya; de 1956 a 1958 foi Prof. Visitante na Universidade de Chicago. Retornou ao CBPF em 1958 aí permanecendo até o final da década. No início dos anos 1960 assumiu interinamente a cadeira de Física Superior na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP, a convite de Mario Schenberg. Nessa ocasião participou do ICEF (Internacional Cooperative Emulsion Flights) e deu os primeiros passos para a Colaboração Brasil-Japão em interações de altíssimas energias na radiação cósmica. Permaneceu na USP até praticamente o final da década, quando se integrou ao projeto de fundação da Universidade de Campinas; para lá transferiu a liderança científica da parte brasileira do projeto da Colaboração Brasil-Japão que já substituíra as atividades do ICEF na USP. Nesse período também fez curtas visitas a Pisa, Itália, das quais resultaram proveitosas incursões na área da geocronologia por traços de fissão, campo que introduziu e ajudou a desenvolver no Brasil.

Este documento constitui-se de pedaços da vida de Cesar Lattes aos quais tive acesso, com ênfase nas atividades desenvolvidas após radicar-se no Brasil. Esse período revela as seguintes características: 1) propósito de completar a descrição científica do objeto que descobrira, o méson-pi, com a medição dos atributos que não fizeram parte da descoberta; 2) confiança irrestrita no método experimental da física e uma sensível avaliação de seu papel na construção da ciência; confiança, em particular, na radiação cósmica como fonte de novos fenômenos para a física básica; 3) esperança no futuro do país e confiança nos brasileiros como capazes de superar as grandes lacunas da época na formação científica e tecnológica; firme crença no papel pedagógico da ciência para a formação das novas gerações, defendendo e impulsionando, desde os primeiros anos, a inserção sistêmica da pesquisa científica no ensino superior e a flexibilização das posturas burocráticas destinadas a sustentar essas práticas. Do ponto de vista humano estas linhas se referem a um ser humano complexo que precisou conciliar sua natureza simples, despojada, linear, com o peso da enorme fama que o seguia. Nem sempre a convivência foi pacífica, dependendo do interlocutor, e fez-se acompanhar algumas vezes de explosões e rompimentos com pessoas ou com as instituições que representavam. Quem conviveu com ele provou de seu bom humor e de amizade calorosa e irrestrita; quem trabalhou com ele sentiu seu grande apreço pela liberdade de pensamento e ação em ciência, garantindo condições de trabalho mesmo quando divergia das ideias de seus associados. A tudo e a todos buscava acolher em manto protetor e talvez por isso fosse tão ciumento de suas amizades e devoções. Jamais trabalhou para a edificação de pedestais que aumentassem sua visibilidade e propiciassem sua adoração. Recebia a adversidade com manifestações bem humoradas, sem qualquer abatimento, como quando foi informado de que seu nome não fora selecionado para o prêmio Nobel: caso tivesse sido premiado estaria hoje gastando todo meu tempo redigindo e assinando cartas de apresentação para físicos. O falecimento veio libertá-lo do jugo implacável de cruel enfermidade nervosa que o afligiu durante toda vida e que foi muitas vezes usada criticamente por pessoas que alimentaram conflitos com Lattes. Muitas vezes o que não passava de persistência a todo preço na defesa de uma posição foi interpretado equivocadamente como fruto daquela fragilidade e não da sua coragem ou vontade.

 

A câmara de Wilson

O ano de 1947 testemunhou duas importantes descobertas na física das partículas elementares: a do méson-pi por Lattes e seus companheiros de Bristol, e a das partículas estranhas, então denominadas partículas-V, por Rochester e Butler, da Universidade de Manchester. A descoberta das partículas-V numa Câmara de Wilson operada ao nível do mar, depois de um número surpreendentemente pequeno de fotografias, até hoje é considerada como demonstração de que algumas vezes os ventos generosos da fortuna, sopram de popa no velame dos físicos: dada a raridade dos eventos ao nível do mar, teria sido necessário um número expressivamente maior de fotos até registrar o primeiro evento (e conseguiram dois). Lattes sentiu que a obtenção de novos eventos dependeria de experimentos feitos em altitudes onde o fluxo da componente nuclearmente ativa da radiação cósmica fosse mais elevado e decidiu levar uma Câmara de Wilson para o Laboratório de Chacaltaya, a 5200 m de altitude. Conseguiu com Marcel Schein de Chicago a doação do instrumento e o levou até o laboratório no alto dos Andes bolivianos. O transporte foi uma mistura de intrepidez e paciência que incluiu trechos em estrada de ferro, carroças puxadas por juntas de bois e pequenos caminhões, já que o peso do instrumento tornava impraticável o transporte aéreo até La Paz. (Figura 1)


Figura 1. Travessia do Rio Grande, entre Corumbá e Puerto Suarez. A região tem uma bacia hidrográfica rica em pequenos rios, afluentes do rio Paraguai; muitos deles apresentam trechos de pequena profundidade favorecendo a travessia
(Reprodução)

 

Muito antes de se revelar um especialista em Emulsões Nucleares, Lattes construiu e operou, ainda estudante, uma Câmara de Wilson por sugestão de Giuseppe Occhialini. O Brasil entrou na 2ª Guerra no ano em que Lattes ingressou no Departamento de Física da USP como estudante de graduação. Após trabalhos teóricos com Wattaghin e com Schenberg, decidiu transferir-se para a física experimental, influenciado por Occhialini. Este fora nomeado pouco antes para o Departamento de Física da USP por G. Wattaghin para atender um pedido de seu pai, temeroso de que Occhialini fosse preso pela polícia política de Mussolini em função de suas posições abertamente antifascistas. Occhialini era um especialista em câmaras de Wilson de excelente reputação, com trabalhos da maior repercussão feitos na Inglaterra com P.M.S. Blackett. Lattes foi iniciado em um projeto de uma Câmara de Wilson sob a orientação de Occhialini, projeto que, entretanto, não foi muito longe: logo a seguir a Marinha Brasileira solicitou ao Departamento de Física a participação no desenvolvimento de um sonar para ajudar na detecção de submarinos alemães que circulavam pelo Atlântico Sul. O Departamento foi forçado a tomar atitudes burocráticas discriminatórias contra Wataghin e Occhialini, ambos cidadãos italianos, portanto tecnicamente considerados inimigos civis. Wataghin foi afastado da Chefia do Departamento e Occhialini conseguiu um emprego como guia turístico para escaladas numa pousada no Parque Nacional da Serra dos Órgãos, em Itatiaia. Lattes convidou dois colegas do curso de física para juntos assumirem o encargo do projeto da Câmara de Wilson, reconstruindo-a, até a operação final. Terminada a Guerra Occhialini foi para Bristol, atraído pelas inovações havidas nas emulsões fotográficas que as tornavam utilizáveis em pesquisas sobre partículas nucleares. Lá recebeu uma carta de Lattes com uma foto de uma cascata eletromagnética obtida com a câmara de Wilson cuja construção completara. Occhialini mostrou a foto a Powell, Chefe do Laboratório H.H. Wills, convencendo-o a oferecer a Lattes um estipêndio que o pudesse manter como membro do grupo de pesquisas com emulsões nucleares. Assim, através de sua competência com a câmara de Wilson, Lattes foi levado às emulsões nucleares com as quais viria a descobrir o píon. (Figura 2)


Figura 2. Giuseppe Occhialini. Físico de pouca matemática, mas grande intuição e dono de um arsenal invejável de habilidades tanto no laboratório como fora dele. Teve seu nome ligado a marcos notáveis da física moderna como a criação da câmara de Wilson com disparo automático, a descoberta das cascatas eletromagnéticas e compartilha com Lattes e Powell da descoberta do píon. Bem humorado e irreverente, sobre ele circularam muitas histórias. Uma é a seguinte: considerava-se provocado quando assinava um trabalho científico com algum colega britânico portador daquela longa fileira de nomes e prenomes abreviados, emblemas da sua descendência aristocrática (trabalhou com Blackett em Manchester durante algum tempo e teve de aturar o P.M.S. daquele autor em algumas oportunidades). Reagiu acrescentando ao G. do bíblico Giuseppe as iniciais P.S., absolutamente fictícias, passando a assinar seus trabalhos científicos como G.P.S. Occhialini.
(Reprodução)

 

Em Chacaltaya a câmara foi montada e logo iniciada a fase de testes operacionais. Entretanto revelou turbulências resistentes a todas as medidas para eliminá-las. Após cerca de dois anos de frustradas tentativas no curso dos quais o campo das partículas estranhas se desenvolvia com emulsões nucleares expostas à radiação cósmica em voos de balões, Lattes decidiu suspender os trabalhos com a câmara de Wilson.

