Naomar Almeida capa

“Ampliar vagas e aumentar a cobertura geográfica da oferta ainda é insuficiente”

Confira entrevista com Naomar Monteiro de Almeida Filho, professor da UFBA e editor do novo número da Ciência & Cultura

 

Como superar a dívida histórica da educação básica para construir um ensino superior inclusivo e de qualidade? Os desafios são muitos – e enormes, segundo Naomar Monteiro de Almeida Filho, professor de epidemiologia no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e editor desse número da Ciência & Cultura. Para o pesquisador, as universidades federais têm o desafio de se alinhar com a sociedade real, reduzindo sua dependência da formação profissional elitizante, que serve às elites do país. Além disso, também precisam participar decisivamente do desenvolvimento científico e tecnológico, num projeto de país com consciência global, responsabilidade ecossocial e justiça social. Esse seria o início para “resgatar a educação básica desse buraco sem fundo que perpetua o Brasil como uma das sociedades mais desiguais, economicamente e injustas politicamente do mundo”, afirma. Ex-reitor da UFBA (2002-2010), idealizador da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e titular da Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), Almeida afirma que a expansão universitária foi importante, porém insuficiente, e que é preciso voltar a expandir, mas com planejamento e investimentos institucionais para a transformação dos modelos pedagógicos e das arquiteturas curriculares.

Confira a entrevista completa!

 

Ciência & Cultura – O que a experiência da pandemia ensinou acerca de saúde pública ao mundo? O Brasil é capaz de compreender essa lição?

Naomar Monteiro de Almeida Filho – A pandemia da covid-19 foi uma catástrofe de proporções planetárias que forçou a humanidade a rever vários temas essenciais para nossa sobrevivência como espécie. Creio que o principal desses temas foi o próprio conceito de saúde pública. Muitos países, inclusive o Brasil, lidaram com a pandemia como se a saúde das pessoas fosse uma matéria de foro íntimo, uma questão individual, cada um deveria cuidar de si e dos seus familiares e amigos. O próprio conceito de sociedade foi posto em questão e, mais ainda, a noção do Estado como instrumento para garantia de direitos, principalmente, no caso, o direito à vida e à saúde. O Brasil, ou melhor, o governo federal daquele momento, foi incapaz de compreender essa questão, que agora nos parece simples, quase óbvia: uma pandemia foi, é e continuará sendo um problema de saúde coletiva. E sua solução não seria a mera soma de ações pessoais de indivíduos acometidos pela coronavirose. Nem o advento das vacinas – que foi um extraordinário feito da ciência ocidental – foi capaz de impactar imediatamente, haja vista a resistência do negacionistas, em praticamente todo o mundo.

 

“Como essa apropriação tecnológica já era desigual entre o setor público e o setor privado de ensino, essa desigualdade se ampliou e se aprofundou, reforçando as iniquidades sociais na Educação.”

 

C&C – Como a pandemia transformou a educação e o papel do professor?

NMAF – Na eclosão da pandemia, a principal estratégia imediatamente disponível para controlar o rápido contágio foi a redução drástica da mobilidade e a promoção ou imposição do distanciamento físico. Isso fez com que, na maioria dos países, a primeira reação foi suprimir atividades agregadoras, como as aulas nas escolas e universidades. Onde já havia uma infraestrutura telemática satisfatória, foi inevitável o recurso aos meios digitais, na verdade, já aplicados como complemento aos processos pedagógicos em ambientes educacionais socioeconomicamente privilegiados. Como essa apropriação tecnológica já era desigual entre o setor público e o setor privado de ensino, essa desigualdade se ampliou e se aprofundou, reforçando as iniquidades sociais na Educação, certamente o principal problema nacional desde sempre em sua história. Isso se aplica também ao pessoal docente capaz de operar os sistemas e manejar os processos de ensino-aprendizagem mediados por tecnologias digitais. As escolas privadas usaram sua flexibilidade gerencial para, por um lado, capacitar seus quadros para continuar usando ou passar a empregar metodologias pedagógicas mediadas por tecnologias (que entre nós se denomina, na minha opinião com enorme equívoco, como Ensino à Distância). Por outro lado, o setor privado pôde selecionar docentes e gestores capazes de utilizar as tecnologias emergentes e, consequentemente, descartar aqueles e aquelas que não se adaptaram aos novos modelos.

 

C&C – A expansão vivida pelas universidades públicas brasileiras, com aumento do número de vagas e criação de novos campi e cursos, de fato representou um vetor de democratização do ensino superior no Brasil?

NMAF – Foi sem dúvida um primeiro movimento, necessário e fundamental. Porém, na minha opinião, ampliar vagas e aumentar a cobertura geográfica da oferta de vagas ainda é insuficiente. Primeiro, porque isso se deu numa escala ainda insatisfatória face ao aumento brutal de uma demanda historicamente reprimida. Segundo, porque foi um aumento de “mais do mesmo”, sem investimentos institucionais decisivos na transformação dos modelos pedagógicos e das arquiteturas curriculares. Então se ampliou a demodiversidade, com democratização quantitativa, mesmo que ainda com problemas de efetividade, sem resolver temas de permanência e evasão, e pouco se avançou na epistemodiversidade, sem inovações mais decisivas na direção de transformar a velha instituição reprodutora das iniquidades e formadoras dos herdeiros, no sentido de Bourdieu.

