Sociologia e história

Análises e interpretações historiográficas no contexto das teorias sociais e políticas

Resumo

O conhecimento da história é tarefa de várias ciências sociais, como sociologia, economia, política, antropologia, psicologia e historiografia, que lidam com questões políticas, econômicas, sociais e culturais. As interpretações históricas variam, reavaliando ou reafirmando explicações sobre modos e tempos históricos. Alguns pesquisadores ideologizam formas de poder e cidadania, enquanto outros constroem mitos. A história aparece de diversas formas, seja como realidade ou invenção. O autor pretende examinar teorias sobre a história, a relação entre ciência e sociedade no capitalismo, e a historicidade da sociologia, apontando problemas para discussão.
“O que aqui nos preocupa não é o tempo calculável. É antes a ab-rogação e a dissolução do tempo com o alternar-se da tradição e da profecia, que empresta à frase ‘era uma vez’ o seu duplo sentido de passado e futuro e com isso a sua carga de presente potencial”.
Thomas Mann

 

Muitas histórias

O conhecimento da história tem sido uma tarefa todas as Ciências sociais além da própria historiografia. A sociologia, a economia política, a Ciência política, a antropologia, a psicologia é a historiografia sempre trabalham com questões políticas, econômicas, sociais, culturais, religiosas, militares, demográficas e outras que correspondem a ações, relações, processos estruturas tomados em algum nível de historicidade. Mesmo as correntes de pensamento orientadas no sentido de formalizar as interpretações, em termos de indução quantitativa ou construção de modelos vírgula mesmo nesses casos a pesquisa sempre produz alguma explicação nova, reavalia o reafirma explicações vigentes, sobre os modos e os tempos da história. Outros, quando analisam a “sociedade aberta” ou o “pluralismo democrático”, por exemplo, parecem retificar e ideologizar formas de poder e cidadania. Também há aqueles que formalizam e fetichizam as categorias dialéticas de pensamento, perdendo de vista o fluxo real das ações, relações, processos, estruturas que expressam os movimentos é as modificações das gentes, grupos, classes e nações. Uns e outros constroem e reconstroem mitos. Aliás, construir mitos tem sido uma consequência frequente (ou tarefa deliberada?) de boa parte de da produção intelectual cientistas sociais. Em todos os casos, no entanto, a história aparece de alguma forma, como história real ou invenção, drama ou epopeia, elegia ou profecia.

A multiplicidade de Ciências e teorias relativas ao campo do social, em sentido lato, tem dado origem a distintas interpretações sobre como se produz a história; ou em que condições as formações sociais se constituem, prosperam, mudam, entram em crise, desdobram-se, etc. É claro que as interpretações são positivistas e dialética, idealistas e materialistas, sincrônicas e diacrônicas, abstrata e concreta; atribuem relevância à atuação de líderes, elites, classes, religiões, igrejas, partidos e governos; buscam as relações e os desencontros entre e condições reais, ideologias e práticas, elite e povo, partidos e classes, Estado e sociedade; pesquisa os papéis desempenhados pelo intelectual, a Ciência é a filosofia; é assim por diante. No conjunto vírgula às Ciências e teorias relativas às ações, relações, processos, estruturas sociais acabam por produzir muitas histórias; ou histórias e estórias. São distintas e frequentemente heterogêneas as histórias do capitalismo que aparecem nas análises de Ricardo, Marx, Tocqueville, Durkheim, Weber, Sombart. Freud, Keynes, Baran, Dobb, Parsons, Galbraith, Hobsbawm e outros.

Nestas condições, quero examinar de forma breve, principalmente três aspectos, essa problemática. Inicialmente, apresentarei as linhas gerais de algumas teorias sobre a história. Em seguida, focalizarei alguns aspectos das relações recíproca entre Ciência e sociedade, na época do capitalismo. Ao fim, quero abordar a historicidade do objeto da sociologia. Não se trata de acrescentar mais uma, as muitas histórias conhecidas. Trata-se, apenas, de apontar alguns problemas para discussão. Inclusive indicar a historicidade da própria reflexão sociológica sobre questões de história. E sugerir que a história e estória se mesclam em vários tempos.

