Confira entrevista com Marie-Anne Van Sluys, professora do Departamento de Botânica da USP
Como a biologia molecular de plantas poderia contribuir para a compreensão de diversidade genética e de funcionamento das plantas? É essa a questão que Marie-Anne Van Sluys e seu grupo de pesquisa vem tentando responder. A professora titular no Departamento de Botânica da Universidade de São Paulo (USP) e vice-presidente da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp) já conseguiu avançar muito nessa questão. Um dos marcos em sua carreira foi sua participação no maior sequenciamento do genoma da cana-de-açúcar comercial. Além disso, teve papel fundamental no projeto pioneiro de pesquisa genômica da bactéria Xylella fastidiosa, responsável pela clorose variegada dos citros (CVC), doença das laranjeiras conhecida como “praga do amarelinho”. “Esses estudos podem colaborar para ter uma fruta mais saudável, um plantio mais produtivo”, explica. Marie-Anne Van Sluys destaca que o aumento do número de mulheres cientistas no Brasil está intrinsecamente ligado ao progresso da ciência no país, mas afirma que ainda há muito trabalho a ser feito. “É um trabalho ainda longo, mas já mudou muito em relação ao início da minha carreira, que é uma carreira aí de 30 anos, desde iniciação científica até professora titular. Então acho que esse é um ponto interessante de pensar o quanto mudou em uma geração”. A pesquisadora também defende que a diversidade contribui muito para a ciência – especialmente em relação à criatividade. “Enxergo que precisamos sair da bolha, e um ambiente diverso faz com que tenhamos contato com várias bolhas, com várias realidades, e nos ajude a olhar problemas com outros olhos”.
Confira a entrevista completa!
Ciência & Cultura – Como coordenadora do grupo de pesquisas em biologia molecular de plantas na USP, quais são as principais áreas de foco e projetos que o grupo está desenvolvendo atualmente?
Marie-Anne Van Sluys – A área de biologia molecular de plantas é uma área relativamente recente se considerarmos o tempo de produção de conhecimento científico, porque é uma área que nasce no final do século passado. Inicialmente, a biologia molecular de plantas veio associada a compreender fenômenos de fisiologia, de desenvolvimento, de função, assim como os mecanismos de diversidade genética. Meu grupo começou focando nessa área: como a biologia molecular de plantas poderia contribuir para a compreensão de diversidade genética e de funcionamento das plantas. Hoje, nosso grupo foca na história evolutiva de alguns genes importantes. São genes que atuam na liberação de açúcar (sacarose) nos tecidos de cana-de-açúcar. Também estudamos a história de genes que participam da via de produção da tiamina (vitamina B1) e também sobre genes de resposta de defesa – ou seja, como esses genes evoluíram para contribuir com a defesa das plantas quando elas são atacadas por patógenos. Aí vem a segunda parte. Estudamos a interação planta-microrganismos. Nessa interação, por exemplo, quando há uma virose ou uma infecção bacteriana, as plantas precisam responder a essa presença do micro-organismo, e reconhecer se essa bactéria é benéfica ou causadora de doença. Um exemplo de uma bactéria benéfica, que estudamos há muitos anos no Brasil e que é uma contribuição enorme do grupo originalmente de Johanna Döbereiner – que está comemorando seu centenário – são as bactérias fixadoras de nitrogênio. Essa é uma bactéria benéfica e a planta precisa reconhecer isso e deixá-la colonizar os tecidos. No outro extremo, há bactérias que são patogênicas, e aí há exemplos clássicos no Brasil, inclusive com contribuições importantes do nosso grupo, como a Xylella fastidiosa, que causa a praga do amarelinho nos laranjais. Como a Xylella, há também as Xanthomas albilieans, que são bactérias que causam doença em cana-de-açúcar. Nosso grupo, recentemente, tem estudado a interação da cana-de-açúcar com essa bactéria, que é patogênica, e como a cana reconhece ou não esse processo. Por fim, também estudamos o que chamamos de genômica comparativa. Conhecemos muito bem alguns genes que promovem a defesa ou que favorecem o estabelecimento de doença em arroz, milho e trigo. A ideia é trazer esse conhecimento de outras plantas para o genoma de cana-de-açúcar, e então usar a estratégia de genômica comparada.
