José Bonifácio, ministro e conselheiro, preparou o documento que iniciou oficialmente o processo de separação com Portugal em 6 de agosto de 1822. Maria Leopoldina, na condição de princesa regente do Brasil, presidiu uma decisiva sessão do Conselho de Estado no dia 2 de setembro de 1822, solidificando o caminho para a separação entre o Brasil e Portugal. E D. Pedro, príncipe regente, declarou o território brasileiro definitivamente separado da metrópole portuguesa, no dia 7 de setembro de 1822.
D. Pedro, Maria Leopoldina e José Bonifácio são algumas das mais ilustres personalidades da Independência do Brasil, relembradas e celebradas na História. Mas não foram as únicas figuras importantes nesse processo. A luta pela separação de Portugal foi travada por inúmeros personagens: populares, escravizados e indígenas, que desempenharam papeis essenciais para tornar o Brasil independente.
“A luta pela separação de Portugal foi travada por inúmeros personagens — populares, escravizados e indígenas que desempenharam papeis essenciais para tornar o Brasil independente.”
“Os personagens importantes foram incontáveis, e seria bastante ilusório elencar meia dúzia de homens brancos que viviam ao redor de D. Pedro”, aponta João Paulo Peixoto Costa, professor de História do Instituto Federal do Piauí (IFP). “Não se trata de ignorar a atuação dessas pessoas, que estiveram inclusive em Lisboa, se indispuseram com as medidas das Cortes portuguesas que queriam rever os privilégios do Brasil e articularam o projeto de separação. Mas a própria ideia de independência não teria tido a mínima reverberação sem a atuação desses populares”.
Um cenário em ebulição
A chegada da família real portuguesa ao Brasil, em 1808 — fugindo das tropas francesas que invadiram Portugal — fez com que as relações entre as duas partes do império luso-brasileiro mudasse significativamente. O estabelecimento da família real no Brasil ocasionou uma série de mudanças, como a abertura dos portos e outras medidas adotadas por D. João, que contribuíram para o desenvolvimento comercial e econômico na colônia. No Brasil, o estabelecimento da família real implicou no aumento dos impostos e na interferência direta na administração da capitania. Enquanto em Portugal a invasão francesa deixou como legado uma forte crise, tanto política quanto econômica.
Pressionado pelas Cortes portuguesas, D. João retorna a Portugal em 1821, mas deixa seu filho, D. Pedro, como príncipe regente do Brasil. Com isso, ocorre a reivindicação da transferência das principais instituições criadas durante o Período Joanino para Portugal, o envio de mais tropas para o Rio de Janeiro, e outras medidas tomadas pelos portugueses serviram para aumentar o descontentamento.
Nesse cenário, cresce a pressão dos portugueses para que o príncipe retorne a Portugal, ao mesmo tempo em que, no Brasil, um grupo se organiza pela permanência do regente. Esse grupo, intitulado “Clube da Resistência”, em janeiro de 1822, elabora um documento apontando as razões para a permanência do príncipe no Brasil, além de coletar oito mil assinaturas em um abaixo-assinado defendendo sua continuação no país. Motivado pelo apoio recebido, D. Pedro declara que permaneceria no país, no que ficou popularmente conhecido como o “Dia do Fico”. Reforçando sua posição, o regente decreta o “Cumpra-se” — uma ordem estabelecendo que nenhuma lei ou determinação vinda de Portugal seria válida no Brasil sem sua autorização. A reação portuguesa foi inexorável: Portugal considerou a Assembleia Constituinte brasileira ilegítima, anulou os poderes políticos do príncipe e declarou seu mandato ilegal, e ainda ameaçou invadir o Brasil se D. Pedro se recusasse a retornar.
Maria Leopoldina e José Bonifácio tiveram papel fundamental nos acontecimentos de então. Quando as Cortes portuguesas passaram a exigir o retorno de D. Pedro a Portugal, José Bonifácio defendeu a autonomia brasileira e convenceu os deputados brasileiros a apoiar a permanência do príncipe no Brasil. Ele contou com o apoio de Maria Leopoldina que, na ausência de D. Pedro, permaneceu como princesa regente. Foi ela quem recebeu as notícias de que Portugal estava preparando uma ação contra o Brasil. A D. Pedro coube declarar a separação definitiva, no dia 7 de setembro.
