Paulo Freire escreveu pouco sobre o universo acadêmico. Também não foram longos os períodos de permanência como professor nas universidades por onde passou em sua vida. No entanto, esses fatos não relativizam aquilo que produziu, dada a relevância e o ineditismo do seu pensamento.
Nascido em 1921, o educador começou a dar algumas aulas no ensino superior na Escola de Serviço Social no início do seu trabalho no Sesi (1947-1957) em Recife. Entretanto, foi a partir de 1952 que Paulo Freire se aproximou de forma mais consistente da universidade, quando foi nomeado professor catedrático interino de história e filosofia da educação da Faculdade de Belas Artes da então Universidade de Recife. A nomeação era prática corrente, visto não haver ainda cursos de pós-graduação para a formação de docentes para o ensino superior. Paulo ministrava suas aulas em paralelo ao trabalho pastoral e no Sesi.[i]
Em 1959, defendeu tese de doutorado por meio de concurso para catedrático efetivo de história e filosofia da educação. Pretendia se efetivar na Faculdade de Belas Artes, local onde já trabalhava, além de obter a titulação de doutor. Teve um bom desempenho e conseguiu o título, mas não a efetivação. Foi exonerado do cargo de professor catedrático interino, depois de oito anos de trabalho. No entanto, foi nomeado professor de história e filosofia da educação na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de Recife e tomou posse no início de 1961. Por sua sugestão, o reitor que o havia nomeado, João Alfredo da Costa Lima, inaugurou o Serviço de Extensão Cultural (SEC) em 1962 e o convidou para assumir a coordenação.
A experiência do Sesi, o trabalho pastoral, a convivência com o grupo de assistentes sociais da Escola de Serviço Social, as leituras que orientaram suas diversas práticas, a docência na universidade, toda a vivência daqueles anos embasou a elaboração de sua tese de doutorado intitulada “Educação e atualidade brasileira”.[1] O trabalho garantiria a Paulo Freire as condições e o prestígio necessários para que suas pesquisas e sua atuação pedagógica ganhassem repercussão e dimensão nacional, mas também para que despertassem a desconfiança e a perseguição que viriam com o golpe militar de 1964 e que o levariam ao exílio.
Na Universidade de Recife, a partir do Serviço de Extensão Cultural, Paulo Freire desenvolveu e assessorou, com seus colegas, vários trabalhos de alfabetização de adultos, culminando com a experiência de Angicos no Rio Grande do Norte, em janeiro de 1963, que o levou a Brasília para preparar um programa nacional de alfabetização a convite do então presidente João Goulart, dada a enorme repercussão. (Figura 1)
Figura 1. Na Universidade de Recife, Paulo Freire desenvolveu e assessorou vários trabalhos de alfabetização de adultos, que o levou à Brasília para preparar um programa nacional de alfabetização.
(Foto: Divulgação)
Um dos primeiros textos que escreveu sobre o papel das universidades foi “A propósito de uma administração”, ainda em 1961, quando avaliou os 18 primeiros meses do mandato do reitor João Alfredo da Costa Lima. Publicado pela Imprensa Universitária, em suas primeiras páginas, o documento realiza uma leitura da realidade daquele momento histórico, que já havia desenvolvido na sua tese de doutorado. Afirmava que o Brasil passava por um momento histórico de autorreconhecimento, no qual as elites, antes distantes, agora voltavam-se ao povo para construir uma sociedade mais justa através do diálogo. As elites dirigentes, considerando entre elas o reitor, passariam a tomar para si a responsabilidade pelo processo de transição de uma consciência ingênua para uma consciência crítica dos setores populares, reconhecendo neles agentes significativos do desenvolvimento, num diálogo permanente com a sociedade.