 

Teorias da História

Não só na sociologia, mas no conjunto das Ciências sociais encontram-se as mais diversas explicações sobre como e por que se dá a mudança, A evolução, o progresso, o desenvolvimento, a evolução, a crise, a recessão, a decadência, o golpe, a reforma, a revolução. Para explicar as transformações sociais, em sentido amplo, o sociólogo, antropólogo, economista, politicólogo, psicólogo, historiador e outros têm buscado causas, condições, tendências, fatores, indicadores, variáveis é assim por diante. Sem a pretensão de fazer aqui um apanhado de todas as explicações, mas apenas com o intuito de fazer um breve sumário, vejamos algumas das explicações que aparecem com frequência nos escritos dos cientistas sociais. Ao analisar as condições de formação, funcionamento, reprodução, generalização, mudança e crise do capitalismo, os cientistas sociais têm proposto explicações como as que resumirei aqui. É claro que as várias explicações nem sempre se excluem. Em certos casos, umas implicam nas outras, ou as englobam. A ordem de apresentação das várias explicações não tem qualquer intuito classificatório ou interpretativo.

 

“A Ciência frequentemente é uma técnica de poder e/ou uma força produtiva.”

 

Em primeiro lugar, uma interpretação que se generalizou bastante, desde os começos da revolução industrial, estabelece que o progresso econômico é o resultado da criatividade empresarial. Isto é, toda mudança, inovação ou modernização econômica substantiva tende a ser o resultado da capacidade de criação e liderança de empresários imaginosos, inventivos ou mesmo lúcidos, capazes de articular e dinamizar os fatores de produção pré-existentes e novos. Essa interpretação tem os seus principais enunciados nos escritos de economistas clássicos, seus discípulos e continuadores no século XIX e neste. Recebeu contribuições mais ou menos importantes de Max Weber, Werner Sombart, Joseph A. Schumpeter, John Maynard Keynes e alguns outros. É claro que esses e outros autores, inclusive não economistas, incluem em suas análises elementos relativos ao sistema político, a ideologia, a ação estatal e outros. Mas conferem um papel essencial a ação dos empresários, ou da elite empresarial. Os valores relacionados ao sef-made man, ao tycoon, ao Capitão da indústria, ao pioneiro, a identidade entre propriedade privada, livre empresa e sociedade aberta, entre outros, ligam-se a tese de que a criatividade empresarial é a base do progresso econômico capitalista.

A segunda interpretação, conhecida como teoria das elites, está relacionada com a anterior. Ela recebeu contribuições de Vilfredo Pareto e Caetano Mosca. Além dos autores já mencionados no parágrafo anterior. E tem sido retomada, em diferentes linguagens, por outros cientistas sociais e escritores, como James Burham, Samuel P. Huntington, Clark Kerr, David E. Apter, John Kenneth Galbraith e outros. É uma corrente de pensamento que propõe o funcionamento da sociedade e a mudança social em termos de elites empresariais, gerenciais, militares, intelectuais e outras. Desde o término da Segunda Guerra Mundial, essa teoria tem sido a base de programas organizados pelo imperialismo norte-americano, no preparo de quadros intelectuais, tecnocráticos, militares, gerenciais, empresariais e outros, para soluções golpistas em países dependentes e coloniais.

Em terceiro lugar, a interpretação que atribui importância especial a divisão social do trabalho. Thomas e a divisão social do trabalho como o processo social, de âmbito estrutural, que comanda o funcionamento, as combinações e as transformações das relações sociais, grupos e instituições, em níveis econômico, político e outros. Adam Smith e Émile Durkheim são autores importantes nessa corrente. Boa parte do pensamento liberal apoia se nessa ideia. A divisão Internacional do trabalho foi apresentada — durante o século XIX até 1930 — como a base da prosperidade econômica e social das pessoas, grupos sociais e nações. As teorias sobre a democracia liberal, o pluralismo democrático e a cidadania das gentes apoia se implicitamente na ideia de que a divisão social do trabalho, em sentido amplo, é o processo estrutural que fundamenta e dinamiza a melhor expressão e articulação das pessoas e grupos sociais atividades é instituições, setores produtivos e países.

 


Figura 1. O sociólogo Octávio Ianni
(Foto: Acervo)

 

A quarta interpretação considera que o fundamento último da mudança, progresso ou desenvolvimento econômico e social é a tecnologia, o progresso técnico comandaria as possibilidades de articulação e dinamização dos fatores produtivos (principalmente capital e força de trabalho). As possibilidades de poupança e investimento, bem como desenvolvimento e diferenciação do sistema econômico e social, estariam na dependência das inovações e aplicações da tecnologia; inovações essas originadas das Ciências, da natureza e da sociedade. Essa interpretação tem várias formulações. Todas, no entanto, apoiam se na ideia de que Ciência, tecnologia e desenvolvimento, ou pesquise desenvolvimento, em geral, relacionam-se positivamente. Nesse espírito, esta foi a definição de desenvolvimento dada em 1950 pela National Science Foundation dos Estados Unidos:

