A narrativa mais presente nos livros de história, em órgãos do Governo Federal e até mesmo em telenovelas é a representação da Independência do Brasil como a autonomia e liberdade do país. Enquanto o fato heroico é de conhecimento geral, os números que cercam este período são pouco explorados. Com o famoso grito de D. Pedro, o Brasil também ganhou o começo de uma eterna dívida externa. Será que hoje, econômica e socialmente, o país está tão longe de seu passado monárquico?
Para entender o processo de Independência é necessário olhar para a gestão política daquele período. É o que aponta Carlos Gabriel Guimarães, professor do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). “A questão que envolve a independência é uma tensão que vai crescer justamente depois de 1815”, revela, referindo-se ao ano em que o Brasil foi elevado à condição de reino. “Cada vez mais, para muitos, havia uma diferenciação entre os portugueses que se estabeleceram no estado do Brasil, ainda mais com a vida da Corte para o Rio de Janeiro, e os portugueses no Reino. Essa tensão vai levar o Brasil ao processo de Independência. E ao contrário do que se fala, ela não foi nada pacífica. O que chama a atenção também foram os custos para essa independência: é bom lembrar que o Brasil, para ter o reconhecimento internacional, teve que celebrar alguns acordos financeiros, como empréstimos estrangeiros”, detalha o especialista.
Entre 1824 e 1825, o Brasil já estava devendo à Inglaterra mais de quatro milhões de libras esterlinas da época. A equação da dívida era clara: para ser visto internacionalmente como independente, o Brasil teve que pagar dívidas com o reino de Portugal referentes ao período colonial. Para isso, recorreu a empréstimos em bancos ingleses.
“A problemática da gestão pública brasileira começou com a nossa independência, esse é o grande problema: nós tivemos que pagar para sermos independentes.”
Guimarães aponta que a independência não só trouxe problemas financeiros ao país como acirrou um cenário econômico defasado. Isso porque, quando a família real voltou a Portugal em 1821, ela simplesmente limpou todas as reservas do primeiro banco português com sede no Rio de Janeiro, o Banco do Brasil. Desta forma, o Brasil independente nasceu com mais dívidas do que dinheiro em caixa.
“A problemática da gestão pública brasileira começou com a nossa independência, esse é o grande problema: nós tivemos que pagar para sermos independentes”, pondera Guimarães. “Agora, o interessante é que ficamos independentes de Portugal politicamente, mas culturalmente e economicamente ainda mantivemos relações. E o que levou essa parceria comercial entre Portugal e Brasil ser tão apagada [na história]? Foi apagada pela própria questão de se construir uma memória do Brasil independente”, conclui.
Economia rural e segregação urbana
Para Marcelo Gomes Ribeiro, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Observatório das Metrópoles, um grupo de estudos do Institutos Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT), é importante compreender como era a renda e a estrutura social do Brasil no período de independência e nas décadas seguintes. Na época, o país era essencialmente rural, e se organizava a partir da existência de alguns centros urbanos importantes, como Salvador, Recife e Rio de Janeiro, então a capital do país. “Era uma estrutura social baseada no trabalho escravo, que tinha uma elite branca com o poder político e econômico, que constituía seu nível de renda principalmente a partir da atividade de exportação do café, o principal produto de exportação brasileiro. Uma elite com muito poder, assentado nessa exportação do café e que se desdobrava em outras atividades mercantis existentes na cidade, mas que também se viabilizavam a partir do trabalho escravo”.
O processo de independência, no entanto, não provocou nenhuma alteração significativa nessa organização econômica e social baseada na relação de subordinação da população negra escravizada. As mudanças começaram a aparecer apenas décadas depois, com a abolição da escravidão, mas não foram necessariamente positivas. “É uma abolição em que os negros deixam de ser escravos, mas não se constitui ali uma condição de cidadania plena para esses negros libertos. Isso significa que eles se tornam libertos, mas sem nenhum direito, nenhuma garantia e nenhuma possibilidade de sustentação das suas vidas”, explica Ribeiro.
Figura 1. A falta de recursos e políticas de garantia de direitos impactou diretamente na segregação e no empobrecimento da população negra após a abolição da escravidão
(“Vendedoras de aluá, limões doces e cana-de-açúcar: os refrescos usuais nas tardes de verão”. Jean-Baptiste Debret. Reprodução)
O vácuo de recursos e garantias pós-abolição teve implicações em diversos aspectos da vida da população negra. Isso refletiu em uma segregação urbana, com os recém-libertos sendo obrigados a buscar moradia nas periferias das cidades. Além disso, eram considerados pela elite apenas aptos a exercerem trabalhos de escravizados, sendo ainda desprovidos de qualquer direito como cidadão. Essa segregação urbana se assentou de vez no século seguinte, com a política de industrialização que começou nos anos 1930 e se intensificou a partir dos anos 1950. Houve um crescimento exponencial das cidades e a formação dos grandes centros urbanos que conhecemos hoje, mas que não conseguiram incorporar toda a população nessa dinâmica modernizante. Boa parte das pessoas que passou a viver nestas metrópoles não tinha acesso a trabalho formal e nem a habitação de qualidade, e novamente acabou por se instalar nas periferias das cidades. “Essas periferias passam a ter uma expressão social por serem lugares desprovidos da infraestrutura e dos serviços urbanos necessários para reprodução da vida da cidade”, finaliza Ribeiro.