Desde a chegada da câmara a Chacaltaya Lattes trabalhou naquele laboratório, então funcionalmente ligado ao CBPF como um de seus departamentos. A esse propósito vale reproduzir trecho do depoimento do prof. J.C. Ribeiro em seu artigo sobre A Física no Brasil:[2]

 

No laboratório de Chacaltaya, montado num esforço de colaboração pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e a Universidade de Santo André, numa altitude de 5.600 metros, nos Andes Bolivianos, preparam os profs. Cesar Lattes, U. Camerini, I. Escobar, A. Hendel, com uma equipe de jovens pesquisadores brasileiros e bolivianos, um programa de pesquisas, compreendendo, entre outros assuntos, a determinação precisa da vida média do méson-pi, por meio de circuitos de alto poder discriminativo, a medida da densidade e do espectro de energia dos “showers” extensos, o estudo das partículas instáveis que acompanham os “showers” penetrantes, entre as quais se encontram o chamado méson-V e outros tipos de mésons ainda mal conhecidos; a determinação do segundo máximo da curva de Rossi, etc. Os estudos sobre as partículas instáveis serão feitos com a câmara de Wilson, cedida pelo Prof. Marcel Schein da Universidade de Chicago; os outros estudos utilizam contadores e circuitos de alto poder discriminativo, construídos nos laboratórios e oficinas do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas do Rio de Janeiro.

 

Também era intenso o intercâmbio com visitantes estrangeiros; nesse período o Laboratório de Chacaltaya alcançou reputação internacional como centro de investigações sobre a radiação cósmica. A medida da vida média do píon constituía parte de um programa que Lattes se propusera: completar a descrição científica daquela partícula. A medida desse atributo em mésons da radiação cósmica é bem mais complicada do que em mésons produzidos em aceleradores e estes se tornavam rapidamente disponíveis com energia acima do limiar de produção daquela partícula após a confirmação do princípio da modulação em frequência com a produção artificial dos píons. O experimento em Chacaltaya usava cintiladores orgânicos líquidos, pela velocidade da resposta, e dispositivos eletrônicos diversos para formar, selecionar e contar os impulsos em coincidências dos cintiladores. Esses instrumentos estavam todos sendo construídos e testados no CBPF Nossos técnicos, quase todos oriundos do radioamadorismo ou dos reparos em receptores de rádio, não desfrutavam de familiaridades com as sutilezas da eletrônica na faixa do nanosegundo. Tampouco as válvulas eletrônicas a vácuo disponíveis no país se adequavam àquelas tarefas. Assim Lattes perdeu a corrida para os físicos trabalhando em aceleradores que já contavam com recursos humanos qualificados em eletrônica rápida e componentes adequados: em 1951 mediram a vida média do méson-pi, usando mésons artificialmente produzidos. Entretanto essa etapa criou no CBPF uma competência nessa área que viria a ser útil em futuros trabalhos. As atividades em Chacaltaya propiciaram também completa autonomia em toda uma linha de instrumentos eletrônicos – fontes de alimentação de alta e baixa tensão, escalímetros, discriminadores, circuitos de coincidências, com resoluções na faixa do microssegundo – capazes de atuar em experimentos com detectores Geiger-Müller, bem como uma linha de produção doméstica desses detectores para outros experimentos em Chacaltaya. Essa autonomia foi perdida na década seguinte quando da substituição da válvula eletrônica a vácuo pelo transistor, mercê de profunda crise de recursos que desabou sobre o CBPF quando essa inovação apareceu. (Figura 3)


Figura 3. Lattes no caminho para o Laboratório de Física Cósmica no Monte Chacaltaya. O Laboratório tem a vantagem do acesso por estrada desde La Paz, aliada à excepcional altitude de 5200 m. O ponto culminante do Monte Chacaltaya tem mais 400 m, mas a grande maioria das instalações do Laboratório se encontram na cota de 5200 m. Ao fundo, na foto, o majestoso Huayna-Potosí, montanha vizinha, com neve permanente e mais de 6000 m de altitude.
(Reprodução)

 

Embora dedicasse longos períodos em Chacaltaya, Lattes ocupava também a Direção Científica do CBPF e regularmente deixava seus empenhos científicos para ocupar-se dos problemas da casa. Na ocasião o CBPF desenvolvia o projeto de construção de um sincrocíclotron de baixa energia, protótipo de uma máquina maior, acima do limiar para a produção de mésons-pi, cujo projeto fora acertado entre o CNPq e a Universidade de Chicago. Um problema contábil envolvendo a prestação de contas de recursos transferidos do CNPq para o CBPF dentro daquele projeto desencadeou uma crise entre as duas instituições, trazendo Lattes de La Paz para o Rio já que era o avalista último, no CBPF, da lisura nas aplicações daqueles fundos. O problema, manipulado por correntes políticas interessadas na derrubada do Presidente Vargas, juntou-se a outros, ocupando a mídia e a recém-nascida TV. A crescente pressão determinada pelos adversários de Vargas terminou por levá-lo ao suicídio, em 24 de agosto de 1954. À turbulência política do período somou-se violenta crise inflacionária: no fim da década de 1950 o salário de um Professor Titular pago pelo CBPF era equivalente a cerca de US$80,00!

Em meados da década problemas de saúde agravados por essas conturbações levaram Lattes a afastar-se: em 1955 embarcou para os EUA onde, além de tratar-se, liderou uma grande polêmica, enquanto professor visitante no Departamento de Física da Universidade de Chicago, envolvendo o spin do méson-pi.

 

A polêmica sobre o spin do píon

As propriedades do méson-pi foram sendo medidas para completar a descrição física dessa partícula: primeiro a massa e o modo de desintegração, pelo próprio Lattes e o grupo de Bristol. A tentativa da medição da vida média em Chacaltaya, como se viu, não foi bem sucedida, em tempo de competir com o resultado obtido com feixes de píons produzidos em aceleradores em 1951. Em 1953, a do méson neutro foi medida, em Bristol, com emulsões expostas à radiação cósmica em voos de balões.

 

“A descoberta do píon em 1947 e sua produção artificial no ano seguinte foram de fato eventos que brilham mais alto em sua carreira, não apenas pelos feitos em si, mas pelos desdobramentos que propiciaram.”

 

O pequeno valor da meia vida do píon torna impraticável a realização de um experimento de ressonância para medir diretamente o seu momento magnético e dele extrair o valor do spin. O jeito encontrado foi extrair o valor daquele importante atributo do fator estatístico relacionando as seções de choque para os processos p + p ® D + pe a captura de pem deutério, segundo o princípio do balanço detalhado. O spin do méson neutro foi fixado a partir da observação da desintegração em dois fótons e de uma análise teórica segundo a qual a desintegração em dois fótons é possível apenas se S = 0, 2, 4…, como no caso do positrônio; descartava assim o valor S = 1 que, com S = 0, são os únicos consistentes com o modo de desintegração. Os dois métodos – o do princípio do balanço detalhado para o méson carregado e o da desintegração em dois fótons para o méson neutro – foram empregados, deles resultando consistentemente S = 0. Tanto num caso como no outro a fixação desse valor para o spin do píon está longe de ser o que a maioria dos físicos experimentais aceitaria como sendo uma medição daquele atributo. Embora poucos duvidem do resultado (S = 0), é menos por acreditarem na existência de uma medição confiável daquele atributo do que pela confirmação abundante da consistência daquele valor com o spin conhecido de outras partículas dentro das leis de conservação. A avaliação do spin do méson carregado a partir da comparação dos valores das seções de choque de produção e captura, dentro do princípio do balanço detalhado, é considerada mais frágil que a que envolve o modo de desintegração do méson neutro.

A descoberta da não-conservação da paridade nas interações fracas abriu novas alternativas para uma medição indireta do spin dos píons carregados, capaz de levar os três mésons, p+, p e p0 a um mesmo patamar de significação experimental. A paridade é um atributo introduzido pelos espectroscopistas do início do século para caracterizar os níveis atômicos e as transições eletromagnéticas entre eles. Mais adiante recebeu um tratamento mais apurado, através de um operador que muda o sinal de todas as coordenadas, trocando um sistema dextrógiro de eixos coordenados por um levógiro. Mediante sua aplicação os estados quânticos de um sistema mudam de sinal ou não, sendo no primeiro caso conhecidos como de paridade positiva e no segundo negativa. A paridade dos estados atômicos sempre foi conservada: as transições eletromagnéticas ligando-os se encarregam de levar a paridade adequada para garantir a conservação. Foi assim até que estudos com a interação fraca mostraram que a paridade dos sistemas pode ser violada. Primeiro foi o caso da desintegração de mésons estranhos observados na radiação cósmica, o chamado enigma t- q, depois o caso da desintegração beta do 60Co, onde a constatação da violação da conservação da paridade foi obtida por meio de um famoso experimento. Esse experimento envolveu a comparação entre dois arranjos, um sendo o refletido especular do outro. É que o operador de paridade é equivalente a uma reflexão especular seguida de uma rotação de 180° em torno de um eixo perpendicular ao plano do espelho; como normalmente os sistemas físicos são invariantes por rotações (conservação de momento angular), a reflexão especular torna-se exaustiva do conteúdo da transformação de paridade. A conservação da paridade requer que o experimento direto e sua imagem refletida sejam inteiramente equivalentes; caso contrário há violação. No caso da desintegração b do 60Co se observa a emissão de elétrons em relação à direção do spin nuclear, alinhado mediante um forte campo magnético externo. O spin nuclear é usado para definir uma direção privilegiada em relação à qual a emissão dos elétrons é observada, direção essa que se inverte no arranjo “refletido”. O experimento “refletido” se faz invertendo as correntes nos solenoides geradores do campo; o campo magnético se inverte e com ele a direção de alinhamento do spin nuclear. O experimento mostrou que a emissão de elétrons paralelamente ou antiparalelamente ao spin nuclear tem distribuição diferente nos dois casos, e, portanto, que é violada a conservação da paridade.

