Muitas formas de aprendizagem e de memória

A memória é composta por formas de aprendizagem e de esquecimento

Resumo

Este texto aborda a relação fundamental entre aprendizado e memória no sistema nervoso de seres humanos e animais. A memória é descrita como a aquisição, retenção e evocação de informações adquiridas por meio de experiências, com o aprendizado sendo o processo de aquisição dessas memórias. O texto explora como o cérebro seleciona, consolida, incorpora informações adicionais e forma registros de memória a partir das experiências. Ele destaca a influência das emoções nas memórias e como várias regiões cerebrais trabalham juntas na formação e evocação de memórias. Além disso, discute a dependência de estado, memórias falsas e os diferentes tipos de memória com base em duração e função. Por fim, o texto enfatiza que o esquecimento é uma parte essencial da memória, permitindo o pensamento, generalização e criação.

O sistema nervoso governa todas as atividades dos seres humanos e não humanos. Como ele faz isso? Ele o faz através da memória. O tema deste texto, então, é a relação entre formas de aprendizado e formas de memória. Os seres fazem o que fazem porque lembram, e lembram porque alguma vez aprenderam: “A memória é a aquisição, conservação e evocação da informação”.[1] Em outras palavras:

 

Quando se diz a palavra memória, a primeira que salta à evocação não é a memória das molas, dos discos ou dos computadores; é a memória das experiências individuais dos homens e dos animais, aquela que, de alguma maneira, se armazena no cérebro. Desde um ponto de vista prático, a memória dos homens e dos animais é o armazenamento e evocação de informação adquirida através de experiências; a aquisição de memórias denomina-se aprendizado. As experiências são aqueles pontos intangíveis que chamamos presente.[2]

 

 

Chama-se aprendizado aquilo que se faz na escola, o que se faz na vida diária: aprendizado é a aquisição de informação através de experiência. Uma aula é uma experiência e aquilo que a aula ensina é o aprendizado. A consolidação dessa informação forma memórias, ou seja, o armazenamento e a evocação dessa informação. A aquisição é o registro dos sinais produzidos pelas experiências e seus pós-efeitos. A consolidação, por sua vez, é a tradução desses dados para a linguagem cerebral, ou seja, sinais bioquímicos ou elétricos, formando arquivos de memória.

 

“A memória falsa soa como um pecado terrível, mas todas as nossas memórias têm um pouco de falsidade, e todos temos memórias falsas.”

 

O primeiro mistério da memória é saber como aquilo que enxergamos – um passarinho voando, rostos bonitos, rostos feios, árvores, automóveis etc. – se transforma em sinais bioquímicos elétricos entre neurônios. Essa é a primeira mudança do que enxergamos, ouvimos ou lemos, em mensagens que guardamos no cérebro, formando arquivos de memórias.

Para entender esse processo de formação de memórias a partir de experiências, é preciso considerar quatro aspectos fundamentais:

 

1) Recebemos informações constantemente, através de nossos sentidos; mas não memorizamos todas. Por ex., depois de ver um filme, lembramos algumas cenas; pode ser, até, muitas; mas não todas. Depois de ouvir uma aula, lembramos alguns conceitos; frases inteiras, talvez; mas não todos os conceitos nem todas as frases. Há, portanto, um processo de seleção prévio à formação de memórias, que determina quais informações serão armazenadas e quais não.

2) As memórias não são gravadas na sua forma definitiva, e são muito mais sensíveis à facilitação ou inibição logo após sua aquisição que em qualquer outro período posterior. Uma memória recente é muito mais suscetível ao efeito facilitador de certas drogas ou ao efeito amnésico de um traumatismo craniano que uma memória antiga […].

3) As memórias são também muito mais sensíveis à incorporação de informação adicional nos primeiros minutos ou horas após a aquisição […].

4) As memórias não consistem em itens isolados, senão em registros (“files”) mais ou menos complexos. Não lembramos cada letra de cada palavra isoladamente; senão frases inteiras. Não lembramos cada cor ou cada odor percebido ontem como tais, senão como detalhes de “files” ou registros mais ou menos longos (o conjunto de eventos da hora do almoço; ou da tarde; ou do início da noite).[2]

 

Em suma, a formação de uma memória depois de um determinado evento ou experiência depende de quatro fatores: seleção, consolidação, incorporação de mais informação, formação de registros ou files. Os mecanismos que selecionam as informações que serão eventualmente armazenadas incluem o hipocampo e a amígdala. O segundo momento da formação de memória se denomina consolidação, podendo ser de dois tipos: a consolidação celular, que dura de 3 a 6 horas, e ocorre em vários lugares definidos do sistema nervoso central: no hipocampo, nas amígdalas, no córtex entorrinal e no córtex parietal posterior. O córtex pré-frontal participa, inicialmente, através da memória de trabalho. A segunda forma é a consolidação de sistemas que começa ao mesmo tempo que a anterior, mas dura dias, semanas ou anos, nos córtex sensoriais secundários e pré-frontais. Essa segunda forma pode mudar o conteúdo das memórias. Por isso, criamos memórias eventualmente falsas.