 

“Development is the systematic use of scientific knowledge directed toward the production of useful materials, devices, systems, methods or processes”[1]

 

Em graus variáveis, os adeptos desta concepção consideram que também esferas não econômicas da sociedade são influenciadas, dinamizadas ou modificadas pela expansão dos usos de Ciência e tecnologia. Vários autores deram contribuições a essa interpretação, ou apoiam se nela: Karl Mannheim, Geroge A. Lundberg, Joan Robinson, Raul Prebish, Celso Furtado e outros. Mannheim Trabalha bastante com a noção de técnica social, para explicar a progressiva “racionalização” das relações e organizações sociais em geral, e principalmente as econômicas, militares, políticas, além das relativas à indústria cultural. A técnica social seria o núcleo, tanto material como organizatório, dos processos de controle, mudança ou planejamento econômico, político e social.

 

“These practices and agencies which have as their ultimate aim the molding of human behavior and of social relationship I shall describe in their entirety as social techniques. Without them and the mechanical inventions, which accompany them the sweeping changes of our age would never have been possible”.[2]

“By ‘social techniques’ I understand the sum of those methods, which aim at influencing human behavior and which, when in the hands of the Government, act as an especially powerful means of social control”.[3]

 

A quinta interpretação confere papel especial ao Estado depois da crise da concepção liberal de poder político-econômico e de história, generalizou se cada vez mais a interpretação que vê na ação estatal a base da organização e mudança das relações e organizações econômicas e sociais. É claro que essa ideia já está presente implícita ou explícita no pensamento científico e filosófico dos séculos XVIII e XIX. Ela aparece em escritos de Hegel, Marx, Engels e Lenin, além de Keynes, Myrdal, Baran e outros. Depois da criação de regimes socialistas em vários países, por um lado, e da crise econômica mundial iniciada em outubro de 1929, por outro, os governos dos países capitalistas — dominantes e dependentes — passaram a intervir de forma cada vez mais ampla e Funda nos assuntos econômicos. Desde a década dos anos 30 o Estado capitalista se tornou o principal centro de decisões político econômicas. Sob o capitalismo monopolista, o Estado e o planejamento econômico estatal passam a compor um sistema político-econômico de poder fundamental no mundo capitalista posterior a Segunda Guerra Mundial.

A sexta e última interpretação busca as razões dos movimentos e transformações sociais, político, econômicas e culturais, nas relações e contradições de classes. De acordo com essa interpretação, as forças produtivas, a atuação estatal e outros aspectos político econômicos, sociais e culturais são articulados e desarticulados em conformidade com os movimentos e desenvolvimentos das relações e contradições das classes sociais: burguesia, classe média, proletariado e suas subdivisões estruturais e de ocasião. Dentre os autores que se situam nessa orientação, ou contribuíram para o seu desenvolvimento, destacam se Marx, Engels, Lenin, Bukharin, Trotsky, Lukacs, Gramsci e Mao Tsé-Tung, além de José Carlos Mariátegui, Maurice Dobb, Paul A. Baran, Paul M. Sweezy, Franz Fanon e alguns outros. Essa interpretação se funda na análise do processo de trabalho produtivo, processo esse que produz a mercadoria, a mais-valia de que se apropria o burguês e a alienação econômica e política do trabalhador. O principal conteúdo e resultado desse processo produtivo, ou dessas relações de produção, é o antagonismo entre o operário e o burguês. O golpe de estado, a greve e a revolução produzem se nesse contexto. Numa formulação breve, essa interpretação engloba relações, processos e estruturas básicos e intermediários da sociedade.

 

“A sociedade e a Ciência estão sempre a influenciarem-se reciprocamente.”

 

Cada uma dessas interpretações implica numa forma peculiar de compreender as relações entre biografia e história, conjuntura e estrutura, sincronia e diacronia, ou entre as ações, relações, os processos e as estruturas sociais, em seus perfis e movimentos. Outras interpretações — que poderiam ser lembradas — situam-se no mesmo contexto problemático. Em todos os casos, estamos diante de distintas interpretações sobre como e por que se dá a mudança, a evolução, o progresso, a modernização, o desenvolvimento, a reforma, a crise, o golpe de Estado, a revolução. São interpretações sobre as condições e possibilidades de produção da história, em forma cômica ou trágica, dramática ou épica.