No caso do píon sua desintegração também se faz via interação fraca. A figura acima representa um evento fictício onde um píon, com spin zero (s = 0) para numa emulsão nuclear e desintegra em um múon e um neutrino; o múon, por sua vez, após percorrer uma distância fixa (» 600 mícron em emulsão tipo G-5), desintegra-se num elétron e dois neutrinos. O exemplo não representa os estados de carga dos mésons nem separa neutrinos de antineutrinos, para simplificar a discussão, mas separa com sub-índice os neutrinos vinculados ao múon daqueles vinculados ao elétron. A conservação de momento e de momento angular requer que o múon seja emitido com pm = – pn com spins intrínsecos antiparalelos, como na figura (a emissão do múon não envolve graus de liberdade de momento angular orbital). O resultado é que no caso representado, supondo o spin do píon como zero, o múon é emitido com polarização paralela à sua velocidade; caso o spin do píon seja 1 resulta que o múon será emitido com polarização antiparalela à velocidade, uma vez que a polarização do neutrino é atributo absoluto dessa partícula e continuará paralela à velocidade. Assim a situação com s = 1 para o píon é a imagem especular daquela com s = 0, e, portanto, todos os característicos observáveis tomados em referência a essa direção privilegiada (a direção de emissão do múon) serão diferentes nos dois casos. A situação não é assim tão simples, embora os complicadores não cheguem a desautorizar a conclusão. Primeiro, no caso da radiação cósmica a maioria dos píons que se desintegram em repouso é constituída de p+; os p são, em sua maioria, primeiro capturados em órbitas de Bohr atômicas e em seguida capturados no núcleo onde produzem uma reação com a emissão de várias partículas, conhecida como estrela. Apesar de essa ser a situação típica, sempre há um número de píons negativos que não são capturados e desintegram contribuindo com uma pequena contaminação. Outro complicador é a mudança na direção da velocidade de translação dos múons, no curso das interações com átomos do meio, afetando assim a permanência da polarização original dessas partículas, um efeito conhecido como despolarização. A despolarização afeta tanto o caso do spin 0 como o de spin 1 de modo que prevalece a conclusão sobre a não equivalência dos característicos observados num caso e no outro, em face do que prescreve a não conservação da paridade. Assim, a despeito dessas dificuldades, um experimento sobre a assimetria na distribuição angular dos elétrons, tomada com referência à direção de emissão dos múons, poderia distinguir os casos de spin do píon s = 0 e s = 1 e colocar em outra posição o problema da medição do spin do píon carregado.

Na ocasião Lattes se encontrava em Chicago como visitante, tomando parte do grupo que expunha emulsões nucleares em voos de balão; reuniu alguns colaboradores e deu início à observação do coeficiente de assimetria (razão entre os números de elétrons emitidos na direção da velocidade inicial dos múons para aqueles emitidos na direção oposta) dos elétrons na desintegração p ® m ® e em emulsões expostas em voos de balões. As primeiras medições revelaram uma assimetria líquida acima do erro estatístico diferente daquela obtida anteriormente num experimento com detectores eletrônicos, na hipótese sp = 0, assim questionando aquele valor, costumeiramente aceite, e a notícia rapidamente se espalhou. Longa polêmica então se avolumou na esteira do anúncio de Chicago, calcado no prestígio de Lattes, envolvendo grupos de pesquisas em todo o mundo. Conforme suas limitações e recursos os grupos experimentais se dividiam entre repetir o experimento com píons da radiação cósmica, uns, e outros com feixes de píons produzidos em aceleradores. Os diferentes resultados obtidos mostraram uma dependência com a origem dos píons: os obtidos na radiação cósmica mostraram tendência à assimetria semelhante à encontrada em Chicago por Lattes e colaboradores enquanto que os grupos trabalhando com emulsões expostas ao feixe de píons em aceleradores apresentavam resultados consistentes com os obtidos com detectores eletrônicos. A discussão se prolongou por cerca de dois anos, terminando num impasse, consignado numa reunião internacional na Itália, com os anais publicados em volume suplementar do Nuovo Cimento. Lattes defendeu a opinião de que não havia erros instrumentais em ambos os resultados, o que o levou a considerar eventuais diferenças de comportamento entre os píons da radiação cósmica e os de aceleradores. Indagado sobre por que a natureza usaria dois tipos de méson, um com spin zero outro com spin 1, respondeu: “- não sei, mas a resposta deverá estar na radiação cósmica e não na cabeça da gente”. Essa resposta mostra o peso que sempre deu à observação experimental. Lattes mostrou durante toda a vida uma notável consistência profissional: voltou à radiação cósmica através do ICEF e da Colaboração Brasil-Japão em busca de respostas aos questionamentos que formulara e sempre dando crédito total às observações experimentais.

Lattes retornou ao CBPF em 1958, ainda em meio a essa polêmica, mas procurou iniciar outras frentes de trabalho, utilizando emulsões expostas no Van de Graff e no Betatron de S. Paulo, para o estudo de reações nucleares de baixa energia. Após a finalização de alguns trabalhos com estudantes graduados, e diante do agravamento da situação de sustentabilidade do CBPF para vencer as dificuldades de reunir um orçamento mínimo, licenciou-se e, em 1960, assumiu uma posição no Departamento de Física da USP, a convite de Mario Schenberg. Participou, nessa ocasião, de uma cooperação internacional sobre eventos de alta energia em pilhas de emulsões nucleares expostas em voos de balão, conhecida como ICEF (International Cooperative Emulsion Flights). Coordenado por Marcel Schein de Chicago, o projeto consistia em levar grandes pilhas de emulsões a altitudes elevadas, dividindo o material, após exposição por várias horas à componente primária da radiação cósmica, entre os numerosos grupos dos quinze países associados. O ICEF operou por alguns anos, mas acabou sendo abandonado devido a dificuldades operacionais envolvendo a extrema colimação do “jato” de hádrons nos eventos a energias mais altas: o ângulo de emissão no Sistema do Laboratório é normalmente tão pequeno que muitas vezes as partículas escapavam da câmara antes de se separarem a ponto de viabilizar medidas individuais.

 

A Colaboração Brasil-Japão

O ICEF foi, após a publicação de alguns trabalhos, substituído, na USP, pela Colaboração Brasil-Japão.

Para os antecedentes de criação da colaboração Brasil-Japão nada como as palavras do próprio Lattes. Assim se manifestou no Prefácio à Tese para o provimento da cátedra de Física Superior, que apresentou à Congregação da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras em 1966:[3]

 

Em maio de 1962, seguindo sugestão feita pelo Prof. H. Yukawa* foi iniciado um trabalho de colaboração entre os laboratórios de emulsões nucleares da USP e da Universidade de Tóquio. O objetivo principal da colaboração brasileiro-japonesa (CBJ) era e continua sendo o estudo de interações nucleares de energia E > 1015 eV, produzidas pela Radiação Cósmica (RC) e detectadas em câmaras de emulsões fotográficas – chumbo (CENC) expostas durante períodos de vários meses no pico de Chacaltaya – Bolívia, 5.200 metros de altitude ( pressão de 550 g x cm – 2).

 

Vide carta do Prof. H. Yukawa ao autor, transcrita no final deste Prefácio

 

A experiência e os ensinamentos dos colegas japoneses foram de grande importância para o êxito do trabalho realizado pelo grupo de S. Paulo, ao qual coube a responsabilidade pelas exposições e pelo processamento químico de todas as CENC, e a realização das medidas e da análise das câmaras 1, 3, 4, 5 e de cerca de 50% das 8 e 11.

Resultados parciais da C.B.J. a qual, em 1964 foi estendida ao Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e a oito universidades japonesas, foram apresentados em Conferências Internacionais de Raios Cósmicos da UIPPA realizadas em Jaipur (1963) (Ref. 1) e em Londres (1965) (Refs. 2, 3, 4), sendo também objeto de publicações (Refs. 5, 6, 7) e de comunicações em reuniões científicas (Refs. 8 a 19).

