José de San Martín, líder dos movimentos de independência da Argentina, do Chile e do Peru, defendendo a monarquia? Espanhóis a favor da emancipação política? Indígenas no sul do Chile a favor da Espanha? Estranho, não é? Sim, mas a história, especialmente essa das independências latino-americanas, é feita de fatos aparentemente inusitados que são explicados por ela.
“As batalhas pela independência na América Latina assumiram dinâmicas muito variadas, a depender da região e do período”, afirmam Gabriela Pellegrino Soares, professora de História da América Independente, e Rafael Dias Scarelli, doutorando em História Social, ambos da Universidade de São Paulo (USP) e organizadores do recente dossiê Independências Latino-Americanas da Revista da USP.
“As batalhas pela independência na América Latina assumiram dinâmicas muito variadas.”
Tudo estava em aberto: as fronteiras dos novos Estados, o regime político a se adotar, a manutenção ou não do escravismo… E tudo estava em movimento: cada grupo defendia suas aspirações, mas suas posições não eram estanques.
Diferenças e semelhanças
No início do século XIX, movimentações políticas na Europa abrem caminho às independências latino-americanas. Os exércitos napoleônicos invadem Portugal, obrigando a fuga da corte real para o Brasil. Napoleão invade também a Espanha: o rei Fernando VII é deposto e José Bonaparte, irmão de Napoleão, é colocado em seu lugar. Assim, as invasões promovidas pela França, que tem como consequência a fragilização política de Portugal e Espanha, auxiliam as independências na América Latina.
Segundo Soares e Scarelli, assim como a escravidão no Brasil que demorou 66 anos para ser abolida (1888) após a Proclamação da Independência (1822), algumas instituições herdadas do período colonial também demoraram a ter fim na América espanhola. “Ainda que as guerras de independência tenham sido decisivas para a abolição da escravidão naqueles países, diante da necessidade de mobilizar os escravizados para a luta e da impossibilidade de fazê-lo sem a promessa de alforria, em muitas nações a abolição só foi consumada em meados do século XIX”, contam.
Com relação ao regime de governo, embora a monarquia tenha se estabelecido como regime político estável apenas no Brasil, ela também foi cogitada em outros países do continente. Lideranças como os argentinos San Martín e Bernardo Monteagudo, que participaram dos processos independentistas do Chile e do Peru, a defendiam. A monarquia chegou mesmo a entrar em vigor no México. “Tanto para o Brasil quanto para os outros países da região estava dado o desafio de construir uma nova ordem, mas essa construção não se dava no vazio”, afirmam Soares e Scarelli.
Figura 1. Enquanto no Brasil a independência foi idealizada por um monarca português, em outros países da região ela se deu por lutas revolucionárias
(“A Revolução de Maio”, de Francisco Fortuny. Reprodução)
Grupos em disputa
Um dos motivos que permitiram as independências foi o ressentimento experimentado pelos descendentes de espanhóis nascidos no continente. Isso porque as posições mais altas na burocracia colonial e na hierarquia eclesiástica eram dadas aos espanhóis nascidos na Europa. Já os “criollos”, como eram chamados os descendentes de espanhóis nascidos na América, ficavam sempre com as piores colocações. Com o tempo, a divisão foi se aprofundando.
Líderes “criollos”, como Simón Bolívar, membro de uma rica família de fazendeiros de cacau venezuelanos, tiveram destaque na formação e condução de exércitos para lutar militarmente contra a metrópole. Mas na Argentina, por exemplo, assumiram uma posição “dúbia”. Em Buenos Aires, a princípio, juravam fidelidade ao rei, que estava prisioneiro dos franceses. Porém, aproveitaram a oportunidade para formar a “Primera Junta” na cidade, processo conhecido como Revolução de Maio, de 1810, que expulsou o vice-rei espanhol e formou um novo governo.
Os “criollos” não foram os únicos a assumir protagonismo nesse processo, explicam Soares e Scarelli: “em diversas porções da América Latina, a mobilização popular foi um elemento fundamental para o desenrolar e desfecho das lutas emancipacionistas”. Os historiadores apontam que alianças com outros grupos foram decisivas, a exemplo das Rebeliões de Cusco (Peru), em 1814, lideradas pelos irmãos Angulo e pelo cacique Mateo Pumacahua.