 

“Existem componentes emocionais em todas as memórias. Não há momentos na vida dos seres humanos, e talvez na de todos os mamíferos, que não sejam “emocionais’.”

 

A memória falsa soa como um pecado terrível, mas todas as nossas memórias têm um pouco de falsidade, e todos temos memórias falsas. Podemos lembrar da carinha alegre de um colega de escola que, mais tarde, se tornou um canalha na vida. Ficamos anos sem vê-lo e, de repente, ele aparece como um canalha. Nós continuamos lembrando dele como uma carinha alegre, embora o resto da humanidade o veja como um mau-caráter. (Figura 1)


Figura 1. Ivan Izquierdo, neurocientista argentino radicado no Brasil e um dos maiores especialistas em fisiologia da memória do mundo.
(Foto: Divulgação)

 

 

Existem componentes emocionais em todas as memórias. Não há momentos na vida dos seres humanos, e talvez na de todos os mamíferos, que não sejam “emocionais”. Em todos os momentos de nossa vida existe algum tipo de emoção. Todos estamos, em determinado momento, mais alegres ou mais tristes; todos lembramos de alguém com algum tipo de emoção: carinho, desgosto etc. Todas as memórias, quando adquiridas, associam-se a emoções e convivem com elas.

As memórias requerem a atividade de várias regiões cerebrais de maneira concatenada:

 

O cérebro é dividido em dois hemisférios: […] na frente, atrás da testa, encontram-se os lobos frontais. Atrás, sob os ossos parietais, que são as paredes do crânio, estão os lobos parietais. Mais atrás, cobertos pela região posterior da cabeça, chamada ocipúcio, encontram-se os lobos occipitais. Em ambos os lados da cabeça, embaixo das têmporas, estão os lobos temporais. Estes descansam sobre uma placa óssea, chamada tenda, por debaixo da qual, um pouco acima da nuca, está o cerebelo”.[1]

 

A amígdala basolateral é um conjunto de núcleos na ponta do lobo temporal que é ativada pelas emoções e as registra. Existem vias noradrenérgicas e dopaminérgicas que são ativadas pelo alerta emocional. Elas têm origens em estruturas primitivas do cérebro e inervam o hipocampo, a amígdala e o córtex, estruturas que fazem memórias – entre outras coisas – e o fazem através da estimulação de vários sistemas enzimáticos que promovem a síntese proteica. Então, a ativação emocional, através dessas vias, acaba estimulando a síntese proteica, que convive com parte das memórias. Isso significa que:

 

Há, não obstante, certas estruturas e vias (o hipocampo, a amígdala, e suas conexões com o hipotálamo e o tálamo) que regulam a gravação e a evocação de todas, de muitas, ou pelo menos da maioria das memórias. Este conjunto de estruturas constitui um sistema modulador que influi na decisão, pelo sistema nervoso, ante cada experiência, de que deve ser gravado e de que deve ou pode ser evocado. O hipocampo e a amígdala estão interligados entre si e recebem informação de todos os sistemas sensoriais: em parte provenientes do córtex, e, em parte, de forma inespecífica quanto à modalidade sensorial, desde a formação reticular mesencefálica. O hipocampo e a amígdala projetam ao hipotálamo, e, através deste, ao tálamo e, finalmente, ao córtex.[3] Estas estruturas e suas conexões estão, portanto, estrategicamente localizadas para modular o processamento de informações baseadas na experiência.[2]

 

A ação dessas vias, através desses processos, pode modular as memórias (amadurecer), mas, às vezes, se incorpora a elas como informação durante a consolidação. Se ocorre este último, sua reiteração na hora da evocação atua como “dica” (dependência de estado).

As memórias que se gravam melhor e com mais detalhes, durando mais tempo, são as que têm um forte componente de alerta emocional (a noradrenalina e a adrenalina fortalecem a sua consolidação). Entretanto, se o alerta foi exagerado, configurando um estresse, o efeito é o oposto: a memória pode não ser bem gravada (os glicocorticoides inibem a consolidação).

 

“Já na consolidação de sistemas e na elaboração de memórias, intervêm outros processos de reordenamento celular e de criação de novas conexões ou alteração das existentes em diversas estruturas e diferente para cada tipo de memória.”