 

Mais adiante, no Epílogo, Lattes relaciona essas pesquisas como a continuação dos trabalhos que constituíram o início da física brasileira moderna:

 

É com satisfação e emoção que registramos que as pesquisas descritas na presente Tese são, essencialmente, continuação dos trabalhos pioneiros devidos aos mestres que fundaram o Departamento de Física da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e iniciaram a tradição de pesquisas do mesmo Departamento.

As cascatas eletromagnéticas foram descobertas em 1933 por Blackett e Occhialini. Os “jatos” e as famílias devidas a interações nucleares são, em escala energética mais elevada, os chuveiros penetrantes descobertos por Wataghin, Souza Santos e Pompéia, em S. Paulo, em 1940; Schenberg desenvolveu em 1940 a teoria da propagação das cascatas eletromagnéticas e da componente “dura” da radiação cósmica na atmosfera.

Ao redigirmos este trabalho não podemos deixar de sentir a importância fundamental dos resultados acima citados….

 

E adiante, nos Agradecimentos:

 

A CBJ deve a sua existência e a sua continuidade aos esforços e ao encorajamento constantes dos profs. M. Schenberg e M. Taketani; agradecemos a estes mestres e aos profs. H. Yukawa e S. Tomonaga pelo interesse e pelo apoio permanentes que foram essenciais para o andamento dos trabalhos.

 

As câmaras da CBJ são constituídas por uma justaposição de módulos de placas de chumbo, placas de emulsão nuclear e filmes de raios-X; qualquer dos fótons de desintegração de um méson pi, formado na interação de um primário de alta energia da radiação cósmica com um átomo da atmosfera, ao entrar na placa de chumbo ou mesmo no percurso da atmosfera antes de chegar à câmara, dá origem a uma cascata eletromagnética cujos elétrons podem ser contados nas emulsões e, conforme a energia e a espessura de chumbo atravessada, deixar uma marca no filme de raios-X visível a olho nu. A contagem de elétrons nas emulsões permite acesso à energia do fóton usando a teoria das cascatas eletromagnéticas. Além disso a sequência de marcas nos filmes de raios-X, em diferentes planos ao longo do desenvolvimento da cascata, define segmentos de reta cuja convergência permite identificar o ponto de desintegração do pi. As técnicas usadas evoluíram ao longo do trabalho: câmaras a dois estágios com produtor, favorecendo as interações produzindo pi’s, foram introduzidas e métodos de medida de densidade óptica foram empregados nos filmes de raios-X previamente calibrados contra a contagem de elétrons nas emulsões, para dar maior velocidade à análise dos eventos. Uma descrição detalhada foi dada por Lattes em sua Tese [3] e também num artigo de Neusa Amato.[4] (Figura 4)


Figura 4. Lattes com o prof. Yoichi Fujimoto, um dos líderes japoneses da Colaboração Brasil-Japão. Inteligente, bem humorado, negociador habilidoso, excepcional capacidade de trabalho, visitou o Brasil numerosas vezes dentro da Colaboração, prestando sempre valiosa contribuição.
(Reprodução)

 

Os custos das câmaras ficariam repartidos entre as partes brasileira e japonesa do seguinte modo: a parte japonesa entrava com o material fotográfico – emulsões nucleares e filmes de raios-X – enquanto a parte brasileira se ocuparia das placas de chumbo e da revelação do material fotográfico após exposição; a Universidade de San Andrés garantiria uma área coberta suficiente para acomodar as câmaras no Laboratório de Chacaltaya e encaminharia estudantes para participar do projeto. (Figura 5)


Figura 5. Aspecto de uma das camarás da CBJ, vendo-se o piso de chumbo usinado e parte da estrutura de apoio.
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Nascia assim a Colaboração Brasil-Japão (CBJ) para a observação de interações a altas energias na radiação cósmica. Aproximou físicos brasileiros, bolivianos e japoneses por um período de cerca de trinta anos, sendo possivelmente o exemplo de máxima longevidade no âmbito das colaborações científicas internacionais. Vale mencionar que, no momento mesmo em que se instalava a câmara piloto, os físicos reunidos na Conferência Internacional sobre a Radiação Cósmica que transcorria em La Paz, revelavam o sentimento de que os trabalhos com a radiação cósmica em estações baseadas em terra teriam chegado ao seu fim em face das aberturas propiciadas pelas observações com satélites dedicados. Este vaticínio fez parte do discurso de dom Manuel (Sandoval Vallarta), decano da comunidade, que encerrou a Conferência; de certo modo se confirmou, mas a colaboração Brasil-Japão nasceu, cresceu e vicejou na contramão dele. A ela veio se juntar, mais recentemente, o projeto Auger. (Figura 6)


Figura 6. Mario Schenberg. Estudou Engenharia no Recife sendo encaminhado a S. Paulo pelo prof. Luiz Freire. Pouco depois era aprovado no concurso para a cátedra de mecânica celeste. Segundo Wataghin Schenberg era um pesquisador independente desde seus primeiros anos em S. Paulo. Intelectual de amplos interesses e excepcional cultura é mais correto, talvez, classificá-lo como pensador do que como físico. Marxista, consagrou-se nas artes plásticas brasileiras como respeitado crítico; na política foi representante `a Assembleia Legislativa de S.Paulo, eleito pelo PCB; na física deixou importantes contribuições em astrofísica, na passagem de partículas carregadas em meios materiais, na teoria das cascatas eletromagnéticas, na teoria das partículas elementares. Foi colaborador de Gamow, Chandrasekar, Amaldi e Professor Visitante na Universidade Livre de Bruxelas.
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As primeiras comunicações científicas da Colaboração Brasil-Japão referiram-se inicialmente à solução de problemas instrumentais e fixação de parâmetros das exposições e processamento do material fotográfico; resultados sobre as interações em altas energias vieram a aparecer alguns anos após a instalação da câmara piloto. Nesse intervalo muitos episódios ocorreram na área política brasileira que tiveram consequências para o curso da CBJ.

 

“As propriedades do méson-pi foram sendo medidas para completar a descrição física dessa partícula: primeiro a massa e o modo de desintegração, pelo próprio Lattes e o grupo de Bristol.”

 

No Departamento de Física da USP teve lugar forte movimento para a realização de concurso público para o provimento da cátedra que Lattes ocupava interinamente. Esse movimento teve a participação decisiva de Mario Schenberg para quem a vitória de Lattes seria certa quaisquer que fossem os demais candidatos, em face de sua superior notoriedade científica. A ideia, entretanto, irritou Lattes profundamente. Lattes tinha, de fato, objeções de princípio quanto ao tipo de concurso usado na seleção para ocupantes das cátedras, considerando-os burocráticos e cartoriais, na melhor tradição bacharelesca brasileira. Era mais ou menos como selecionar titular para uma cátedra de piano através de uma dissertação escrita sobre tema musical pertinente, lista de concertos que o candidato dera, as salas que os exibiram, prêmios e distinções recebidas, etc., sem que nem um só dos membros da banca o tivessem jamais ouvido tocar. Mas não foram essas críticas de princípio que o levaram à irritação e sim o momento em que o concurso acontecia, coincidindo com a necessidade de atenção integral à Colaboração Brasil-Japão que superara a fase de testes iniciais e passava à fase de tomada e análise de dados. Era necessário consolidar a técnica de medidas entre os brasileiros, ampliar os grupos para compartilhar equitativamente o material de pesquisa com os grupos japoneses, ampliar instalações no Brasil e em Chacaltaya. Lattes precisou deixar de lado as atenções devidas à CBJ para dedicar-se à redação de uma tese de concurso e jamais perdoou Schenberg por isso. Após esse momento o relacionamento entre eles tornou-se estremecido. O retardo acarretado à CBJ fez com que os principais resultados se dessem depois que Lattes se transferiu para a recém criada Universidade de Campinas que substituiu a USP dentro da parte brasileira da CBJ.

