Introdução
A necessidade de inovações quanto à forma de proposição dos conteúdos dos saberes para o percurso na educação básica e quanto às dinâmicas curriculares nas práticas educacionais vem sendo colocada com vigor nos debates atuais. Inovações, que em teoria, se diferenciem dos modos tradicionais observados nos documentos propositivos quanto a esses conteúdos, bem como dos modos pelos quais as práticas educacionais, em geral, são propostas e realizadas nas escolas e nas instituições da educação superior que lidam com aprofundamento de conhecimentos e formam os que trabalharão na educação básica ou atuarão em política e gestão da educação e em pesquisa educacional.
O trabalho universitário tem base no trabalho da educação básica e ambos compõem o contínuo processo formativo das novas gerações. Conhecimentos estão no centro desse trabalho. Portanto, entre os dois níveis há importantes interfaces, nem sempre reconhecidas, analisadas e consideradas. Afinal, a universidade lida com o aprofundamento e aperfeiçoamento de conhecimentos, com sua conservação, enquanto produz renovação nos saberes científicos em todas as áreas pela pesquisa. A educação básica se alimenta dos conteúdos dos conhecimentos, e por seu lado, gera, por suas finalidades e práticas, saberes que importam para relações pedagógicas e construção de aprendizagens em situações coletivas de trabalho com crianças e adolescentes, em circunstâncias variadas. O reconhecimento desses saberes e o diálogo com eles nem sempre é efetivado pela academia, deixando um laço solto dentre os que compõem a interface escola básica-educação superior. Nessa interface se inserem as questões de políticas relativas a currículo e metodologias educacionais. Esse diálogo, que implica escuta e trocas efetivas, quase não se realiza dessa forma. Há mais lições acadêmicas para a educação básica do que trocas e compreensão de características das redes de ensino em suas injunções nacionais e regionais, e circunstâncias e práticas nas e das escolas em seus contextos específicos.
Não é demais lembrar – e este é outro ângulo da interface educação básica e universidade – que currículo escolar e formação de professores estão intimamente relacionados, quer pela dimensão de conteúdos, das práticas pedagógicas, ou dos fundamentos da educação. A formação de professores é atribuição da educação superior, cabendo a esta, para tanto, conhecer, analisar, conceber processos curriculares, lidar com conhecimentos nas diversas áreas do saber, desenvolver análises críticas sobre essas questões, trabalhar com os fundamentos da educação e construir conhecimentos relativos à educação das novas gerações, sob variados ângulos, pela investigação científica. Assim, nos cursos de licenciatura, na formação de professores para a educação básica, lhe compete compartilhar essa sabedoria, bem como oferecer alternativas para as formações continuadas de educadores e, com essa sabedoria, contribuir com as redes de ensino no que concerne às políticas, gestão, planejamento, desenvolvimento de programas e projetos educacionais e, quanto aos processos de avaliação, bem como, quanto aos processos de aprendizagem nos âmbitos cognitivo, social, afetivo e dos valores associados aos sentidos dos conhecimentos. Ou seja, a formação de consciências com fundamento em conhecimentos e valores.[1, 2, 3, 4] (Figura 1)
Figura 1. Educação básica e universidade estão intimamente relacionados pelo currículo escolar e pela formação de professores
(Foto: Gabriel Jabur/ Agência Brasília. Reprodução)
A efetivação dessas interfaces, no entanto, demanda diálogo, interações entre agentes universitários e agentes inseridos nas redes da educação básica. Busca a construção de pontes de interação, abertura para a escuta e capacidade cooperativa, flexibilidade, entendimento e consensos. Produção conjunta de conhecimentos e compartilhamentos parceiros.