Figura 1. José Bonifácio de Andrada e Silva, considerado um dos pais fundadores da Independência do Brasil
(“José Bonifácio de Andrada e Silva”, de Benedito Calixto. Reprodução)
Nesse processo, também são figuras essenciais o político e jornalista Joaquim Gonçalves Ledo e o religioso Januário da Cunha Barbosa. Considerado um dos articuladores da Independência do Brasil, Joaquim Gonçalves foi um dos responsáveis pelo Dia do Fico e pela convocação da Assembleia Constituinte de 1822. Fundador do Revérbero Constitucional Fluminense, periódico com intuito de defender a causa da independência brasileira, Januário Barbosa organizou o documento com mais de oito mil assinaturas que pedia a permanência de D. Pedro no país.
“O projeto da independência do Brasil foi um projeto das elites”, explica Lucia Maria Bastos Pereira das Neves, professora do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). “Foram as elites políticas e intelectuais os condutores do movimento. Mas isso não significa que se pode esquecer que também houve uma grande participação de indígenas e escravizados, especialmente nas guerras de independência, mesmo porque lutar pela independência do Brasil poderia significar lutar por sua própria liberdade”, diz.
Participação popular
Segundo Costa, embora o projeto da separação de Portugal tenha sido articulado especialmente pela elite, é equivocado pensar que a população estava alheia aos acontecimentos. “O povo esteve atento a tudo que se passava, desde quando estourou a Revolução Liberal do Porto no final de 1820 e tiveram início em 1821 as Cortes de Lisboa — uma instituição que passou comandar o império e pretendia elaborar uma Constituição sob a qual o rei estaria submetido. O povo não era indiferente a tudo isso”. O pesquisador explica que a adesão ao projeto da independência brasileira não nascia de um “nacionalismo”, mas sim de uma oposição a Portugal. “Grande parte dos grupos populares viam no rei uma entidade protetora contra os abusos das elites políticas e econômicas, que eram violentos e gananciosos no usufruto de sua mão de obra e de suas terras. Portanto, o retorno do monarca e a proposta de uma Constituição eram bastante ameaçadoras para muitos, que passaram a ver nas Cortes — e, gradativamente, em Portugal — um inimigo”.
“Embora o projeto da independência tenha sido articulado especialmente pela elite, é equivocado pensar que a população estava alheia aos acontecimentos.”
Apesar de frequentemente relembradas, essas grandes personalidades não foram as únicas a desempenharem papeis importantes no processo na independência. “A História ensinada em sala de aula muitas vezes foca nos grandes nomes, nas grandes figuras. Mas ensinar História não é apenas ensinar nomes e datas, é ensinar a refletir, a pensar criticamente”, enfatiza Neves. “A independência da época era a não sujeição de um povo a um processo, a uma lei — no caso, Portugal. E desse rompimento com Portugal participaram vários personagens desconhecidos: uma gama populares sem rosto e sem nome que também foram protagonistas da Independência”.
Negros e indígenas
O processo de independência não foi um processo homogêneo ou pacífico. Muitas províncias se declararam contra a separação de Portugal e vários conflitos eclodiram pelo país. Na Bahia, um violento combate se desenrolou entre 7 de setembro de 1822 e 2 de julho de 1823. Na região do Grão-Pará, a resistência contra o domínio imperial acabou deixando cerca de 1300 mortos, parte deles por asfixia no porão de navios capturados pelas forças de D. Pedro. Os conflitos se estenderam até meados de 1825.