 

Lattes e a Unicamp

Zeferino Vaz, ex-reitor da Universidade de Brasília na fase pós-colapso,[5] percebendo a importância da física dentro daquele projeto como emblema de modernidade e padrão de qualidade científica, procurou seu amigo Marcelo Damy, então aposentado na USP, para a criação de uma nova unidade universitária que pudesse atender às necessidades da progressista região de Campinas. Damy, físico bem sucedido, integrara com destaque a equipe de Gleb Wattaghin nos trabalhos pioneiros que culminaram com a descoberta dos chuveiros penetrantes. Ganhou grande notoriedade nas áreas nucleares adquirindo um Betatron para o Departamento de Física e dirigindo o grupo que ali produziu anos a fio numerosos trabalhos científicos no campo das foto-reações. Damy foi também responsável pela implantação do atual IPEN em torno de um reator de pesquisas que adquiriu para esses fins, até hoje em atividade. Pessoa empreendedora, com amplo trânsito nos domínios científicos e áreas políticas, apareceu como figura ideal para coordenar o projeto. (Figura 7)


Figura 7. Marcello Damy de Souza Santos, talentoso físico experimental foi responsável por todos os circuitos eletrônicos do célebre experimento que descobriu os chuveiros penetrantes em 1940, com G. Wataghin e P.A. Pompeia. Foi Chefe do Departamento de Física da Faculdade de Filosofia da USP e fez funcionar um Betatron adquirido no Canadá, considerada a máquina de melhor eficiência já operada no Brasil pelos anos de operação contínua e volume de trabalhos publicados. Também instalou um reator nuclear de 5 Mwatt que nucleou a constituição do atual IPEN. Exerceu a Presidência da CNEN durante curto período precedendo o movimento militar de ’64. Participou da implantação da Unicamp.
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Ninguém melhor que Lattes com seu imenso prestígio para qualificar a iniciativa; Damy ofereceu-lhe condições excelentes a serem desfrutadas na medida que o projeto avançasse, praticamente sem divergências e ciúmes paroquiais, até que se completasse o Instituto de Física, onde continuaria com o destaque merecido. Lattes aceitou de pronto e nem esperou pelas edificações do Instituto de Física no campus de Barão Geraldo: transferiu-se com seu grupo e equipamentos para um porão numa tradicional escola de ensino médio de Campinas – o Colégio Culto à Ciência – que já tivera alunos famosos como Alberto dos Santos Dumont e professores renomados como Aníbal de Freitas, autor talvez do primeiro texto de física para estudantes secundários escrito por um brasileiro para brasileiros.

Lattes permaneceu por alguns anos nessas acomodações provisórias até que ficasse pronta a edificação do Instituto de Física. A Unicamp formou-se em torno de seu Instituto de Física e este em torno da figura de Lattes. Os primeiros grandes resultados da CBJ datam dessa fase, quando foram identificados os estados discretos da matéria que Lattes batizou como Mirim, Açu e, um pouco depois, o estado Guaçu, alusão aos diferentes conteúdos energéticos desses estados em homenagem ao idioma dos habitantes primevos do Brasil. Assim se manifestou Mario Schenberg a propósito dessa descoberta:

 

Só o tempo poderá demonstrar a importância da comprovação da existência desse estado intermediário da matéria, mas tudo leva a crer que nos permitirá compreender com maior profundidade o comportamento dos hádrons e outras partículas, abrindo uma fascinante perspectiva no campo da Física Nuclear… É aqui que se insere a importância da descoberta do prof. Cesar Lattes que é fascinante, pois permite suspeitar da existência de alguma coisa que está para lá dos prótons, nêutrons e bárions.

(Entrevista a O Globo de 30 de maio de 1969.)

 

A despeito do vertiginoso progresso havido nas técnicas de aceleração de partículas, ensejando energias cada vez mais elevadas, a CBJ se manteve por ao menos duas décadas à frente das maiores energias artificialmente criadas. A escalada em busca de energias mais elevadas, certamente presentes nos primários da radiação cósmica, esbarrou em problemas de custos para aumentar a área sensível das câmaras já que o fluxo das componentes de maior energia é pequeno e não se pode aumentar muito o tempo de exposição para não perder eventos por ação do “fading” no material fotográfico. Entretanto, além dos estados discretos da matéria a CBJ registrou um evento possivelmente o de maior energia já detectado: foi denominado “Andrômeda”, e sua energia, estimada através de seus secundários, é e cerca de 20000 TeV! (Figura 8)


Figura 8. Andrômeda. Família de hádrons detectada na câmara n. 14 da CBJ, a 11 comprimentos de radiação de Pb. A câmara era constituída por 12 cm de Pb intercalados com 10 camadas de filmes de raios-X e placas de emulsão nuclear. A energia do evento foi estimada em 20000 TeV.
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Finalmente as câmaras da CBJ registraram também eventos que por sua morfologia receberam a denominação de exóticos. Seus atributos observados não são totalmente inquestionáveis por envolverem alguma arbitrariedade. Pelo menos um deles, entretanto, denominado Centauro, os teve bem determinados: nesse caso tudo indica que o evento original se desintegrou sem a emissão de píons. É possível que este seja um exemplo das coisas novas a que se referiu Mario Schenberg no depoimento acima.

 

Turbulência, política, geocronologia e quase cristais

No ano de 1964 o Brasil foi palco de um movimento militar que depôs o presidente João Goulart, constitucionalmente eleito. Os meses que se seguiram à tomada do poder foram de violação contínua às liberdades públicas. Os setores sindicais, de organização popular social e os acadêmicos foram os mais visados. As invasões dos domínios universitários eram constantes, com prisão de professores, alunos, funcionários. Muitos professores foram aposentados compulsoriamente e muitos alunos impedidos de completar os atos burocráticos necessários à formatura. O quadro se repetiria quatro anos depois, com a edição do Ato Institucional n. 5.

Lattes alimentava na ocasião um interesse na hipótese da variação dos valores das constantes da física com o tempo, levantada anos antes por P.A.M. Dirac, interesse que nasceu de uma conjetura na área da cosmologia que fizera e apresentara à Conferência sobre Raios Cósmicos de 1962 em La Paz. A turbulência doméstica fez com que acelerasse seus planos de viagem ao exterior para aprofundar conhecimentos sobre técnicas de datação geológica envolvendo métodos como o do Rb – Cs, K-A e traços de fissão, onde aquelas constantes aparecem em diferentes maneiras: a comparação de idades de material geológico datado com os três métodos poderia dar indicações sobre eventuais variações temporais daquelas constantes. Assim foi para Pisa, onde já existia um instituto que praticava rotineiramente datações geológicas com Rb – Cs e K-A; acertou com o Chefe do Departamento de Física da Universidade de Pisa, seu amigo pessoal, a orientação de um aluno dentro de um projeto de avaliação detalhada do método de datação por traços de fissão proposto anos antes por Fleischer e Price. Esse aluno deu um precioso relato [6] sobre seu encontro com Lattes, sobre a implementação do método de traços de fissão para datação geológica em Pisa e, posteriormente, na UNICAMP. Em certo momento Lattes recebeu a notícia da prisão de Schenberg pelas autoridades militares, por ter seu nome registrado nas “temíveis” cadernetas de endereços de Luís Carlos Prestes, ex-Secretário Geral do Partido Comunista Brasileiro. Lattes saiu recolhendo assinaturas da comunidade de físicos da Europa, pedindo a libertação de Schenberg. O documento já recebera a solidariedade de nomes dos mais expressivos da física europeia, mas enquanto as assinaturas se acumulavam Schenberg foi libertado a partir de expedientes mais caseiros. (Figura 9)


Figura 9. Traços visíveis ao microscópio devidos a fragmentos da fissão de U-238 em diferentes materiais contendo urânio fóssil: Do alto para baixo e da esquerda para a direita: Obsidiana, Mica Muscovita, Vidro vulcânico (zircon) e Apatita (De G. Bigazzi e J.C.Hadler Neto Cesar Lattes: A Pioneer of Fission Track Dating, em Cesar Lattes 70 Anos, a Nova Física Brasileira, Ref. 1).
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De volta ao Brasil Lattes buscou implementar na Unicamp o método dos traços de fissão para datações geológicas. Fragmentos de fissão e outras partículas ionizantes produzem danos estruturais na maioria dos meios materiais, danos esses cujas dimensões podem ser ampliadas pela ação de um agente corrosivo no qual o material é imerso por um certo tempo. Quando o meio é transparente os danos ampliados se tornam visíveis no microscópio ótico em moderados aumentos; chamam-se traços de fissão. Alguns desses meios encontrados em rochas, lavas vulcânicas, etc., contêm urânio natural em pequenas proporções (ppm – parte por milhão ou menos) o que dá margem a um interessante método de datação. No caso da mica muscovita, por exemplo, o Urânio-238 nela contido dará origem a um certo número de traços devidos à sua fissão espontânea: mais antiga a mica mais numerosos esses traços, conhecidos como traços fósseis . Felizmente a mica é insensível às partículas alfa emitidas abundantemente pelos isótopos do Urânio: elas provocam danos estruturais abaixo do limiar para a corrosão e permanecem invisíveis ao microscópio. A idade da amostra pode ser determinada se conhecermos a quantidade de U-238 presente atualmente. Esta é determinada através da medida da quantidade atual de U-235 e da relação isotópica entre os dois nuclídeos também medida nos dias presentes. A quantidade de U-235 por sua vez é obtida levando a mica a um reator onde é exposta a um fluxo conhecido de nêutrons térmicos por um tempo controlado, o que determina um certo número de traços de fissão chamados induzidos; com a contagem dos traços induzidos, mais os parâmetros de irradiação e a seção de choque do U-235 para fissão, a quantidade desses núcleos presentes na mica é determinada. A passagem do número de traços contados para o número de fissões atualmente ocorridas, tanto no caso dos traços induzidos como no dos fósseis passa por um parâmetro importante que é a probabilidade de detecção dos fragmentos. Para fissões ocorrendo no interior de um folículo de mica os fragmentos de maior comprimento terão uma chance maior de chegar à superfície e aí abrir uma janela para a penetração do agente corrosivo que os tornará visíveis. Assim os comprimentos dos fragmentos fósseis e induzidos são utilizados na equação que fornece a idade da amostra, efetuando a conversão entre o número de traços observados e o número de fissões efetivamente ocorridas. Como a mica muscovita exibe propriedades fortemente anisotrópicas, Lattes precisava se assegurar sobre a eventual preferência pela detecção dos fragmentos em certas direções de emissão, isto é, se a distribuição azimutal do comprimento dos traços (distribuição dos ângulos projetados dos traços no plano objeto do microscópio) seria ou não uniforme.