“Quando você está comendo uma laranja, esses estudos podem colaborar para ter uma fruta mais saudável, um plantio mais produtivo.”
C&C – Quais são os avanços mais recentes e significativos na pesquisa em biologia molecular de plantas e como essas descobertas podem impactar a sociedade?
MVS – Quando você está comendo uma laranja, esses estudos podem colaborar para ter uma fruta mais saudável, um plantio mais produtivo. Esses estudos contribuem para compreender esse contato e como que esse contato pode se tornar uma doença ou não. Se compreendermos isso, podemos contribuir para o manejo da agricultura porque conseguimos, por exemplo, identificar precocemente o estabelecimento da doença. Por exemplo, para laranjais, o impacto do sequenciamento do genoma da Xylella permitiu que o grupo do Centro de Citricultura do Instituto Agronômico (IAC) desenvolvesse o controle da doença usando um mecanismo muito interessante, que é o mesmo que usamos quando estamos gripado e temos muita secreção: usamos algo que liquefaz a secreção, então não entope os vasos da planta. Assim, compreendendo o mecanismo, podemos ter estratégias de controle ou estratégias para minimizar a doença no campo. Os programas de melhoramento podem buscar composições genéticas no cruzamento para reforçar a tolerância. No nosso caso, em seres humanos, tomamos vacina, por exemplo, para desenvolver resistência. Em plantas, não conseguimos fazer isso. Então, precisamos, de um lado, controlar a doença, conhecendo os sintomas, para minimizá-los. Por outro, no campo, você faz melhoramento genético para desenvolver cultivares que sejam resistentes. Então, essa é uma transposição para o agricultor que resulta em benefício para a sociedade quando você pensa em qualidade de produto que chega à mesa do consumidor ou, por exemplo, para a produção de sucos, no caso de laranja. E no caso de cana-de-açúcar, na hora que você aumenta a produtividade, isso impacta a produtividade tanto na indústria do açúcar quanto na indústria do etanol e na indústria da bioenergia.
C&C – Como a pesquisa em biologia molecular de plantas contribui para a promoção da sustentabilidade e segurança alimentar global?
MVS – Um ponto bacana é o que mencionei quando falei sobre trazer o conhecimento sobre arroz, milho e trigo para a cana-de-açúcar. Esses conhecimentos podem ser extrapolados para outras plantas e outros sistemas. Então, a Revista Pesquisa Fapesp publicou recentemente um fato muito interessante sobre as árvores gigantes da Amazônia. Se compreendermos os mecanismos que fazem com que aquelas plantas, por exemplo, cresçam e armazenem CO2, começamos a ter uma transferência de conhecimento sobre captação e fixação de CO2 e com isso podemos pensar em estratégias que possam minimizar o impacto dos gases do efeito estufa. Do ponto de vista de sustentabilidade, se compreendermos a interação, conseguimos diminuir a aplicação de insumos que não terão efeito. Então essa transferência para a sustentabilidade precisa ser olhada não no foco do projeto específico, mas como uma competência de conhecimento que pode ser transferido entre diferentes sistemas. Acho que esse é um ponto importante. Do mesmo modo que falamos do microbioma do intestino humano, as plantas também têm um microbioma. E a compreensão da composição desse microbioma – e, novamente, aqui cabe o exemplo da fixação do nitrogênio, dos estudos feitos por Johanna Döbereiner e vários outros grupos no Brasil – contribui para a qualidade do solo, para a qualidade da planta, e, às vezes, para o manejo desse microbioma. Então tudo que falamos sobre microbioma em humanos e animais, é algo que também estamos começando a compreender em plantas. E isso tem impacto na sustentabilidade.
“Acredito que a dualidade que existe é que durante muito tempo as mulheres eram consideradas como assessoras ou contribuintes, mas não pesquisadoras ou líderes.”
C&C – O Instituto de Biociências da USP tem desempenhado um papel crucial na pesquisa científica. Como você vê a interação entre a academia e a sociedade no contexto da biologia molecular de plantas?