Quanto às possibilidades de inovação curricular, é relevante que seja construída com a educação básica. Inovar, no que se refere a processos educacionais, pressupõe vislumbrar novas perspectivas culturais, sociais, científicas, em seus ideários e paradigmas. É um processo de mudança, ou transmutação, ou transformação de perspectivas e práticas. Pressupõe considerar os processos de subjetivação e representação humanos, de conservação e mudança. Implica, como diz Foucault: “(…) ver como formas de racionalizações se inscrevem em práticas, ou sistemas de práticas, e que papel elas desempenham ali. Pois é verdade que não há ‘práticas’ sem um certo regime de racionalidade.”[5] Compreensão de racionalidades que pode desencadear processos de mudança. Inovações, pois. Silva Júnior, em sua análise, acentua que para mudar “precisamos estar conscientes e convictos da exaustão histórica das formas de análise e dos processos de intervenção até aqui utilizados no tratamento da situação social que nos desafia, com sua inoperância e sua petrificação.”[6] Completando ao afirmar que é preciso considerar que transformações são fruto de pessoas e instituições que assumem pela sua ação conjunta propor alterar situações dadas. Saviani e Duarte colocam que, para mudar é necessária uma “reflexão radical, rigorosa e de conjunto sobre os problemas que a realidade apresenta”.[7]
Cenários da produção curricular
Falar em currículo é falar em conhecimento e perspectivas sócio-históricas sobre conhecimento. Currículos escolares e práticas educacionais repousam em processos históricos: sociais, comunitários e pessoais. Como lembra Young, não há como construir teoria de currículo sem uma teoria do conhecimento.[8] Assim é que, considerando os últimos séculos, observa-se que os processos de escolarização em todos os seus níveis, bem como os conteúdos e práticas educacionais, são caudatários das racionalidades que se vinculam de modo geral à chamada “era moderna”. Na modernidade instalou-se a crença de que verdades absolutas seriam conseguidas usando-se o método científico da prova e contraprova. Foi a era das grandes verdades, a era da racionalidade, a qual deveria fundamentar não só o conhecimento científico, como as relações sociais, as relações de trabalho, a vida social, a própria arte, a ética, a moral. Como coloca Goergen: “A eficiência alçada ao nível de norma suprema da razão impôs o abandono dos ideais e fins humanos.”[9] Por outro lado, conforme reflete Habermas,[10] criaram-se condições de verdade que acabaram por enclausurar a própria razão e que geraram formas de poder, homogeneizando contextos e pessoas, impondo-se como instrumento de controle. Morin,[11] colocando-se ao lado das teorias da complexidade, ao considerar as proposições da modernidade, da cientificidade clássica, que penetraram nas ciências sociais e humanas, reflete que, na psicologia, o sujeito foi substituído por estímulos, respostas, comportamentos; na história também se retirou o sujeito, “eliminaram-se as decisões, as personalidades, para só ver determinismos sociais. Expulsou-se o sujeito da antropologia, para só ver estruturas, e ele também foi expulso da sociologia.” [11]
“Currículos escolares e práticas educacionais repousam em processos históricos: sociais, comunitários e pessoais.”
Como discutido em Gatti,[12] o decorrer da vida, em suas variadas instâncias, produz problemas, micro transmutações que adquirem lastro e geram consequências. Na temporalidade histórica instalou-se na modernidade uma espécie de crise, uma contradição histórica que se traduziu nas rupturas trazidas, quer pelas formas cotidianas do existir, fazendo emergir a necessidade de consideração das heterogeneidades, das diferenças, das desigualdades, quer, ainda, pelas fraturas e conflitos sociais e religiosos, muitos inesperados e surpreendentes, pondo em xeque os grandes modelos explicativos do mundo social. Nas ciências apresentam-se fissuras teóricas, problemas não resolvidos e os impasses científicos que criam. Dúvidas e disputas surgem quanto às pretensões de verdade, objetividade, universalidade e uniformidade, de controle social pela ciência, vigentes na modernidade. Assume-se nas ciências, em sua variedade, a possibilidade real do conceito de indeterminação, de descontinuidade, de probabilidade, admitindo o pluralismo teórico, e a construção de diversificados modelos e projetos em torno de uma questão. Assim, no contraponto das perspectivas da modernidade vem se colocando o espectro de uma era muitas vezes rotulada de “pós-moderna” (ou “pós-industrial”), trazendo consigo perspectivas críticas sobre as formas de compreensão da natureza, do social e do mundo educacional até recentemente dominantes. O termo pós-modernidade vem sendo usado para caracterizar aspectos do ideário da atual contemporaneidade, pelos movimentos que se processam nas sociedades e nas ciências, na conjunção com as tecnologias e a cibernética, pela informática, pelos meios de comunicação os mais diversos e cada vez mais avançados em suas características. A volta da consideração das subjetividades como fatores ativos na sociedade, na construção da história e da ciência, é tomada como uma característica da contemporaneidade atual.[13, 14, 15]
Essas posturas – da “modernidade” e “pós-modernidade” – aparecem no campo dos processos formativos escolares, seja para os níveis básicos, seja para os avançados. No entanto, é preciso considerar que não se observam cortes radicais nos processos históricos, sociais ou epistêmicos, mas superações em maior ou menor grau. É assim que, para vários teóricos, a modernidade não findou, e comporta considerar que seus fundamentos penetram a contemporaneidade.[16, 17] Processos de transição cultural compõem a contemporaneidade atual, em sua complexidade social e demográfica, com suas decorrentes questões, em movimento que incorpora parte dos componentes do pensamento da era moderna, mas transmutando sentidos e posturas nas formas de compreensão e construção de conhecimentos, e das práticas, no mundo social, educacional e científico. As diferenciações sociais e humanas emergem como fatos e, assim, a variabilidade humana, as heterogeneidades, as incertezas, as perspectivas e as representações, e não a unicidade e a homogeneidade, são enfatizadas. Passa-se à consideração da existência das pessoas não como objetos, mas como viventes e agentes na produção dos conhecimentos, da ciência e da vida, nas incertezas e conjunções sócio-históricas. Processos em movimento.