Não podem as universidades brasileiras furtar-se à discussão dos problemas ligados diretamente à educação popular, justamente numa fase da vida nacional em que o povo emerge, e, ganhando a consciência, mesmo ingênua, de sua presença no processo histórico, renuncia, como já disse, às suas velhas posições de espectador e ensaia novas posições de participante.[2]
A oportunidade que se apresentava naquele momento histórico, dizia o educador em seu texto, não poderia ser deixada de lado, pois, as massas populares vinham em processos crescentes de tomada de consciência que deveriam ser incorporadas ao diálogo com as elites para a construção de uma sociedade mais justa, industrial, moderna, autônoma e não dependente, como vinha ocorrendo ao longo da história brasileira. O desenvolvimento de uma consciência crítica dos setores populares era fundamental para que não caíssem na massificação e no comportamento reflexo das posições das elites.
Uma das fundamentais tarefas da Universidade moderna, sobretudo em sociedades como a nossa, sofrendo o forte impacto das mudanças sociais e econômicas, é, realmente, preparar o homem para, envolvido no trânsito como está, integrar-se nele, sem perder o espírito e a fé, sem o que se arrisca o homem a perder a paz e mergulhar na agonia. A cair “domesticado” no anonimato nivelador da massificação.[2]
Paulo Freire defendia a natureza política do trabalho da educação, identificando as raízes das injustiças sociais e buscando alternativas para superá-las. Neste sentido, a sua equipe no SEC trabalhava para constituir um “Sistema Paulo Freire de Educação” que teria início com a alfabetização de crianças e adultos nas primeiras etapas e chegaria à Universidade Popular.[3]
Com o golpe militar, a pedagogia crítica desenvolvida por Paulo Freire e equipe acabou por levá-lo à prisão e posteriormente ao exílio em fins de 1964. Passou muito rapidamente pela Bolívia, depois trabalhou no Chile, ficou um ano nos Estados Unidos a convite da Universidade de Harvard e, finalmente, viveu 10 anos em Genebra na Suíça, trabalhando no Conselho Mundial das Igrejas (CMI) de 1970 a 1980. Ali, teve a oportunidade de viajar por muitos países, em mais de 150 viagens internacionais. Já era uma pessoa reconhecida internacionalmente, principalmente depois do lançamento do livro “Pedagogia do Oprimido”, em 1971.
“Paulo Freire defendia a natureza política do trabalho da educação, identificando as raízes das injustiças sociais e buscando alternativas para superá-las.”
Em novembro de 1973, Paulo Freire atendeu a um convite do Ministro da Educação da Argentina e viajou para Buenos Aires para uma série de compromissos. Nessa viagem teve a oportunidade de participar de duas tardes com todos os reitores das universidades públicas do país. Conforme relatou no livro “Pedagogia da Esperança”, naqueles encontros conheceu experiências, vivenciou o ímpeto inovador do período peronista e o esforço de recriarem-se como universidades. Discutiu a importância da não segmentação entre docência, pesquisa e extensão e a relevância de não só ir ao encontro de grupos populares, mas também de manter a presença desses setores dentro da própria universidade como uma necessidade política e epistemológica.[4]
Para Paulo Freire,
a presença dos setores populares de forma alguma desmereceria a rigorosidade que se deve ter com a pesquisa e a docência. Ao contrário, a universidade que não luta por mais rigorosidade, por mais seriedade no âmbito da pesquisa como no da docência, sempre indicotomizáveis, esta sim, não pode se aproximar seriamente das classes populares, comprometer-se com ela.[4]
O educador estava preocupado com uma compreensão crítica sobre como relacionar a ciência universitária com a consciência das classes populares. No fundo, a relação entre saber popular, senso comum e conhecimento científico. E isso só poderia ocorrer na medida em que estes setores estivessem “contidos” nas universidades, como um compromisso de classe.
Comentando sobre o dilema dos setores populares que lutam por uma escola pública de qualidade, enquanto os setores das elites pagam boas escolas privadas para, posteriormente, frequentarem as universidades públicas ou as comunitárias de qualidade, afirmou que só seria possível discutir a aproximação das universidades com os setores populares quando a qualidade da educação básica fosse resolvida. Nesse sentido, a universidade teria um papel importante, não só na graduação e pós-graduação, mas também em convênios com os sindicatos dos professores, num esforço de educação permanente, trabalhando com a prática e refletindo teoricamente sobre ela.
“Discutiu a importância da não segmentação entre docência, pesquisa e extensão e a relevância de não só ir ao encontro de grupos populares, mas também de manter a presença desses setores dentro da própria universidade como uma necessidade política e epistemológica.”