MVS – O que temos hoje, por exemplo, de transferência de conhecimento, é uma aluna de iniciação científica que veio para um estágio de verão naquela bolsa que é uma parceria da Academia Brasileira de Ciências (ABC) com a Fapesp, que é o programa Aristides Pacheco Leão – um programa de estímulo à vocação científica. Ela ficou cerca de 50 dias aqui no laboratório. Ela tem um trabalho com produção sustentável e comunidades indígenas da região no Pará. Então, ela veio aprender conosco com a expectativa de levar esse conhecimento para lá. Isso é o que temos de forma mais direta, digamos assim. Mas também atuamos de diversas outras formas. Minha atuação de grupo, por exemplo, é mais do ponto de vista de gestão, de ajudar a desenvolver programas que possam ter esse impacto nas comunidades. Participei da organização de vários programas na Fapesp, entre eles o Amazônia+10, para ajudar as fundações de amparo à pesquisa, as secretarias de meio ambiente e as secretarias de educação a desenvolver programas que possam fazer essa transferência de conhecimento. Também temos a formação de recursos humanos, e eu tenho muito orgulho de todo mundo que passou pelo laboratório, porque temos um grupo inserido nas mais diferentes frentes: desde pessoas que trabalham em grandes indústrias, que trabalham no exterior, até pessoas que montaram suas pequenas empresas, passando por professores que atuam nos diferentes níveis educacionais.
C&C – Quais são os avanços e desafios enfrentados pelas mulheres nesse ambiente científico?
MVS – Tive a oportunidade de vivenciar uma transição. Acho que entre o momento que iniciei a minha carreira e o estágio em que eu me encontro hoje, podemos observar uma grande mudança. Quando comecei, participei de várias mesas em que era a única mulher, ou em que era a primeira vez que havia uma mulher participando. Eram situações muito inusitadas de como encaminhar e como se posicionar. Isso hoje já não é verdade. Temos a oportunidade de ter pesquisadoras inseridas em posições de destaque, como temos Helena Nader, que é a primeira presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), ou a Vanderlan Bolzani, que foi também a primeira presidente da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp). Acredito que essas posições de destaque estão começando a ser ocupadas. Temos outras posições onde o cerco ainda é fechado. Acredito que a dualidade que existe é que durante muito tempo – e aqui podemos pegar o exemplo da Rosalind Franklin lá na descoberta da estrutura da molécula de DNA – é que as mulheres eram consideradas como assessoras ou contribuintes, mas não pesquisadoras ou líderes. E isso tem mudado. As mulheres têm sido mais reconhecidas, tanto que o Prêmio Nobel do ano passado reconheceu o maior número de mulheres em sua história. Então, acredito que essa transição está ocorrendo. Ainda é um trabalho de formiguinha, eu diria, para que a liderança feminina, enquanto criatividade, enquanto estratégia de conhecimento, enquanto autonomia, seja reconhecida. É um trabalho ainda longo, mas já mudou muito em relação ao início da minha carreira, que é uma carreira aí de 30 anos, desde iniciação científica até professora titular. Então acho que esse é um ponto interessante de pensar o quanto mudou em uma geração.
“A construção do conhecimento científico, ainda que seja um trabalho muitas vezes considerado individual, depende de interações.”
C&C – A diversidade é crucial para o avanço da ciência. Como a inclusão de diferentes perspectivas, incluindo a presença de mulheres, afeta a qualidade e amplitude das pesquisas?
MVS – Eu diria que o ponto principal é a criatividade. Porque um dos motores da ciência é você observar, pensar sobre o problema, sobre a pergunta, e sobre como você pode responder aquela pergunta. Esse processo de observação, reflexão, questionamento e elaboração de um experimento é um processo criativo. E o olhar individual é muito importante para definir a pergunta que você quer responder. Além disso, nesse processo, você tem que ler e conhecer o trabalho de outros pesquisadores para trazer para a sua pergunta, você tem que interagir. Então, a construção do conhecimento científico, ainda que seja um trabalho muitas vezes considerado individual, depende de interações. Assim, quanto mais diverso for o seu universo de contato, mais criativo ele será. E a criatividade vem do indivíduo, vem de cada história. Enxergo que precisamos sair da bolha, e um ambiente diverso faz com que tenhamos contato com várias bolhas, com várias realidades, e nos ajude a olhar problemas com outros olhos. Se tenho essa oportunidade no dia a dia do laboratório, ou no dia a dia de sala de aula, ou no dia a dia de um congresso, de uma reunião, eu sou capaz de ampliar a minha rede de contatos e de interpretação da vida.