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As guerras da independência

Longe de ser um processo pacífico, a Independência do Brasil foi repleta de revoltas, motins e levantes por todo território

Um príncipe, um grito, e um país declarado independente. Ao contrário da narrativa oficial que predomina nos livros e nas aulas de história, a Independência do Brasil não se consolidou no 7 de setembro de 1822, às margens do Rio Ipiranga. Tampouco foi um processo homogêneo, definitivo e pacífico. Ao contrário: foi complexo e repleto de lutas nas diferentes regiões do território.

O estabelecimento da corte portuguesa no Brasil ocasionou uma série de mudanças, como a abertura dos portos às nações amigas, a criação de novas instituições, e uma maior autonomia e unidade para a colônia. Por outro lado, também acarretou o aumento dos impostos e a interferência direta na administração da capitania, além de estabelecer uma maior repressão contra as mobilizações populares.

Isso levou a uma crescente insatisfação na colônia — tanto das elites, quanto dos populares. O resultado foi uma série de revoluções que eclodiram pelo país, conhecidas como as Guerras pela Independência, que persistiram até meados de 1825. “De fato, em 1821 e 1822, antes de setembro, havia muita tensão política. As províncias podiam escolher atender os decretos das Cortes de Lisboa ou os do príncipe-regente. Através de jornais e de cartas oficiais ou particulares, os integrantes de diferentes províncias procuravam convencer os moradores delas ou de outras a aderir a esse ou aquele projeto político”, aponta Adriano Comissoli, professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

A primeira delas, que antecedeu a Proclamação da Independência, foi a Revolução Pernambucana de 1817 — um movimento de caráter separatista, republicano e liberal. O movimento foi o único do período colonial que atingiu a tomada do poder, levando a capitania de Pernambuco a declarar sua separação do Brasil e a proclamar uma república. A repressão foi violenta: 14 revoltosos foram executados (a maioria enforcada e esquartejada), e centenas morreram em combate ou na prisão.

Figura 1. Exército do Império do Brasil ataca as forças confederadas no Recife, em 1824, no contexto da Confederação do Equador, principal reação contra a política centralizadora de D. Pedro I.
(“Combate entre rebeldes e legalistas na luta dos Afogados”, de Leandro Martins. Reprodução).

 

“A Revolução Pernambucana é um movimento muito forte no Nordeste em 1817”, explica Paulo Pinheiro Machado, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “É um movimento federalista em que se desenhava outro tipo de Estado, republicano, com a separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário para evitar a centralização de poder”.

Revoltas, motins e levantes

A Proclamação da Independência, no entanto, não acalmou os ânimos. Muito pelo contrário: vários grupos tomaram posições variadas, aumentando a tensão através do território. O site Impressões Rebeldes, do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), lista 24 ocorrências entre 1820 e 1824, classificadas como revoltas, motins e levantes. “Sobre as lutas da independência é importante considerar o quanto foram variadas. Não apenas houve batalhas contra tropas portuguesas, mas também revoltas, lutas pelo poder local, motins, e muitas intimidações por parte das forças militares”, afirma Comissoli. “Em resumo, podemos falar de guerras entre o Rio de Janeiro e forças leais a Lisboa, revoltas locais, motins e guerras separatistas”, continua.

 

“Não apenas houve batalhas contra tropas portuguesas, mas também revoltas, lutas pelo poder local, motins, e muitas intimidações por parte das forças militares.”

 

A Bahia foi um dos locais mais conflituosos. Na região, os tumultos aumentam em 1822 com a Carta Régia que substituía o brasileiro Manuel Pedro de Freitas Guimarães, governador das armas da Bahia, pelo português Inácio Luís Madeira de Melo. Após uma fracassada tentativa de acordo entre a Junta Provisória e a Câmara de Salvador, as tropas entram em choque. Salvador é então cercada pelo exército português, e dezenas de famílias e soldados brasileiros deixam a cidade rumo às vilas do Recôncavo Baiano. Lá, tropas de voluntários — formadas especialmente por escravos fugidos — se reúnem para compor uma armada que organiza a resistência em solo baiano. Nos meses seguintes, várias batalhas são travadas por terra e mar, com características de guerra civil. O ponto máximo é alcançando nos meses de maio e junho de 1823, quando as tropas brasileiras cercam Salvador e expulsam os portugueses da região, no dia 2 de julho.