 

Ciência, sociedade e história

Para interpretar as condições de produção da história ou como se dá a modificação das ações, relações, processos e estruturas políticas econômicas, precisamos examinar as práticas coletivas, das pessoas, grupos e classes sociais a análise dos governos, eleições, golpes, revoluções, greves, movimentos, fábricas, fazendas, partidos sindicatos, igrejas,   seitas, forças produtivas, etc., no quadro das relações sociais, permite compreender como se desenvolve a duração, no conjunto e em cada esfera da vida social. Essa tem sido a problemática de todas as Ciências sociais, não apenas da historiografia.

Dentre os elementos que as Ciências sociais têm levado em conta, para explicar as condições de produção da história, está o relacionamento recíproco entre Ciência e sociedade. Independentemente dos problemas relativos ao ethos da Ciência, da lógica interna de cada Ciência e das suas controvérsias teóricas, é inegável que toda a Ciência revela “segundas naturezas”, sem as quais não podem ser compreendidas. Dentre as segundas naturezas da Ciência — tanto da Ciência da natureza como da sociedade — estão duas: a Ciência frequentemente é uma técnica de poder e/ou uma força produtiva. Digo segundo as naturezas porque essas características aparecem nas condições e direções, nos conteúdos e fins da produção científica. Esses são problemas centrais da sociologia das Ciências, e da própria sociologia.

Quando examinamos a relação entre Ciência e sociedade, em perspectiva histórica ampla, tornam-se evidentes as influências recíprocas de ambas. A sociedade e a Ciência estão sempre a influenciarem se reciprocamente. Tanto a Ciências naturais como a sociais, cada qual segundo condições peculiares, todas relacionam-se com a sociedade, de forma ampla, permanente e recíproca. É claro que a Ciência, em geral, é transformada em inovações e aplicações tecnológicas, máquinas, ferramentas, patentes, técnicas de controle, organização, a administração, etc., para efetivar se na produção agrária industrial bem como na organização da empresa, dos negócios, do governo das coisas e gentes. A produtividade da força de trabalho na fábrica, por exemplo, é o resultado Combinado de conhecimentos produzidos pelas Ciências naturais e sociais. Na sociedade capitalista, as técnicas de organização e mando — na fábrica como em outras esferas da sociedade — induzem as pessoas, grupos e classes sociais a organizar as suas atividades e modos de pensar em conformidade com as exigências das relações e estruturas de dominação política e apropriação econômica. Está em jogo a reprodução ampliada do capital. Os meios de comunicação de massa, ou a indústria cultural, da mesma forma que a sociologia industrial, articulam se, na prática, ideologia das pessoas, grupos e classes sociais, induzindo-os a aderir, aceitar ou submeter-se às exigências da reprodução do capital.


Figura 2. Capa da revista Ciência & Cultura, 10a. edição de 1975
(Foto: Acervo)

 

Em forma breve, podemos dizer, as relações recíprocas entre Ciência e sociedade, vistas na perspectiva do andamento histórico, apresentam os seguintes aspectos óbvios alguns discutíveis outros.

Em primeiro lugar, as Ciências em geral, tanto os naturais como a sociais — consideradas forma de saber e técnicas, como práticas e ideologias — exerce influência sobre os modos de funcionamento, reprodução, diferenciação, mudança, etc., das relações, processos e estruturas sociais. O que é ampla e tradicionalmente reconhecido no campo das Ciências naturais também passou a ser aceito nas Ciências sociais. A ideia de que a Ciência deve ser útil e influenciar a sociedade — ou as relações dos homens entre si, com a natureza e o Sobrenatural — faz parte da ideologia de cientistas e governos; difundiu-se pelos partidos, fundamentos programas de ensino e alimenta uma parte da indústria cultural. Nas várias disciplinas, muitos cientistas estão explicitamente comprometidos com essa ideia. Nesse caso, a Ciência é concebida diretamente como técnica social, para controle mudança de relações sociais — isto é político econômicas — segundo os desígnios de governantes ou dos que dispõem de poder político-econômico para isso. Como se vê, uma breve indicação sobre as influências da Ciência sobre a sociedade coloca também a reciprocidade dessas relações, bem como os conteúdos e implicações políticos da produção científica.

Em segundo lugar, as relações, processos e estruturas sociais, em sentido amplo, ou as exigências da sociedade, influenciam os desenvolvimentos da Ciência e tecnologia. As exigências da produção, na indústria e agricultura, na paz e guerra, além dos desenvolvimentos das lutas de classes, tem provocado a realização de pesquisas e a produção de conhecimentos com fins sociais diretos específicos. Outras vezes essa interdependência é menos visível; é intermediada por relações e interesses, valores e instituições, desencontros e contradições podem-se discutir os meios e modos pelos quais a sociedade influencia a Ciência e a tecnologia, naturais sociais, mas é inegável que algumas revoluções científicas e tecnológicas ocorrem de par em par com revoluções políticas econômicas.