Lattes convidou uma estudante de Mestrado e lhe deu como tema de tese o exame da distribuição azimutal dos traços de fissão tanto fósseis como induzidas na mica muscovita. Após exaustivas medições ficou claro que a distribuição azimutal dos comprimentos dos traços de fissão é fortemente anisotrópica tanto no caso das fissões fósseis como no das induzidas, mas suas contribuições são idênticas de modo que essas anisotropias não afetam o resultado das datações. Esta foi a principal conclusão daquela tese. Entretanto a análise das regularidades periódicas das distribuições angulares (análise de Fourier) revelou a presença de um eixo de simetria de quinta ordem, proibido como se sabe, em qualquer estrutura cristalina. Consultados, os cristalografistas foram unânimes em declarar impossível essa ordem de simetria, sugerindo algum erro nas observações. Lattes reviu tudo e concluiu pela correção das medidas; liberou a tese para apresentação e encaminhou o trabalho para publicação.[7] Argumentava que a mica era um mineral e não um cristal e que, portanto, não devia seguir as mesmas restrições daqueles. Outra vez sua irrestrita confiança nos dados da observação.

Isto encerrou a questão, mas deixou no ar a simetria quinária detectada. Por essa mesma época alguns matemáticos se debruçavam no problema de cobrir o plano com a superposição de formas geométricas elementares, os chamados pavimentos; ficou célebre o pavimento criado por Roger Penrose que inclui a presença de figuras com simetria aparente quinária. A simetria não subsiste aos critérios cristalográficos exceto para translações num alcance finito, sendo por isso denominada quase-simetria. Esses estudos transcorriam durante a metade da década dos ’70, mas não eram conhecidos por Lattes.

De qualquer modo tratava-se de modelos sumamente teóricos aplicáveis unicamente a figuras planas. Mas eis que, em 1984, D. Schechtman e outros [8] produziram uma liga de alumínio-manganês revelando estrutura discreta no espectrômetro de raios-X, mas uma simetria icosaédrica também proibida. Essa simetria verificou-se não satisfazer plenamente aos critérios cristalográficos, como o pavimento de Penrose, isto é, também uma quase-simetria; nascia assim o ramo dos quase cristais em cristalografia, por isso se entendendo substâncias com um grau elevado de organização a ponto de dar espectros de raios-X discretos, mas apresentando eixos de simetria proibidos no sentido cristalográfico. Lattes deu assim um anúncio pioneiro dessas estruturas e tudo graças à sua imperturbável confiança na correção das observações da estudante que trabalhara sob sua direção.

 

Lattes foi pessoa alegre, comunicativa, calorosa na convivência, amante do diálogo, sobretudo a variedade provocativa que cultivou com maestria: gostava de quebrar a superfície formal do contato para que o diálogo pudesse transcorrer mais amistoso. Adorava festas, aquelas que reúnem pequeno grupo de amigos em ambiente doméstico, especialmente, ou aquelas mais expressivas da tradição brasileira como as festas juninas. Dono de memória invejável era capaz de recordar detalhes de situações vividas há muitos anos que passavam despercebidas para a maioria das pessoas. Sua habilidade em contar histórias a usava no diálogo individual e no auditório, dirigindo-se a muitas pessoas em tom íntimo como se estivesse falando a cada um individualmente. Suas aulas, seminários e conferências atraíram grandes audiências não porque as pessoas quisessem ouvir uma celebridade, mas porque seu discurso foi sempre pontilhado de comentários provocantes, críticas bem humoradas, junto com referências ao Velho Testamento e adágios da sabedoria popular, que davam um sabor único sobre o que quer que falasse, partículas elementares ou simplesmente agradecendo uma homenagem. Seu espírito irreverente e requintado senso crítico o fizeram um mestre na arte de colocar apelidos: tinha a habilidade dos cartunistas para identificar traços essenciais sobre os quais construí-los. Certa vez pediu-me para chamar o “lagartixa”; perguntei: “e quem é o lagartixa?”. Retrucou: “pergunta lá no almoxarifado, onde ficam os motoristas”, e deu-me as costas. Lá chegando vi três pessoas: não tive a menor dificuldade em identificar o “lagartixa”, dispensando qualquer pergunta.

Aos 23 anos alçado às elevadas esferas da hermética comunidade científica internacional, famoso e tendo à frente uma carreira científica auspiciosa, coberta de reverências, facilidades e oportunidades de realização, optou, entretanto, por retornar a seu país e usar o capital acumulado de prestígio e fama para enfrentar os problemas de uma sociedade subdesenvolvida. (Figura 10)


Figura 10. Cesar e Martha em sua casa em Campinas. Mulher inteligente, alegre, comunicativa, compartilhou com a mesma doçura e forca interior os momentos de glória e os adversos. Companheira de mais de meio século, talvez tenha sido a única pessoa que de fato o compreendeu integralmente.
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Os primeiros anos que se seguiram à criação do CBPF foram de muito trabalho e grande entusiasmo; a despeito de pequenas dificuldades tudo justificava a esperança no futuro. Entretanto, logo após o suicídio de Vargas, em agosto de 1954, o Brasil entrou num ciclo de crises político-econômicas que parece ainda não ter chegado ao fim. (Figura 11)


Figura 11. Cesar Lattes com Carlos Aguirre B., em La Paz. Aguirre estudou Engenharia nos EUA e veio fazer o doutoramento no Brasil. Ingressou na Pós-graduação no CBPF trabalhando junto à CBJ. Formado, voltou à Bolívia onde, além de integrar-se à pesquisas em Chacaltaya, exerceu numerosos cargos da hierarquia científica e universitária, chegando à presidência da Academia Boliviana de Ciências.
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A primeira grande decepção após seu retorno ao Brasil foi a crise que atingiu o CBPF em sequência ao gesto de Vargas. O CBPF ficou sem presidente e vice-presidente num intervalo de poucos meses após aquele evento, perdendo sua interface com a área política; ingressou em seguida num processo agitado de escolha de nova direção, que refletia muito da turbulência externa. A seguir mergulhou em problemas orçamentários aguçados pela forte inflação que a seguir se avolumou.

O CBPF foi um instituto adiante de seu tempo, antecipando em pelo menos vinte anos a reforma universitária que só viria nos anos 1970. Livre dos limites das instituições oficiais por sua condição de sociedade civil sem fins lucrativos, conseguiu criar um ambiente de trabalhos dentro do binômio ensino – pesquisa, livre da burocracia e das castrações da legislação oficial de extrema rigidez na constituição de quadros, na aquisição e alienação de bens inclusive para a pesquisa. Aquelas condições excepcionais eram auferidas em troca de certa fragilidade para sua sustentação. Foi, portanto, um golpe violento para Lattes ver o CBPF imobilizado dentro de uma luta política que colocou essa fragilidade em primeiro plano. Sua saúde sofreu também grande abalo nessa ocasião. No retorno de Chicago, para onde fora em busca de tratamento e de maior tranquilidade para o trabalho científico, ainda tentou reviver o projeto inicial, mas a crise política externa ganhara um aliado perverso, a inflação, que corroía rapidamente as magras dotações conseguidas na Câmara dos Deputados como emendas ao orçamento do MEC. O CBPF só recobrou o fôlego após a criação do FUNTEC, no BNDE, já no fim dos anos ’60, encerrando essa longa crise que não foi, entretanto, a última.