“O recôncavo baiano foi um local de disputas muito violentas, onde chegou a se formar um segundo exército, composto por escravos fugidos, que cercaram a capital Salvador e expulsaram os portugueses”, aponta Machado. “Essas lutas baianas são consideradas fundamentais para a consolidação da ideia de unidade do território brasileiro”.

No Piauí, enquanto as autoridades se opunham ao novo governo, vários grupos apoiavam o projeto de D. Pedro. A província era controlada pelo governador e major português João José da Cunha Fidié, que tinha a missão de manter o norte da ex-colônia fiel à Coroa Portuguesa. No entanto, pouco mais de um mês após o Grito do Ipiranga, as cidades de Parnaíba e Oeiras declaram sua adesão ao projeto da independência. Fidié parte para reprimir o movimento rebelde, quando é surpreendido por uma coluna de piauienses, maranhenses e cearenses às margens do Rio Jenipapo, em Campo Maior. É aí que se trava, no dia 13 de março de 1823, um dos confrontos mais sangrentos das Guerras da Independência: a Batalha do Jenipapo. Armados com espingardas, facões, machados, foices, e até paus e pedras, os rebeldes enfrentam os bem armados soldados de Fidié. Em poucas horas de embate, entre 200 e 400 brasileiros são mortos. Apesar da grande baixa, os rebeldes conseguem debandar, levando os suprimentos portugueses. As tropas lusitanas são obrigadas a recuar para o Maranhão e os rebeldes conseguem dominar a província. Fidié acaba preso, enviado ao Rio de Janeiro e deportado para Lisboa.

E a guerra continua

Algumas províncias desfrutavam de uma relação privilegiada com Portugal — e, por isso, resistiram mais para aderir ao projeto da independência. Esse é o caso do Maranhão e do Grão-Pará.

A elite maranhense possuía uma série de vantagens quanto a exportação, a manutenção da escravidão e as relações políticas ligadas aos portugueses — daí o desejo em manter os vínculos com Portugal. No entanto, o interesse do Império era manter a unidade do território. Assim, nos primeiros meses de 1823, tropas organizadas a partir do Ceará e do Piauí invadiram o Maranhão. A capital São Luís foi cercada por mar e ameaçada de destruição até se render no dia 28 de julho.

Do mesmo modo, o Grão-Pará também possuía uma forte ligação com os comerciantes portugueses. Havia ainda a vantagem da distância e a navegação, bem mais segura e rápida para Lisboa do que para o Rio de Janeiro, o que facilitava o comércio e as relações com Portugal. Entretanto, após a Independência do Brasil, a relação da Província com as Cortes de Lisboa ficou estremecida. A elite paraense e o recém-criado império brasileiro começam a pressionar a capitania para que aderisse à independência. Então, até que D. Pedro envia o militar inglês John Grenfell para intimar as autoridades pela adesão. Para cumprir sua missão, o militar envia um ofício alertando que a cidade está sitiada e será invadida se as autoridades civis, militares e eclesiásticas não aderirem à independência. O episódio não passa de um blefe porque, na verdade, o capitão inglês tinha apenas uma esquadra. Sem saber da mentira de Grenfell, as autoridades do Grão-Pará assinam a adesão à independência no dia 15 de agosto de 1823.

Mas a adesão da capitania não foi assim tão simples. Um dos pontos de maior conflito foi o fato de que a elite poderia manter seus títulos e propriedades ao assinar um documento jurando fidelidade a D. Pedro. “No Pará a guerra de independência é um conflito entre brasileiros fiéis a Portugal e brasileiros fiéis ao Império, enfim uma guerra civil entre brasileiros”, explica Vitor Izecksohn, professor do Instituto de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Assim, apenas três meses após a adesão, eclodiu uma revolta das tropas paraenses em Belém, lutando por direitos iguais. O movimento foi duramente reprimido, e 256 paraenses foram confinados no porão do navio São José Diligente e morreram asfixiados, sufocados ou até mesmo fuzilados.

“A região do Grão-Pará é uma região de forte ligação com a Portugal, especialmente comercial. Os portugueses dominavam o mercado de trabalho e tinham a soberania do comércio de retalho (como era chamado o comércio de varejo). Após a independência, começam a surgir vários movimentos anti-lusitanos e contra o monopólio dos portugueses no comércio”, aponta Machado. “Adeptos da causa portuguesa ou brasileira, os negociantes portugueses se tornariam um dos principais alvos das camadas insatisfeitas com a situação política, econômica e social da Província. Eles eram vistos como contrários aos interesses da maioria da população composta de indígenas, negros e mestiços”.