 

“Most human activities have their internal logic, which determines at least part of their movement (…) Nevertheless even the most passionate believes in the unsullied purity of pure science is aware that scientific thought may at least be influenced by matters outside the specific field of a discipline, is only because scientists, even the most unworldly of mathematicians, live in a wider world.”[4]

 

Em terceiro lugar, nem sempre as relações entre Ciência e sociedade, em ambos os sentidos, são positivas. Às vezes são neutras; outras vezes são negativas. As exigências de grupos interesses particulares, mas que dominam o poder político-econômico, podem prejudicar o desenvolvimento científico. É isso que ocorre, por exemplo, quando a reforma universitária reduz ou anula a pesquisa básica, em benefício da pesquisa aplicada e da formação de técnicos e profissionais preparados para aplicar conhecimentos e técnicas produzidos nos países dominantes. Em certas ocasiões, a oficialização de certas correntes científicas pode afetar, prejudicaram o mesmo, bloquear totalmente a criatividade intelectual de cientistas, pesquisadores, professores e outros não solidários com as Correntes oficiais. Ocorre que a Ciência é, com frequência, um instrumento de poder político-econômico. Enquanto teoria e técnica, pratica e ideologia, a Ciência aparece como mediação nas relações e estruturas de dominação e apropriação.

 

“It is plain to see that science is a dynamic force of social change, though not always of changes foreseen and desired. From time to time, during the last century or so, even physical scientists have emerged from their laboratories to acknowledge, with pride and wonder, or to disown, with horror and shame, the social consequences of their work. The explosion over Hiroshima only verified what everyone knew. Science has social consequences.”[5]

 

Em quarto lugar, em todos os setores produtivos — indústria, a agricultura, mineração, comércio, bancos, etc., — a Ciência e tecnologia entram como força produtiva básica. Traduzem se em máquinas, ferramentas, esquemas, organizações, eficácia, produtividade, etc. Ocorre que elas são expressão da prática social, são produtos ingredientes das diversas formas pelas quais os homens trabalham as suas relações com a natureza e entre si. A relação entre Ciência, tecnologia e a acumulação de capital tem sido examinada pelos economistas desde a época da economia clássica. É claro que varia a ênfase que cada autor concede a uma e outra. Mas é sempre notável, e às vezes prioritário, o papel que alguns atribuem a Ciência e a tecnologia. Marx preocupou-se com o assunto em várias ocasiões. Em termos diversos, também Sombart, Kuznets e Robinson, entre outros autores, deram atenção especial aos inventos, a Ciência e a tecnologia. Kuznets assinalou também a importância da circulação Internacional de conhecimentos como condição ou fator de desenvolvimento econômico. Estava preocupado em acentuar que o capitalismo é um sistema de interdependência universal, entre nações, mercados e fatores produtivos. Sombart viu no capitalismo um sistema propício ao progresso científico e tecnológico, para efeito de acumulação do capital.

 

Marx: a la par que una explotación intensiva de la riqueza natural por el simple aumento de tensión de la fuerza de trabajo, la ciencia y la técnica constituyen una potencia de expansión del capital independiente del volumen contrato del capital en funciones.”[6]

“El desarrollo del capital fijo revela hasta que el punto el conocimiento o no LED social general se ha convertido en fuerza productiva inmediata y por lo tanto hasta qué punto las condiciones del proceso de la vida social misma han entrado dejo los controles del general intelecto y remodeladas conforme al mismo” [7]

 

“Robinson: the rate of technical progress and the rate of increase of the labor force (allowing for any changing working hours per family) govern the rate of growth of output of an economy that can be permanently maintained at a constant rate of profit. The potential growth ratio (increase per annum of output as a percentage of annual output) is approximately equal to the percentage rate of growth of employment plus the percentage rate of output per head.”[8]

 