Em seu primeiro retorno ao Brasil, em 1979, ainda no aeroporto, Fernando Henrique Cardoso declarou aos jornalistas presentes que era uma vergonha uma pessoa como Paulo Freire ser obrigado a deixar o país e que agora era um problema de todos criar condições de trabalho para ele. “As universidades deveriam correr para contratá-lo”, disse.
Paulo Freire decidiu fixar residência em São Paulo, para onde voltou em definitivo no ano seguinte. Integrou-se ao Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Além de ser o titular de algumas disciplinas, acompanhava grupos de pesquisa e orientava alunos do mestrado e do doutorado — não chegou a trabalhar na graduação. Sua presença pelos corredores era motivo de admiração, curiosidade e atenção.
Gostava de chamar seus encontros de seminários. Entendia que “cursos” ou “aulas” eram termos não coerentes com sua postura dialógica. Era comum encontrar alunos apinhados nas janelas e sentados no chão. Não importava o número de alunos na sala de aula. Entrava, cumprimentava a todos cordialmente e dava início ao seminário. Normalmente, escrevia no quadro uma frase sintética, como “teoria versus prática”. Depois, convidava os alunos a refletirem sobre o tema de forma livre, a partir de suas próprias experiências. Os estudantes vinham de diversas áreas, como filosofia, história, letras, pedagogia. A única recomendação era a de que a liberdade de participação não fosse motivo para perder o foco sobre o tema apresentado e suas consequências para a vida de cada um. Paulo Freire acolhia a voz de todos, falava sobre diversos autores sem mostrar filiação a nenhuma teoria específica. Frequentemente dividia os seminários com algum outro professor, colegas do programa de pós-graduação na PUC-SP. Essa forma de atuar, estabelecida por uma sugestão sua, era baseada no princípio de que ninguém sozinho detinha todo o conhecimento, que quanto mais gente estivesse na sala de aula, mais ricos seriam os seminários em função da diversidade de opiniões e visões. A defesa da presença dos setores populares nas universidades, unida à sua pedagogia crítica, permitiam o diálogo permanente com a sociedade.
Além do trabalho na PUC-SP, aceitou o convite para ser professor na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O interesse por tê-lo no corpo docente já havia sido manifestado pelo diretor da faculdade em 1978, quando Paulo Freire ainda vivia em Genebra. Sua efetivação na Unicamp não transcorreria de maneira tranquila como na PUC-SP, afinal, acima da universidade estadual e pública, ainda havia um governo militar. (Figura 2)
Figura 2. Além do trabalho na PUC-SP, Paulo Freire aceitou o convite para ser professor na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
(Fotografia: Antoninho Perri/ Unicamp. Reprodução)
Enquanto aguardava a sua efetivação, trabalhou como professor convidado e por poucas horas, recebendo acolhida calorosa da comunidade acadêmica que apoiava sua presença no campus. Em 1982, dois anos depois do início de sua colaboração com a Unicamp, seu nome voltaria a ganhar destaque quando foi eleito reitor pela comunidade acadêmica em uma votação simbólica contra as ações do governador do estado, Paulo Maluf, alinhado aos militares. Três anos depois, em mais um movimento para postergar sua efetivação, a reitoria interventora solicitou ao professor Rubem Alves, membro do Conselho Diretor da Faculdade de Educação, um parecer a respeito do educador. O pedido despertou tamanha indignação em Alves que o levou a elaborar o seguinte parecer:
Um parecer sobre Paulo Reglus Neves Freire.
O seu nome é conhecido em universidades através do mundo todo.
Não o será aqui, na Unicamp? E será por isso que deverei acrescentar a minha assinatura (nome conhecido, doméstico) como avalista?
Seus livros, não sei em quantas línguas estarão publicados. Imagino (e bem pode ser que esteja errado) que nenhum outro dos nossos docentes terá publicado tanto em tantas línguas. As teses que já se escreveram sobre o seu pensamento formam bibliografias de muitas páginas. E os artigos escritos sobre o seu pensamento e sua prática educativa, se publicados, seriam livros.