Seu retorno à USP em começos dos 1960 foi uma espécie de volta ao ponto de partida. O excelente Departamento de Física tinha os méritos e carências de todo o sistema universitário: a rigidez burocrática, o engessamento de orçamentos e quadros de pessoal, tornavam, para dizer o menos, toda a organização inadequada para enfrentar problemas ligados ao crescimento da população estudantil necessário para o desenvolvimento. Essas carências também só tiveram fim com a reforma universitária, já nos anos 1970. Em consequência das posturas burocráticas vigentes Lattes foi também pressionado a fazer um concurso para o provimento da cátedra de Física Superior que ocupava interinamente. A cátedra, ainda que não fosse a causa das deficiências do sistema universitário, foi o emblema que as simbolizou, dentro do movimento de reforma universitária que nasceu nos anos 1930, cresceu durante o governo João Goulart e continuou reivindicante durante os governos militares. Para Lattes foi um sofrimento atroz suspender os trabalhos da colaboração Brasil-Japão, na fase de implementação em que se encontravam, para redigir uma tese de concurso o que, afinal, fez a contragosto. A tese, entretanto permaneceu inédita já que não foi defendida; antes de sua apresentação formal à banca examinadora Lattes se transferiu para a nascente Unicamp.

 

“Optou por retornar a seu país e usar o capital acumulado de prestígio e fama para enfrentar os problemas de uma sociedade subdesenvolvida.”

 

Na Unicamp também não ficou livre de comoções. Marcello Damy e Zeferino Vaz se desentenderam em torno de questão envolvendo o futuro programático do Instituto de Física, o que levou Damy a se afastar do cargo de Coordenador do Instituto. Felizmente na ocasião Lattes já havia se cercado de medidas cautelares de proteção dentro da organização além do que a CBJ já estava em franca fase de produção e a descoberta dos estados discretos da matéria lhe renovara a notoriedade pela repercussão que teve, tornando-o menos dependente daquela defecção. Sentiu-a, porém, em termos afetivos e manteve sempre certo distanciamento das iniciativas tomadas dentro da nova programação.

As colisões com a realidade brasileira nunca foram assimiladas por Lattes: antes lhe custaram choques periódicos, vendo seus melhores propósitos pulverizados por questionamentos muitas vezes hostis. Não sendo pessoa de se deixar seduzir pelas delícias do poder e da fama, esses conflitos lhe valeram mergulhar num processo quase continuado de reconstrução de seus objetivos e de suas práticas. Espantou do coração a amargura criando uma barreira na estrutura afetiva, tornando-a menos transparente; também desenvolveu reações mais ou menos extravagantes, até mesmo escandalosas, com as quais pretendeu manter a adversidade à distância. Amizade irrestrita manteve com o perdigueiro “Gaúcho”. Companheiro inseparável, Gaúcho o acompanhava em todas as andanças: ao laboratório, às aulas, ao banco, aos seminários, à biblioteca, nas viagens a serviço ou lazer. Imagino que, se levado a qualquer emergência hospitalar, teria exigido a presença de Gaúcho no apartamento ou na sala de cirurgia. Algumas vezes usou Gaúcho para exercer sua crítica sarcástica: na intimidade o chamava de “seu Arthur” referência a um dos líderes da revolução de ’64 que se fez Presidente; outra vez compareceu com Gaúcho ao balcão da biblioteca do CBPF solicitando sua inscrição como leitor, sarcasmo dirigido a um membro da casa que se teria referido a ele com palavras que considerou depreciativas.

Jamais cobiçou posições elevadas na estrutura política de organização da ciência no Brasil, o que teria facilmente conseguido; nunca frequentou as antessalas dos gabinetes de autoridades, mantendo intocada sua independência para exercer toda crítica com autonomia e altivez – o que sempre conseguiu. Seu castelo foi sempre seu trabalho, suas muralhas as paredes do laboratório e de seu gabinete.

Nos tempos de Bristol formou uma convicção que o acompanhou em toda a vida profissional: a de que não é necessário possuir instrumentos de última geração para fazer boa ciência. A descoberta do méson pi foi o primeiro exemplo. No pós-guerra imediato em Bristol os recursos para instrumentação eram muito escassos, exigindo de todos um grande esforço para a utilização de velhos instrumentos da década de ’30, com longos anos de uso. Os movimentos das platinas dos microscópios com incômodas folgas, algum fungo desenvolvido na cola das lentes, etc., não foram obstáculos para as medidas de alcance e contagem de grãos que vieram a ser usadas no trabalho. Segundo Lattes qualquer fenômeno físico se revela igualmente nos instrumentos de geração pretérita: apenas sua detecção envolve um pouco mais de trabalho. Essa convicção se consolidou também através dos anos em que participou da comunidade dos físicos da radiação cósmica. Os físicos da radiação cósmica constituem uma comunidade muito especial: nunca aceitaram criar um periódico científico para veicular seus trabalhos e ideias, e cultuaram a tradição de fabricar seus próprios instrumentos: nunca incluíram novos itens de equipamento em nome da simples “modernização”. Num determinado momento substituíram os velhos Geiger, feitos em casa, por contadores adquiridos em empresas industriais, ou introduziram computadores em seus equipamentos de controle para substituir dispositivos já em uso, mas nada foi feito com o propósito da modernização como um fim. Usualmente a finalidade foi economizar o tempo gasto na construção desses itens para usá-lo na aquisição de dados. A força desse tipo de estratégia, tida por muitos como conservadora, se revela pela copiosa contribuição que deram tanto na instrumentação da física como na descoberta de grande número de partículas elementares. (Figura 12)


Figura 12. Lattes e seu inseparável amigo, o perdigueiro Gaúcho. A foto, como se vê, foi tirada na entrada do Pavilhão Mario de Almeida do CBPF, no Rio. Gaúcho o acompanhou desde Campinas com direito a uma parada para esticar as pernas num sítio que Lattes possuía em Itatiaia.
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Lattes seguiu essa convicção fervorosamente ao longo de sua vida científica. Os microscópios em seus laboratórios e de seus associados sempre exibiram adaptações caseiras: transferidores de plástico adaptados solidariamente a um dos tubos oculares enquanto a lente ocular gira livremente arrastando um ponteiro que percorre a escala, para medidas angulares; os leitores das marcas deixadas em filmes de raios-X da CBJ são caixas de madeira no interior das quais cinco lâmpadas fluorescentes caseiras iluminam uma placa de vidro translúcido que serve de tampa e sobre a qual se apoia o filme para a busca a olho nu das marcas deixadas pelas cascatas eletromagnéticas; uma fonte de alimentação variável, regulada eletronicamente, para manter constante a corrente na lâmpada de iluminação do microscópio é usada em medidas de densidade óptica, conjugada a uma fotomultiplicadora no plano ocular, substituindo a observação visual, tudo feito em casa. Essa fé está cada vez mais difícil de ser professada porque as grandes empresas industriais mantêm grupos de pesquisas de excelente nível com condições excepcionais de trabalho e, através de copiosa publicação em periódicos científicos que também subvencionam, conferências, viagens, etc. que auspiciam, acabam definindo os temas de interesse científico e os instrumentos creditados para explorá-los. Dificilmente alguém conseguirá penetrar nesses domínios com instrumentos de fabricação caseira. Além disso, a conjuntura de “fim da história”, que vivemos segundo muitos, decreta que o conhecimento fundamental já atingiu sua elongação máxima e que a ciência deve ser mobilizada na direção da erradicação dos problemas devidos ao binômio acaso-necessidade que ainda afligem ou ameaçam os povos; fica assim em aberto apenas a questão da seleção de temas do cotidiano para investimento. Também nesse contexto a grande empresa industrial continua dando a tônica do desenvolvimento científico.

Mas Lattes sobreviveu dentro daquela fé e deixou essa lição para todos os seus alunos e associados. Para ele a modernização deve existir como consequência do desenvolvimento e não como condição para ele. O desenvolvimento – como o subdesenvolvimento – está na cabeça das pessoas.

Lattes, entretanto, foi vítima dessa fé. Propôs-se um experimento para testar o princípio de relatividade de Einstein usando um instrumento todo adaptado: um goniômetro tomado emprestado ao Departamento de Ensino na Unicamp, uma rede de difração iluminada por uma lâmpada também do laboratório de ensino e uma ocular filar micrométrica, capaz de medir com precisão as oscilações de posição da imagem da linha refletida pela rede. O experimento envolvia observações da posição da linha refletida a cada hora, inclusive à noite, e por esse motivo demandou um número grande de observadores, entre dez e vinte, que se alternavam nas medidas. Por uma dessas inexplicáveis coincidências as medidas, entre as primeiras vinte e quatro e quarenta e oito horas, deram resultados excepcionalmente concordantes com as previsões de Lattes, o que parecia excluir qualquer simples acidente de observação dado o número grande de observadores independentes, desconhecendo, quase todos, o resultado final. Esses resultados preliminares logo se espalharam pelos corredores do Instituto, rapidamente passaram à mídia, adquirindo dinâmica própria, sem dar tempo à sua confirmação, no próprio instrumento utilizado, nem à sua repetição em outras condições e locais. Arranhada, a ortodoxia reagiu energicamente. Recordo a reação das pessoas entre a perplexidade e a condenação da malograda tentativa como impensada extravagância de Lattes. Alguma reflexão sobre essa posição merece ser feita.