Em quinto lugar, na formação social capitalista as classes sociais não se beneficiam igualmente da produção científica, em geral, nem da sua aplicação na produção material e cultural. As classes sociais — proletariado, classe média, burguesia, campesinato, etc. — beneficiam se diversamente da produção científica, variando inclusive conforme a época e o país. Nos países dominantes, a classe operária dispõe de recursos de saúde e previdência que não se encontram em países dependentes. O mesmo se pode dizer quanto ao acesso à escola e outros recursos culturais e materiais da sociedade. Mas é inegável que os benefícios da Ciência e tecnologia, em geral, orientam se muito mais no sentido de favorecer a acumulação do capital, a consolidação das relações e estruturas capitalistas, ou a generalização dessas relações e estruturas. Tanto a química (herbicidas) como a antropologia (informação cultural) foram usadas na guerra que os Estados Unidos alimentarão no sudoeste asiático. Na fábrica, para aperfeiçoar o ajustamento do operário à máquina e ao conjunto da situação de produção, os empresários empregam psicólogos e sociólogos especializados. Tanto no Vietnã como na fábrica, o conhecimento e a tecnologia científicos são aplicados à revelia das pessoas, famílias, grupos, classes sociais ou nação.

 

“Análise sociológica das relações recíprocas entre Ciências e sociedade, pois, suscita novos problemas: a interpretação sobre a produção da história.”

 

Em sexto e último lugar e de acordo com as indicações feitas nos parágrafos anteriores, a Ciência tem sido incorporada pela sociedade principalmente como força produtiva e técnica de poder. Frequentemente essas conotações da Ciência aparecem juntas. Como técnica, pratica e ideologia, o conhecimento científico muitas vezes aparece nas relações e estruturas de dominação política e apropriação econômica. Se aceitamos essa ideia, podemos pensar que os movimentos históricos de uma sociedade estão diretamente relacionados ao modo pelo qual ela produz, incorporará e desenvolve a Ciência e a tecnologia. Essa constatação pode ser exemplificada em vários modos. A revolução industrial foi contemporânea de uma revolução científica e filosófica. Desde a Renascença e a desagregação do feudalismo, a Ciência, a filosofia, as relações de produção e as estruturas políticas e econômicas modificaram se de forma mais ou menos contemporânea. Em outra época, no século XX, a revolução socialista a vida na Rússia, China, Cuba e Vietnã, para mencionar exemplos distintos, foi o produto das lutas de classes e da revolução científica e filosófica iniciada por Marx e Engels. Em outra ocasião, a partir da década dos anos 30, o pensamento de Keynes e seus seguidores tem sido um elemento importante na luta do capitalismo para controlar e superar as suas crises conjunturais e estruturais. Em todos esses casos, fica evidente que alguns desenvolvimentos e algumas obturações de cunho histórico tem sido iniciados ou bloqueados, reorientados ou acelerados, devido ao tipo de relacionamento que se estabelece entre a sociedade, enquanto grupos, classes, economia, política e Estado, e a Ciência enquanto o sabor, técnica, prática e ideologia.

Análise sociológica das relações recíprocas entre Ciências e sociedade, pois, suscita novos problemas a interpretação sobre a produção da história. Além dos já enunciados, óbvios e discutíveis, cabe lembrar outro. Essa análise de Ciência, história e sociedade sugere que a história que conhecemos é apenas as histórias que sucedeu; é uma das diversas versões que poderiam suceder. Houve comédias e tragédias, dramáticas e épicas, que não foram vividas; poderiam ter sido.

 

Sociologia e historicidade

A análise sociológica sempre se depara com o problema da historicidade do seu objeto. Independentemente da perspectiva teórica, a sociologia sempre se depara com questões relativas às tendências, condições de possibilidades, determinações, desenvolvimentos, mudanças, causas, variáveis intervenientes ou antecedentes e tendências dos fatos sociais que analisa. Algumas correntes procuram atribuir à sociologia a tarefa de examinar apenas, ou principalmente, O presente, deixando qualquer passado a historiografia. Outras consideram que a sociologia não precisa impor se limitações, podendo analisar tanto O Presente como qualquer passado, próximo ou remoto. Sempre ressurge na análise sociológica o problema da duração. A sociologia periodiza tempos, épocas, ciclos, fases, etapas, etc., da mesma forma que focaliza crises, mudanças, transformações, rupturas, conjunturas, estruturas.