 

“As cotas trouxeram para dentro das universidades públicas contingentes representativos do fundamentalismo religioso e do conservadorismo cultural, inclusive no plano moral e comportamental.”

 

C&C – Como a introdução das políticas de cotas e as ações afirmativas modificaram as relações no interior das universidades?

NMAF – Realmente a entrada dos primeiros membros de famílias pobres em cursos considerados de elite trouxe para dentro das instituições elementos que podemos considerar como perturbadores de uma certa ordem que se mantinha desde o Império. De cara, revelou um racismo institucional que todos negam, traços demonstrativos da colonialidade de nossa formação social, principalmente porque continuamos tendo pretos e pardos desproporcionalmente representados nesses grupos sociais pobres no Brasil. Isso sem falar em verdadeiras minorias culturais, como indígenas, quilombolas e populações ribeirinhas. Então, em muitos lugares, a segregação se revela dentro da instituição. Além disso, as cotas trouxeram para dentro das universidades públicas contingentes representativos do fundamentalismo religioso e do conservadorismo cultural, inclusive no plano moral e comportamental.

 

C&C – Como os cortes de bolsas e redução do orçamento das instituições federais afetaram as pesquisas feitas no Brasil?

NMAF – Um horror! Foi um enorme desmonte, culminando todo um período de ataques e ameaças às universidades públicas brasileiras, que felizmente parece pertencer a um passado superado.

 

“Somente programas robustos e efetivos de permanência podem reduzir a evasão.”

 

C&C – Você acredita que o Ensino Superior pode mudar para melhor sem que o Ensino Básico também se transforme?

NMAF – Certamente, mas não seria o ideal. Isso pode significar uma tendência ainda vigente na universidade pública brasileira, o fato de se rejeitar uma visão sistêmica da educação. Por outro lado, o discurso de que somente se deve transformar a universidade quando todo o sistema público de educação for recriado tem sido usado como uma retórica conservadora, paralisante até. Durante o REUNI (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), nos anos áureos do segundo governo Lula, muitos segmentos da universidade foram omissos e se furtaram a participar da ampliação de vagas com o discurso de que só se poderia aumentar a oferta após garantir a qualidade do ensino, melhorar as condições de trabalho docente, equipar as instalações…

C&C – Por que os índices de evasão nas universidades brasileiras são tão altos? Que medidas poderiam ser tomadas para mudar isso?

NMAF – Por vários motivos. O principal motivo, na minha opinião, é essa estrutura curricular extremamente rígida, pré-programada, em que todas as escolhas são antecipadas, onde mudar é praticamente proibido. Os currículos dos cursos universitários são pautados pela formação disciplinar, profissionalizante, com pouco espaço para a experimentação e a criatividade. Mas há motivos de gestão, também. O sistema de gestão acadêmica que exercitamos nas universidades públicas é muito burocratizado, regido por regras e normas destinadas a proteger os gestores dos órgãos de controle e da permanente ameaça de judicialização. Em terceiro lugar, temos tudo isso regulado e controlado pelos interesses e conveniência do corpo docente e de dirigentes, com reduzida participação social efetiva na governança institucional. Aí, a decisão de, por exemplo, fechar cursos que não têm mais demanda e de abrir outros programas inovadores tornados relevantes pela transformação social, é uma decisão que não deveria ser tomada internamente, por aqueles que entraram na universidade para ensinar aquela matéria naquele curso específico. Frente ao grande pano de fundo das necessidades dos que entraram na universidade vindos de famílias e grupos sociais vulnerabilizados, somente programas robustos e efetivos de permanência podem reduzir a evasão.

 

C&C – Quais desafios estão colocados para as universidades públicas brasileiras na próxima década?

NMAF – Enormes desafios. Me vem à mente de imediato o desafio de se alinhar com a sociedade real, reduzindo sua dependência da formação profissional elitizante, que serve às elites do país. Isso significa superar um falso discurso de mérito. Outro desafio será participar decisivamente do desenvolvimento científico e tecnológico, num projeto de país com consciência planetária, responsabilidade ecossocial e justiça social. Isso nos leva ao mais fundamental desses desafios: como superar a dívida histórica da educação básica? Não é possível que nossas universidades públicas continuem formando docentes para sua própria reprodução e para reforçar o setor privado de ensino básico, perpetuando ciclos de perversão social. Defendo que as universidades públicas brasileiras deveriam fazer um mutirão urgente para mudar decisivamente esse panorama, num verdadeiro regime de colaboração com todas as instâncias e órgãos de governo e com as forças vivas da sociedade. O que aconteceria se todos e todas que entrassem nas universidades públicas tivessem que, antes de passar para os cursos imperiais e para as formações profissionais de seus projetos pessoais e familiares, tivessem primeiro que se formar como professores para contribuir com a erradicação do analfabetismo, com a grande crise do ensino médio e com a modernização dos métodos de ensino-aprendizagem na escola pública? Então teríamos o maior programa de extensão universitária da História: resgatar a educação básica desse buraco sem fundo que perpetua o Brasil como uma das sociedades mais desiguais, economicamente e injustas politicamente do mundo.

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