Uma diversidade em ação
Nem sempre os criollos foram emancipacionistas. Na verdade, nenhum grupo tinha uma posição homogênea: “Criollos, indígenas e mestiços, afro-americanos e nem mesmo os espanhóis peninsulares tomaram posições unívocas nas guerras de independência, em todas as porções da América espanhola”, atestam os pesquisadores.
Figura 2. As guerras de independência se arrastaram por um longo período na América espanhola
(“Proclamação e juramento da Independência do Chile”, de Pedro Subercaseaux. Reprodução)
Em Lima (Peru), por exemplo, houve uma grande adesão à manutenção dos laços com a metrópole por parte dos “criollos” que ainda estavam sob o impacto da revolta indígena de Túpac Amaru II, ocorrida em fins do século XVIII. Além disso, havia o sentimento de nostalgia de uma época em que o vice-reino peruano abarcava toda a América do Sul de colonização espanhola.
Os indígenas — que entraram em cena não só como combatentes, mas também como lideranças — aderiram militarmente à causa realista na região conhecida como “Araucanía”, no centro-sul do Chile. Segundo a historiadora norte-americana Florencia Mallon, desde fins do século XVII, os mapuches, graças ao seu poder militar, conseguiram obter da Coroa espanhola o reconhecimento de sua fronteira, o que os fazia aderir ao “status quo” de então.[i] “Por outro lado, camponeses indígenas e mestiços formaram o grosso das fileiras insurgentes que atenderam ao chamado do padre Miguel Hidalgo, no México, e foram ao campo de batalha sob o estandarte da Virgem de Guadalupe”, ou seja, lutaram pela independência.
Se os grupos mudavam de posição conforme a região ou o período histórico, as “ideologias” também mudavam no decorrer da vida de cada um. Bernardo Monteagudo, político tucumano que participou nos processos independentistas no Rio da Prata, Chile e Peru, apresenta posições radicais na juventude, mas torna-se apoiador da monarquia e da exclusão indígena do universo político em uma fase posterior, conforme aponta a historiadora Maria Ligia Coelho Prado em seu artigo “Esperança radical e desencanto conservador na independência da América Espanhola”.
“Não houve uma unidade tampouco um consenso que permeasse as independências aqui na América.”
“Não houve uma unidade tampouco um consenso que permeasse as independências aqui na América”, concorda Anderson Prado, doutor em história latino-americana pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).“Claro que não quer dizer que os atos independentistas ocorreram sem organização. Pelo contrário, foi preciso arregimentar a massa em maior ou menor participação para que se obtivesse sucesso nesses processos”, continua.
Batalhas e heróis
Na América espanhola, as guerras de independência se arrastaram por um longo período, que superou uma década em algumas regiões, como no México. Os conflitos eram muitos. Os desafios, gigantes: longas viagens, com “apenas” a Cordilheira dos Andes para vencer.
Soares e Scarelli contam o exemplo do motim realizado pelos soldados rio-platenses por falta de pagamento na Fortaleza Real Felipe de Callao, no Peru, em 1824: “Aqueles homens haviam partido da atual Argentina, liderado por José de San Martín, cruzado a cordilheira dos Andes e lutado contra as forças realistas no Chile, até finalmente alcançarem o território do vice-reino do Peru, onde permaneceram mesmo após a saída de San Martín”, destacam. “Dos dois lados do conflito, muitas das forças mobilizadas naquele contexto não se constituíam em exércitos regulares, mas sim milícias, que obtinham seus recursos através de saques e butins promovidos em suas incursões em povoações e fazendas no território inimigo”.
Os efeitos das independências não se restringiram a essas batalhas contra o exterior, mas resultaram em outras divergências internas aos países. As disputas da narrativa histórica por meio da criação de um panteão de heróis da independência, em cada um desses novos territórios latino-americanos, ilustra isso: “Uma vez que cada novo regime político buscou amparar-se em heróis afinados com suas demandas e bandeiras, esses panteões sofreram constantes revisões”, apontam Soares e Scarelli.