Há um historicismo generalizado nas Ciências sociais, que é particularmente visível na sociologia. O método funcionalista (Durkheim), o compreensivo (Weber), o dialético (Marx), ou estrutural funcionalista (Parsons), o estruturalista (Althuser) e outros, cada um a seu modo, todos implicam numa forma peculiar de apanhar a historicidade do objeto da sociologia. Cada um a seu modo todos como que instauramos modalidades de historicidades. Na sociologia, da mesma forma que nas outras Ciências sociais, a historicidade dos acontecimentos é apanhada em termos deterministas, mecanicistas, evolucionistas, funcionalistas, dialéticos e outras maneiras de pensar e capturar as ações, relações, processos e estruturas. Inclusive se pode dizer que nos trabalhos de sociólogos a história aparece de forma vazia, abstrata, dramática, épica, dependendo do estilo da narração e da perspectiva teórica do autor. A teorias que são historicistas ao revés, pois que não apreendem a historicidade do objeto: tomam o objeto ao nível a-histórico ou supra-histórico. Nem por isso, no entanto, deixam de conferir uma historicidade singular, ainda que abstrata ou vazia, ações, relações, processos e estruturas sociais. Ao apanhar um fato de uma forma abstrata, sincrônica, histórica, o sociólogo lhe confere uma dimensão especial, alguma transcendência que o cristaliza, retifica e mitifica.

Vejamos o que escreveram Barrington Moore Jr. E C. Wright Mills, a propósito da decadência da perspectiva histórica da sociologia Moderna. Referem-se ao estrutural funcionalista parsoniano:

 

“Moore Jr.: the key idea is this body of theory, the reader may recall is the view that for every society there exists a certain limited number of necessary activities or “functions”, such as obtaining food, training the next generation, etcetera., and an equally limited number of “structures”, or ways in which society can be organized to perform these functions. Essentially, a structural functional theory searches for the basic elements of human society, abstracted from time and place together with rules for combining these elements.”[9]

“Mills: in this terms the idea of conflict cannot effectively be formulated. Structural antagonisms, large scale revolts, revolutions – they cannot be imagined, (…) the magical elimination of conflict and the wondrous achievement of harmony, remove from this “systematic” and “general” theory the possibilities of dealing with social change, with history.”[10]

 

O problema da historicidade do objeto da sociologia e de como esta pode apanhar essa historicidade tem sido continuamente recolocado nas várias Correntes da sociologia. Também dentro da mesma corrente, como no caso do marxismo, surgem e ressurgem diferentes teses sobre como pode a sociologia trabalhar a historicidade das ações, relações, processos e estruturas sociais. Nas sociologias positivistas, a formalização dos métodos de pesquisa e das interpretações também provoca a discussão, como indicam as observações de Barrington Moore Jr. E C. Wright Mills.

Figura 3. 27a Reunião Anual da SBPC, realizada em 1975 em Belo Horizonte
(Foto: SBPC/ Acervo. Reprodução)

 

O objeto da sociologia aparece normalmente a análise sob distintas formas, como ações, relações, processos, estruturas, práticas, atividades, interesses, representações, valores, padrões de comportamento, ideologias, etc. Cada escola ou teoria sociológica busca uma articulação lógica entre os distintos aspectos da realidade social. Algumas buscam invariâncias universais. Outras buscam situações críticas, singularidades. Às que se concentram sobre as condições conjunturais dos acontecimentos. Ao passo que outras buscam tanto o que é conjuntural como o que é estrutural. Em quase toda análise sociológica aparece alguma tensão entre as dimensões sincrônica e diacrônica dos eventos. Essa tensão é tanto mais evidente quanto mais nítida for a dificuldade para lidar com biografia e história, relações e estruturas, interdependência e antagonismo, o que é recorrente e o que é emergente. A tensão entre as dimensões sincrônicas e diacrônicas dos acontecimentos complica se um pouco mais quando se incluem na análise sociológica as condições econômicas e políticas. Essa gama de problemas está implícita na forma pela qual o sociólogo trabalha com os eventos, tomando se como fatos, ações, relações, processos, estruturas, etc. Uns são sociologísticos, isto é pretendem trabalhar com o que é estritamente sociológico, distinto do que é econômico, político, cultural, psíquico, histórico; ou transformam tudo em sociológico, perdendo de vista os problemas do poder. Outros consideram que a realidade social engloba necessariamente todas as dimensões; portanto a análise precisa apanhar todas as dimensões presentes do evento. Daí porque ninguém escapa a necessidade de trabalhar com o tempo ou a duração dos eventos. Todo acontecimento social expressa, de alguma forma, a sua historicidade. O acontecimento não só se desdobra na duração como revela duração de outras dimensões da sociedade. Para conhecer a família operária, em dado país e época, precisamos compreendê-la no contexto da reprodução da força de trabalho da classe operária, das relações capitalistas de produção. Para conhecer a ditadura militar, em dado país e época, precisamos estudá-la, inclusive em suas políticas financeira, industrial, agrária, comercial, etc., além disso, as relações visíveis e subjacentes com as várias classes sociais, o poder estatal, etc.