Nessas batalhas, a participação de negros e indígenas foi fundamental. “Escravos baianos fugiam para voluntariar-se nas tropas, num misto de civismo e de busca pela liberdade pessoal”, explica Adriano Comissoli, professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). “No caso de indígenas, temos registro de participações, mas também de negativa em lutar e de manifestações favoráveis a D. João. Algumas dessas manifestações estiveram atravessadas por conflitos locais, como a defesa das terras indígenas frente à tentativa de invasão por grandes proprietários. Ou seja, a independência mesclava também antigas animosidades. No extremo sul do Brasil, os charruas apoiaram o projeto de José Gervásio Artigas (líder político, general militar e estadista da região do Río de la Plata, que lutou nas guerras de independência da América Latina contra os Impérios Espanhol Português) de criar uma Confederação dos Povos Livres e, por isso, se opuseram às forças portuguesas até 1820, quando foram vencidos”, continua.
Entre os indígenas, destaca-se a figura do guarani Andrés Guacurary e Artigas, mais conhecido como Andresito. Filho adotivo José Gervásio Artigas, Andresito nasceu em São Borja (atualmente Estado do Rio Grande do Sul, Brasil) e cresceu na vizinha São Tomé (hoje Província de Corrientes, Argentina). Foi Comandante General das Missões, e destacou-se na tentativa de criar uma Confederação dos Povos Livres na região do extremo sul, que incluía não apenas indígenas, mas também escravos libertos (muitos libertados por ele) e população empobrecida. Combateu as tropas portuguesas em várias ocasiões, até ser finalmente capturado em 1819.
Revolução feminina
“Pela maior parte da história, o anônimo foi uma mulher”, escreveu a escritora inglesa Virginia Woolf. Na independência do Brasil não foi diferente. Muitas mulheres participaram ativamente, tomando parte até mesmo das batalhas. Contudo, a maioria permanece desconhecida até os dias de hoje.
Uma das poucas mulheres que conseguiu alçar seu nome aos livros de História foi Maria Quitéria de Jesus, ou simplesmente Maria Quitéria. Primeira mulher a fazer parte do Exército Brasileiro, a baiana teve que fingir ser homem e usar o nome do cunhado para conseguir entrar em uma batalhão. Denunciada pelo próprio pai, Maria Quitéria foi impedida de deixar as tropas pelo major Silva e Castro, que a considerava importante na luta contra os portugueses por sua facilidade com o manejo de armas e sua disciplina em batalha. Assim, a jovem passou a usar seu nome verdadeiro, trocou o uniforme masculino por saias e adereços, e juntou-se oficialmente às tropas que lutavam contra os portugueses em 1822. Sua coragem em ingressar em um meio exclusivamente masculino inspirou outras mulheres, que se uniram às tropas e formaram um grupo comandado por Quitéria. Nesse batalhão, ela se destacou em vários combates, recebendo de D. Pedro a medalha de “Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro”.
Figura 2. Maria Quitéria foi uma das muitas mulheres na frente da batalha durante a luta pela independência
(“Maria Quitéria”, de Domenico Failutti. Reprodução)
Mas Quitéria não foi a única mulher na frente de batalha. A pescadora negra Maria Felipa de Oliveira liderou o povo liberto da região da Bahia para atacar e neutralizar as tropas portuguesas que teimavam em não deixar o Brasil após a independência. Maria Felipa se engajou na luta pela separação de Portugal e, com suas companheiras, utilizava de seus conhecimentos de pesca para patrulhar e sabotar os barcos portugueses que se aproximavam das praias. Sua principal arma era a astúcia. Muitas vezes, ela e as mulheres de seus grupos seduziam os soldados portugueses, apenas para conduzi-los até a praia, embebeda-los, despi-los, e então aplicar-lhes bofetadas de cansanção (planta que provoca sensação de queimadura na pele). Felipa exerceu uma forte liderança sobre a população pobre da Ilha de Itaparica, incluindo índios tupinambás e tapuias em seu grupo.
“É central perceber que a emancipação brasileira foi um contexto de oportunidades de lutar por liberdade e autonomia, seja para ampliá-la, garanti-la ou conquista-la”, aponta Costa. “Pensar na história da independência a partir das ações coletivas também é oportuno para a atualidade, quando vemos direitos constitucionais sendo fragilizados. A cidadania foi reivindicada pela população que coletivamente se manifestou e protagonizou a independência, pensada em torno dos próprios conceitos e expectativas de liberdade, e que foi excluída por elites fundamentalmente escravistas”, finaliza.