Figura 2. A Cisplatina foi uma região marcada por conflitos
(“Morte do Coronel Brandsen durante a batalha de Ituzaingó”, de Augusto Ballerini. Reprodução)

A última província a se tornar independente foi a Cisplatina. A região sempre foi marcada por conflitos, sendo inicialmente disputada por Portugal e Espanha, e depois entre Brasil e Buenos Aires. Durante o processo de independência brasileira, a Província da Cisplatina fazia parte do território do Brasil — mas isso não apaziguou a situação na região do Rio da Prata. “A região oriental do Rio da Prata era muito cobiçada pela sua localização estratégica e pelo seu potencial econômico, e foi incorporada ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves em 1821. Mas a criação da Cisplatina e a sua incorporação ao território brasileiro foram motivos de muita polêmica e muitos conflitos na região entre o Brasil, Buenos Aires e o Uruguai”, aponta Izecksohn.

Em 1825, o militar e político Juan Antônio Lavalleja liderou uma rebelião contra o Brasil para anexar a Cisplatina à Província Unida do Rio da Prata (atual Argentina). Para o império brasileiro, a manutenção territorial do Brasil era fundamental. Assim, D. Pedro enviou tropas para a área, mas suas ações serviram apenas para agravar os ânimos. As tropas brasileiras foram derrotadas e o Brasil perdeu a Província da Cisplatina. Mais tarde, o país concordou em participar da Conferência Preliminar da Paz, que estabeleceu o cessar-fogo e a separação da Cisplatina, que por fim obteve sua independência e se tornou a República Oriental do Uruguai.

Exército de negros, indígenas e mulheres

Os diversos episódios do processo da Independência do Brasil contaram com a participação de representantes de todas as raças, classes e gêneros. Ainda que com interesses e motivos variados, não é possível negar a contribuição das camadas populares, negros escravizados e libertos (ou até mesmo fugidos), indígenas, sertanejos e mulheres. A maioria das revoltas, motins e levantes que ocorreram através do território nacional tiveram caráter fortemente popular, emancipacionista e democrático.

 

 

Além disso, houve forte presença dessas camadas no exército. Porém, o recrutamento era um assunto um tanto controverso. Por um lado, era temido e repudiado pela população mais pobre, pois significava o afastamento das atividades econômicas e sociais. Por outro, era negado aos escravos. “Apesar da forte presença de negros e mestiços, o serviço militar brasileiro não era aberto a escravos”, explica Izecksohn. “A Constituição Imperial garantia os direitos de propriedade, e como propriedade os escravos não podiam ser oficialmente expropriados: seja pelo governo imperial, seja pelos governos provinciais. Consequentemente o alistamento estava aberto somente para aqueles que possuíam liberdades civis ou para escravos libertos para defender o Estado sob condições excepcionais. Por outro lado, havia muito debate sobre quais eram essas condições excepcionais. Além disso, a escassez de soldados fazia com que o exército acabasse recorrendo a essa população de negros (libertos ou até mesmo fugidos) e de índios”.

O processo da independência brasileira foi longo e árduo. Segundo os pesquisadores, é ainda um projeto em construção. “As pessoas perguntavam-se muito sobre o país e a sociedade que queriam e propunham caminhos para construí-la. Este é um exercício de política que precisamos retomar e praticar constantemente: pensar o futuro e os modos de alcançá-lo”, propõe Comissoli. “A importância da constituição, da separação dos poderes e do respeito às leis legítimas igualmente se destacam no período. E também a participação de diversos setores da sociedade”, finaliza.

Imagem de capa. A Bahia foi uma região marcada pela resistência e por diversos conflitos
(“O Primeiro Passo para a Independência da Bahia”, de Antônio Parreiras. Reprodução)

BUENO, Chris. As guerras da independência. Longe de ser um processo pacífico, a Independência do Brasil foi repleta de revoltas, motins e levantes por todo território. Cienc. Cult. [online]. 2022, vol.74, n.1 [citado  2023-09-07], pp.1-5. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252022000100012&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0009-6725.  http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20220012.
Chris Bueno

Chris Bueno

Chris Bueno é jornalista, escritora, divulgadora de ciências, editora-executiva da revista Ciência & Cultura, e mãe apaixonada por escrever (especialmente sobre ciência).
Chris Bueno é jornalista, escritora, divulgadora de ciências, editora-executiva da revista Ciência & Cultura, e mãe apaixonada por escrever (especialmente sobre ciência).
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