Essas observações gerais sobre as condições e os conteúdos históricos dos acontecimentos sociais podem ser desdobradas ou especificadas nos seguintes termos:

Primeiro, a análise das ações, relações, processos e estruturas, enquanto práticas individuais e coletivas, políticas e econômicas, e também como representações, ideologias, consciências sociais, colocam a sociedade diante da necessidade de aprender, elidir negar ou recriar a historicidade dos eventos.

Segundo, a duração dos eventos não é homogênea para o conjunto da sociedade nem se mantém uniforme ao longo dos anos, fases, épocas, ciclos. Quando uma sociedade está sob a influência da economia primária exportadora, ela se reproduz segundo determinações distintas, principalmente externas, do que quando ela se acha sob a influência preponderante do capital industrial. Neste caso, as determinações internas parecem adquirir maior peso ao lado das externas que se refazem. Além de outros aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais, cabe lembrar que as condições técnicas e econômicas de reprodução do capital Agrário são diversas. Na agricultura o capital se reproduz sob a influência — em algum grau — das condições naturais. Na indústria, as condições naturais pouco influenciam, o que permite incluir sistemáticas e ritmos especiais a reprodução do capital industrial. Dessa maneira afetam se todos os níveis da vida social, inclusive a sua duração.

Terceiro e último, as distintas teorias sociológicas apanham efetivamente a história sob distintas formas; formulam muitas ou várias histórias. Na sociologia funcionalista, o que está em jogo é uma historicidade organizada com base no princípio da causação funcional. Na sociologia compreensiva, a realidade social parece organizar-se e modificar se nos termos do princípio da conexão de sentido. E na sociologia dialética, a realidade social parece articular-se e transformar-se segundo os termos do princípio da contradição. Em cada caso, a relação entre ações, relações, processos e estruturas se apresentam numa forma especial. Em cada caso, os conteúdos políticos e econômicos, práticos e ideológicos, dos fatos aparecem sob forma peculiar. São distintas formas de contar e recontar, ou fazer e refazer, a história.


Texto publicado originalmente em:
IANNI, Octávio. Sociologia e História. Cienc. Cult. 1975, vol.27, n.10.
(Apresentado no simpósio “História e Ciência”, durante a 27a Reunião Anual da SBPC, Belo Horizonte, 1975.)
Leia o texto original em:
https://memoria.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=003069&pagfis=1
* Esse texto foi atualizado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Capa. 27a. Reunião Anual da SBPC realizada em Belo Horizonte em 1975.
(Foto: SBPC/ Acervo. Reprodução)
NOTAS
[1] Conforme transcrição de Fritz Machlup, The production and distribution of knowledge in the United States, Princeton University Press, Princeton, 1962, p. 149. Consultar também: Jacob Schmookler, Invention and economic growth, Harvard University Press, Cambridge, 1966.
[2] Karl Mannheim, Man and society in an age of reconstruction, Harcourt, Brace and Company, Nova York, 1949, p. 247.
[3] Karl Mannheim, Diagnosis o four time, Routledge & Kogan Paul, Londres, 1950, p. 1.
[4] E. J. Hobsbawn. The age of revolution: 1789-1848. Mento Book, Nova York, 1964, pp. 327-328.
[5] Robert K. Merton. Social theory and social structure, The Free Press, Gelcoe, 1951, p. 289; Consultar também: J. D. Bernal, Science in history. Watts & Co., Londres, 1954.
[6] Karl Marx, El Capital. 3 tomos, trad. De Wenceslau Roces, Fondo de Cultura Económica, México, 1946-47, citação do tomo I, vol. II, p. 683.
[7] Karl Marx, Elementos fundamentales para la crítica de la economía política. 2 vols. Trad. de Pedro Scaron, Siglo XXI Editores, México, 1972, vol. 2, p.230.
[8] Joan Robinson. The accumulation of capital, MacMillan & Co., Londres, 1956, p.173. Consultar também: Werner Sombart, el apogee del capitalism, 2 vols., trad. De José Urbano Guerrero, Fondo de Cultura Económica, México, 1946, vol. I, terceira parte; Simon Kuznets, Modern economic growth, Yale University Press, New Haven, 1966, esp. pp 286-294.
[9] Barrington Moore Jr. Political power and social history, Harper Torchbooks, Nova York, 1962, pp. 125-126.
[10] C. Wright Mills. The sociological imagination, Oxford University Press, Nova York, 1959, p. 42.
Octávio Ianni foi professor emérito do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) e integrou a equipe de pesquisadores do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Participou da chamada Escola de Sociologia Paulista.

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