A invariância da velocidade da luz medida em referenciais inerciais não importa quão rapidamente se movimentem foi postulada por Albert Einstein, constituindo sua formulação do princípio de relatividade. Foi a síntese de uma série de regras sobre a medição de tempos e de posições nesses referenciais, formuladas por Einstein dentro de um experimento idealizado (Gedankenexperiment) onde o método de medição de comprimentos e tempos foi judiciosamente examinado. É sem dúvida uma das peças mais brilhantes de seu fino intelecto. Resulta dessas regras que o intervalo de tempo entre eventos, medido no mesmo ponto de um dado referencial por um relógio fixo, será visto amplificado no relógio de um observador em outro referencial inercial movendo-se com relação ao primeiro. É assim porque o primeiro observador precisa informar ao segundo sobre a sequência dos eventos observados na formação do intervalo de tempo, o que é feito acoplando o início e o fim do intervalo a um gerador de impulsos luminosos que produz um clarão correspondendo ao início e outro no fim do intervalo. Esses sinais caminharão com a velocidade típica da luz até atingirem o segundo observador cujo relógio então registrará os instantes de chegada. Está implícito que a velocidade de propagação dos impulsos de aviso, a velocidade da luz, é sempre maior que a velocidade relativa entre os dois referenciais, qualquer que seja ela, pois de outro modo os avisos jamais alcançariam seu destino. Portanto, além de constante para todos os sistemas inerciais, a velocidade da luz não pode ser superada por qualquer outra. O intervalo de tempo dt’ registrado pelo observador no sistema que se move com velocidade v em relação ao sistema onde está a fonte dos eventos, cujo relógio acusa entre eles o intervalo dt, é dado por ddt’ = dt.(1-v2 / c2)-1/2. Esta amplificação, acusada pelo relógio do observador móvel, do valor do intervalo de tempo medido no relógio solidário com a sequência de eventos é fruto do tempo de propagação do sinal entre os dois observadores, não guardando qualquer relação com o intervalo físico entre os acontecimentos originais, a não ser sua proporcionalidade a ele.

Os físicos são familiares desde o século XIX com deformações reputadas à propagação da luz em seus instrumentos: aberrações de curvatura, cromáticas, erros de paralaxe, etc. O físico na recepção dos sinais não tem acesso direto aos eventos ocorrendo no referencial emissor de modo que lhe cabe unicamente acreditar ou não que o sinal recebido represente fielmente os fatos que lhes são comunicados. Em outras palavras, acreditar ou não que os intervalos de tempos de chegada registrados em seu relógio são reais ou ilusórios. No segundo caso o tempo conectando as experiências dos dois observadores é apenas matemático e, ainda que essa relação suponha para a luz uma velocidade independente do sistema de referência, questioná-lo violentaria não mais que aspectos matemáticos. Esta parece ser a origem da motivação daqueles que buscam encontrar experimentalmente desvios na constância da velocidade da luz ou valores superiores ao da velocidade de propagação no vácuo. Também daqueles que buscam soluções ondulatórias das equações de Maxwell com velocidades de propagação maiores que a da luz no vácuo.

Esse tipo de questionamento é aqui e ali interpretado como heresia, heresia contra Einstein ou contra o comitê diretor do Sistema Internacional de Unidades que elegeu a velocidade da luz no vácuo como constante da física. Entretanto os físicos que se dão a esse tipo de questionamento sobre a velocidade da luz nem por isso manifestam qualquer traço de leviandade nem podem ser acusados de visionários delirantes: todos os fenômenos físicos observados que requerem a contração dos comprimentos ou a dilatação dos tempos da relatividade restrita, afinal, continuam igualmente válidos quer se tome esses efeitos como genuínos ou como distorções originadas na propagação da informação.

O que se nota aqui é o confronto entre duas visões conflitantes; de um lado a visão idealista de Einstein para quem o intelecto, com ajuda da matemática, pode revelar todas as relações e propriedades da natureza, a experiência apenas decidindo de sua utilidade e, do outro, a convicção materialista segundo a qual a prática é o único critério da verdade e portanto a observação e experimentação representam a palavra final.

Durante sua vida Lattes observou uma fiel adesão à formulação materialista da ciência e do papel que dentro dela têm a observação e a experiência. No entanto, em seus últimos anos, mesmo antes do falecimento de sua esposa, Lattes revelou-se mais e mais adepto de concepções espiritualistas. Quando tínhamos ocasião de conversar sobre questões ligadas à existência da vida além da morte, lembro que seu semblante se modificava pela gratificação que o tema lhe trazia e ele mostrava conhecimentos e simpatias que não revelara antes. Movimento semelhante foi manifestado por Mario Schenberg, em que pese seu sólido perfil de materialista histórico. Trata-se de mudança que se processa lentamente nas pessoas, motivadas não se sabe bem porque, possivelmente fruto de reflexões mais profundas, não deixando aos amigos suficiente espaço a não ser para sua constatação.

Lattes teve em Martha Siqueira Neto Lattes uma companheira excepcional. Não só praticou a interface com o cotidiano, cobrindo a maioria dos atos necessários à vida, o que, para quem foi mãe de quatro filhas, já por si representa enorme energia e disposição, mas garantiu-lhe um ambiente de tranquilidade, repleto de atenção, terna amizade e de grande força e solidariedade nos momentos difíceis. Falecida há cerca de três anos, durante seu funeral aproximei-me de Lattes para uma palavra de conforto; ouvi dele, no tom peremptório, final, que sempre usou nas ocasiões mais difíceis: “minha vida acabou”.

O vaticínio se cumpriu. Sua saúde, antes aparentemente inabalável aparte as dificuldades neurológicas, passou a manifestar uma sequência de fragilidades novas, reaparecendo sempre com maior frequência e periculosidade até que faleceu dia 8 de março por insuficiência cardíaca.

A Ciência, em particular a Física brasileira, reverenciam sua memória e vestem luto. O Brasil contraiu com ele dívida irresgatável.

 

Capa. Cesar Lattes foi um dos maiores cientistas brasileiros
(Reprodução)
NOTA
Este artigo foi publicado originalmente na Revista Brasileira de Ensino da Física em 2005.
Marques A. Reminiscências de Cesar Lattes. Rev Bras Ensino Fís [Internet]. 2005Jul;27(3):467–82. Available from: https://doi.org/10.1590/S1806-11172005000300025

REFERÊNCIAS
[1] A.Marques Ed., Cesar Lattes 70 Anos: A Nova Física Brasileira, CBPF 1994; Ana Maria Ribeiro de Andrade, Físicos, Mésons e Política, Ed. Hucitec, 1998; A.Marques, A Descoberta do Méson-pi, CBPF1999; . F. Caruso, A. Marques e A Troper, Eds, Cesar Lattes, a descoberta do méson-pi e outras histórias, CBPF1999
[2] J. Costa Ribeiro, A Física no Brasil em As Ciências no Brasil, editor Fernando de Azevedo, Melhoramentos, 1954
[3] Observações sobre a componente eletromagnética de alta energia (2·1011 < E/eV < 1014) da radiação cósmica, através do estudo de cascatas eletromagnéticas detetadas em câmaras de emulsão fotográfica e chumbo expostas no Laboratório de Física Cósmica de Chacaltaya (5200 m de altitude). Tese apresentada à Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de S. Paulo para concurso à Cátedra de Física Superior, S. Paulo 1966. Antes da realização do concurso Lattes transferiu-se para a UNICAMP, mantendo inédita essa Tese. O CBPF acaba de publicá-la como parte das comemorações dos oitenta anos de Cesar Lattes.
[4] N. Amato, A Colaboração Brasil-Japão em Cesar Lattes 70 Anos: A Nova Física Brasileira, A. Marques ed., CBPF 1994.
[5] Um relato minucioso do histórico de criação, existência e colapso do projeto original da Universidade Nacional de Brasília se encontra em R.A. Salmeron, A Universidade Interrompida: Brasília 1964-1965, Editora da UNB, Brasília 1999. Salmeron foi o Diretor do Instituto Central de Ciências, peça fundamental na arquitetura do projeto da UNB.
[6] G. Bigazzi e J.C. Hadler Neto, Cesar Lattes a Pioneer in Fission Track Dating, em Cesar Lattes 70 Anos: A Nova Física Brasileira, Ed. A. Marques, CBPF 1994.
[7] G. Biggazi, E.M. Ciocchetti, N.J.C. Hadler, C.M.G. Lattes e D.A.B. Serra, Osservazioni sull’anisotropia nella registrazione di fissioni di Urânio in muscovite, Soc. It. Miner. Petr.- Rendiconti XXXII, 119-127 (1976).
[8] D. Schechtman, I. Blech, D. Gratias e J.W. Cahn, Phys. Rev. Lett. 53, 1951 (1984).
Alfredo Marques foi pesquisador emérito do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) de Oliveira. Foi um dos idealizadores do Departamento de Raios Cósmicos e Cronologia, do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp. Faleceu em 2021.

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