O seu nome, por si só, sem pareceres domésticos que o avalizem, transita pelas universidades da América do Norte e da Europa. E quem quisesse acrescentar a este nome a sua própria “carta de apresentação” só faria papel ridículo.
Não, não posso pressupor que este nome não seja conhecido na Unicamp. Isto seria ofender àqueles que compõem seus órgãos decisórios.
Por isso o meu parecer é uma recusa a dar um parecer. E nessa recusa vai, de forma implícita e explícita, o espanto de que eu devesse acrescentar o meu nome ao de Paulo Freire. Como se, sem o meu, ele não se sustentasse. Mas ele se sustenta sozinho.
Paulo Freire atingiu o ponto máximo que um educador pode atingir.
A questão não é se desejamos tê-lo conosco. A questão é se ele deseja trabalhar ao nosso lado.
É bom dizer aos amigos: Paulo Freire é meu colega.
Temos salas no mesmo corredor da Faculdade de Educação da Unicamp.
Era o que me cumpria dizer. [7]
O parecer foi firmado em 25 de maio de 1985. Um mês e meio depois, em 12 de julho, a admissão de Paulo Freire como professor da Unicamp foi publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo. Paulo Freire foi professor da Unicamp até 1991, quando pediu ao reitor que o exonerasse, em decorrência de sua readmissão, via Ministério da Educação, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), antiga Universidade de Recife, onde havia trabalhado até 1964. Estava prestes a se aposentar por idade e não poderia acumular duas aposentadorias pelo serviço público, conforme o estabelecido na Constituição de 1988. Optou por se aposentar pela Universidade Federal de Pernambuco — como explicou a Carlos Alberto Vogt, à época reitor da Unicamp, na carta que lhe enviou em 4 de março de 1991, Paulo receberia mais se aposentando pela UFPE.
“Ao longo da sua história, Paulo Freire demarcou a pedagogia crítica não separando política e educação. Mantinha o diálogo permanente com a sociedade como uma das bases do seu pensamento, em particular com os setores populares.”
Além dos compromissos regulares na PUC-SP e na Unicamp, Paulo também colaborou com outras instituições de ensino superior. Na Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep), aceitou o convite para desenvolver um ciclo de debates sobre educação popular, que ocorreu ao longo do segundo semestre de 1983. Na Universidade de São Paulo (USP), em 1987, ministrou um curso de um semestre na pós-graduação da Escola de Comunicações e Artes (ECA) chamado “Arte-Educação e Ação Cultural”, a convite da professora Ana Mae Barbosa. Ainda na USP, convidado pelo professor Moacir Gadotti, ajudou a formatar os chamados “Encontros com Paulo Freire”, na Faculdade de Educação.
Em “Cartas à Cristina”, de 1994, livro composto de várias cartas endereçadas à sua sobrinha, Paulo Freire dedicou sua 16ª carta a tratar do papel do orientador de trabalhos acadêmicos numa perspectiva democrática. Apesar de dedicar grande parte do texto a desenvolver uma reflexão sobre a relação entre orientador e orientando, assim como sobre o papel de cada um, afirma que tudo isto só faz sentido para ambos e para a sociedade se a formação científica for de qualidade.
Sem rigor, sem seriedade, sem disciplina intelectual, o processo da orientação que envolve orientador e orientando se frustra e deixa de cumprir o que dele se espera.[5]
Ao longo da sua história, Paulo Freire demarcou a pedagogia crítica não separando política e educação. Mantinha o diálogo permanente com a sociedade como uma das bases do seu pensamento, em particular com os setores populares. Para tanto, a universidade deveria incorporar esses setores não só como preocupação da pesquisa, do ensino e da extensão, mas também com a presença de estudantes.
Uma universidade não se aproxima ou se afasta das áreas populares a não ser através de uma decisão política. Por outro lado, não se aproximam ou se afastam por puro arbítrio de uma liderança. Deve haver uma relação dinâmica entre uma certa demanda das camadas populares e a decisão política de responder a ela. A decisão não se toma no ar, não se dá ao gosto da liderança, mas na história, nas condições materiais que estão aí.[6]