“O vácuo de recursos e garantias pós-abolição teve implicações em diversos aspectos da vida da população negra.”
A estrutura social do país e o cenário de segregação urbana e das condições de trabalho, sobretudo da população negra, não mudaram muito da abolição para cá. Dados do estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil feito em 2018 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontaram que pretos ou pardos representavam 64,2% da população desocupada no país e 47,3% trabalhavam no mercado informal. Além disso, o rendimento médio mensal das pessoas pretas ou pardas (R$ 1.608,00) era cerca de 74% inferior ao de pessoas brancas (R$ 2.796,00). As condições de moradia também são piores para esta população, com 44,5% de pretos e pardos vivendo em domicílios com a ausência de pelo menos um serviço de saneamento básico em comparação com 27,9% da população branca.
Uma cadeia produtiva, ontem e hoje
Além da estrutura social desigual que se desencadeou com esse modelo de produção baseado na produção agrícola — o agronegócio — especialistas também afirmam que a reprodução deste modelo econômico dedicado ao setor rural é uma herança negativa da independência, que prejudica o desenvolvimento e a autonomia do país. “Se você olhar bem essa estrutura agro exportadora atual, ela não é distribuidora de renda, não é distribuidora de tecnologia e não permite uma ampliação da cadeia estrutural. Enquanto continuarmos assim, o Brasil vai continuar do jeito que está: assimétrico, desigual e racista”, alerta Guimarães.
Em setembro de 2021, a Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), divulgou um dossiê para denunciar as políticas governamentais dedicadas ao agronegócio e, consequentemente, uma falta de retorno econômico e desenvolvimentista. Intitulado O agro não é tech, o agro não é pop e muito menos tudo isso, o documento alerta que o mercado rural se beneficia de leis e políticas públicas, mas não dá o retorno proporcional aos caixas governamentais correspondentes aos benefícios que recebe. Ou seja, é um mercado que se utiliza de recursos públicos sem a devida contrapartida, beneficiando unicamente a cadeia privada.
Figura 2. A estrutura social desigual que se desencadeou com o agronegócio é uma herança negativa da independência, que não favorece a distribuição de renda e prejudica o desenvolvimento e a autonomia do país.
(“Café”. Cândido Portinari. Reprodução)
Para Guimarães, o Brasil tem potencial de ter autonomia econômica, por conta do seu capital humano e ser um país rico em matéria-prima, mas isso não é suficiente se a hegemonia da política econômica agrária exportadora continuar. “A primeira coisa necessária é uma nova política ambiental, uma política industrial voltada à tecnologia e ligada ao meio ambiente. Porque existe a questão da extração de produtos da Amazônia, produtos locais com alto valor agregado. Se você exportar cacau da Amazônia, castanhas, rende muito mais por hectares do que qualquer boi. Agora, não é isso que nós estamos vendo”.
Dívida externa versus dívida interna
Segundo Ribeiro, todo país que faz parte do mercado econômico mundial acaba tendo algum tipo de dívida externa, por conta das relações que se estabelece com outro país. A questão é em qual moeda essa dívida foi realizada. “Nós tivemos um período em que a dívida externa brasileira foi altamente problemática para todo o processo de desenvolvimento econômico do país, entre os anos 1980 e o começo dos anos 1990, porque grande parte da dívida do país era estrangeira. E a dívida externa tem que ser paga em moeda internacional — no caso, o dólar. Não ser uma moeda emitida por nós torna o pagamento muito complicado, porque requer a obtenção de dólares para poder fazer frente ao abatimento da dívida. Essa foi uma dívida contraída pelos governos militares na década anterior e, por conta do aumento da taxa de juros que o Banco Central dos Estados Unidos realizou no final dos anos 1970, acabou comprometendo a nossa capacidade de pagamento.”
Ribeiro aponta ainda que o Brasil hoje possui uma situação bem mais confortável em relação à sua dívida externa. “Atualmente, temos uma dívida externa muito pequena em relação às reservas cambiais que possuímos. Desde meados da primeira década do século XXI, ainda no Governo Lula, o país conseguiu manter reservas cambiais suficientes que pudessem servir, inclusive, como garantia para a realização de investimentos estrangeiros no país. O que passou a ter, e aumentou, foi uma dívida interna, que é tema de debates nos últimos tempos por seu tamanho. Mas essa é uma dívida feita em moeda nacional, que nós temos soberania”.