A universidade e a escola
O trabalho formativo e de pesquisa nas universidades e nas escolas é operado nesses cenários, e nem poderia ser de outro modo, e suas produções, formações e postulações curriculares são caudatários desses movimentos na cultura. A educação como um todo está imersa nesse fluxo. As posturas trazidas pela era moderna e pelo período mais recente, em que mudanças se configuram, encontram seu espelhamento em algumas teorizações, pesquisas, propostas e práticas curriculares. Claro, não um espelhamento perfeito, apresentando-se com aspectos sincréticos. De certezas e propostas bem configuradas e detalhadas adentra-se nesses processos de transição que são portadores de tensões e conflitos, o que no caso do campo da produção de currículos tanto implica questões do conhecimento e seus conteúdos como de epistemologias, envolvendo ainda perspectivas político-ideológicas. Sensibilidades às mudanças sinalizadas afloram em algumas políticas e gestões escolares da educação básica, em certas práticas, e também em alguns nichos no ensino superior – na docência, na pesquisa educacional e nas discussões sobre políticas educacionais. No entanto, intelectuais das universidades e das redes escolares nem sempre se encontram no mesmo diapasão. Nessa interface nem sempre se constroem pontes, havendo também conflitos entre perspectivas assumidas intramuros institucionais.
Currículo: educação básica e universidade
Várias perspectivas se apresentam nas discussões sobre currículo e esse campo de estudos é vasto.[18, 19] Tentamos acima colocar o pano de fundo (em movimento) em que conhecimentos e saberes se inserem, considerando que conhecimentos são a matéria-prima dos processos educacionais, portanto dos currículos escolares – quer da educação básica, quer do ensino superior. De uma situação em que o cognitivismo restrito teve dominância está se adentrando um momento no qual se volta a falar na consideração da integralidade do desenvolvimento humano, com seus aspectos inseparáveis e intrincados – cognitivos, emocionais, sociais, históricos. Com isso, o mote da educação integral vem se colocando nos ambientes educacionais e as questões de currículo escolar abrem-se para esses desafios.
“Nos cotidianos, há sinais de inquietação e mudança que se evidenciam em algumas políticas e aspectos de gestão de escolas, nas docências e na formação de docentes.”
Porém, grandes traços de perspectivas da “era moderna” ainda são muito fortes na educação, em todos os seus níveis e modalidades. Isto é evidente nos programas e metodologias de ensino, nas matrizes curriculares, na distribuição e oferta dos conteúdos, tanto nas escolas como no ensino superior, nas avaliações feitas por docentes ou nas avaliações nacionais, ou regionais, como também nos processos seletivos para adentrar no ensino superior – outra das interfaces entre educação básica e universidade. O conhecimento disciplinar mais restrito é o valorizado e medidas de desempenho são reificadas como “a” qualidade educacional. Mesmo situando-se grosso modo no mesmo diapasão cognitivista e fragmentário, há descompassos entre o currículo praticado na educação básica e a estrutura das matrizes para a produção de itens avaliativos para a entrada nas universidades, em especial, para as denominadas universidades de pesquisa, revelando certa assintonia entre os dois níveis escolares. Outro ângulo a ponderar. (Figura 2)
Figura 2. Há descompassos entre o currículo praticado na educação básica e a estrutura das matrizes para a produção de itens avaliativos para a entrada nas universidades
(Foto: Marcos Santos/ Usp Images. Reprodução)
De outro lado, nos cotidianos, há sinais de inquietação e mudança, que se evidencia em algumas políticas e aspectos de gestão de escolas, nas docências e na formação de docentes. Críticas e novas discussões e propostas tomam corpo na área educacional, abrindo campo para novas propostas curriculares.[20, 21, 22, 23] Um olhar para esses movimentos revela ações e produções pontuais e esforços que encontram pouco espaço institucional ainda, e resistências. Metaforicamente pensando, Luís Carlos de Menezes diz que “… o projeto escolar de ‘formação em série’ para servir à produção em série se tornou obsoleto…”, sustentando a ideia que hoje, de fato, educamos para o imponderável, revelando o que chama “uma ética da aventura” para a educação. Um chamado ao novo e ao imprevisível.[24] No contexto transicional que parece estamos atravessando na sociedade mais ampla, a educação apresenta-se com novas necessidades, e, currículos, tal como se apresentam, são postos em questão. Inovações são requeridas.
“A educação apresenta-se com novas necessidades, e currículos, tal como se apresentam, são postos em questão”
Todas essas inquietações presentes no cenário que se vivencia hodiernamente colocam um chamamento à universidade, no papel que lhe cabe: como a universidade, através de seus agentes, se coloca face à sua responsabilidade social e educacional no que concerne à educação básica e ao currículo escolar? Quais regimes de racionalidade assume neste âmbito? Mudanças e inovações se evidenciam? Em quais direções, com quais fundamentos? Há ambiente para inovações que tenham organicidade com a educação básica, de fato? Esse diálogo é valorizado e buscado?