 

E os famosos “brancos” da memória? Os “brancos”, que são amnésia transitória, ocorrem em momentos de evocação sob tensão (quando se está ansioso, por exemplo); são, também, efeito inibidor dos glicocorticoides, mas sobre a evocação. Ou seja, os corticoides liberados da suprarrenal pela ansiedade ou estresse agem sobre mecanismos noradrenérgicos envolvidos na evocação, no hipocampo e na amígdala. Os “brancos” não representam perigo, acontecem com todos.

E a dependência de estado? Dependência de estado significa que uma tarefa aprendida num determinado estado (droga, por exemplo), ou pela liberação de hormônios (quando são liberados hormônios sexuais, nos lembramos de coisas sexuais, não de coisas dolorosas, da fome, da sede etc.; quando estamos com sede, nos lembramos de beber água, senão vamos morrer, não pensamos em fazer sexo) será melhor evocada quando se estiver de novo nesse estado.[4] Uma memória consolidada num estado endógeno será melhor evocada nesse mesmo estado (neurotransmissores, hormônios).[5, 6] Podemos encontrar exemplos de dependência de estado tanto no cinema, a exemplo do filme “Luzes da Cidade”, de Chaplin, 1931, como em situações cotidianas, como fugir ou lutar, beber água ou fazer sexo. Outro aspecto interessante da memória é a adição ou subtração de informações pós-aquisição.[7, 8, 9] Isso pode criar memórias falsas. Existem argumentos a favor e contra o uso dessa propriedade de mudar o conteúdo das memórias.

 

Tipos de memória

Os tipos de memória podem ser classificados por duração e função: “De acordo com sua duração, existem a memória imediata, que dura segundos, raras vezes minutos; a memória de curta duração, que dura de uma a seis horas; e a memória de longa duração, que dura muitas horas, dias e anos”.[1]

A memória de trabalho (online) é a memória imediata: gerente geral das informações que levam de segundos a minutos para compreender. Ela registra os sinais e sua concatenação. A memória de curta duração dura minutos, poucas horas, servindo para interagir, conversar, ler, e ir a lugares próximos. Já a memória de longa duração (aquela à qual se aplica o termo consolidação) leva muitas horas, dias, e exige persistência (de semanas, meses, anos).

Na consolidação celular no hipocampo, o mecanismo consiste em potenciação de longa duração (LTP) para muitos tipos de memória (talvez para todos), e talvez na depressão de longa duração (LTD) para a extinção. Já na consolidação de sistemas e na elaboração de memórias, intervêm outros processos de reordenamento celular e de criação de novas conexões ou alteração das existentes em diversas estruturas e diferente para cada tipo de memória.

A cada idade correspondem distintos tipos de memória. Da concepção ao nascimento: são ouvidos sons de fora ou de dentro da mãe. Já de 0 a 3-5 anos, há poda de neurônios e sinapses; e de 3-4 a 10 anos: crescimento temporal, parietal; nesse período, ocorre a formação de linguagens, de mapas, de um pensamento metafórico e de abstrações. Na puberdade: desenvolvimento do lobo frontal (7-8 a 10 anos), com o planejamento, controle de impulsos, raciocínio, julgamento de valores e o incremento de pensamento abstrato. Na adolescência (13 a 20 anos), dá-se o máximo desenvolvimento dos lobos parietal e temporal (espacial, auditivo, linguagem), enfrentando novos desafios intelectuais e sociais. Na idade adulta (20 a 35-40 anos), ocorre o máximo desenvolvimento pré-frontal (20-22), com o apogeu intelectual e sensório-motor. No período da meia-idade (35-40 a 60 anos), verifica-se a perda de neurônios e de massa cerebral, que começou aos 15 ou 20. A atividade e o uso da memória compensam, ou mais do que compensam as perdas nos processos de pensamento, raciocínio e memória. Assim, podem até melhorar a atividade mental. Já na terceira idade (60 a 100 anos ou mais), ocorrem as taxas de declínio (morte neuronal, morte sináptica), que, entretanto, podem ser desaceleradas por fatores ligados ao estilo de vida: exercício físico regular, alimentação saudável, atividade intelectual, atividade afetiva. Porém, os grandes inimigos são a solidão, a depressão, as doenças neurodegenerativas e as dependências químicas.

Enfim, a memória é, também, esquecimento, pois

 

[…] não há dúvida que algum grau de esquecimento é necessário para poder ter uma vida útil. É preciso esquecer para poder pensar; para poder fazer generalizações, sem as quais é impossível desenvolver qualquer atividade cognitiva.[10] É difícil conceber a criação sem esquecimento; o esquecimento diferencia a criação da clonagem.[2]

 

Ou seja, a memória é composta por formas de aprendizagem e de esquecimento.

 


* Este artigo é uma homenagem ao neurocientista argentino radicado no Brasil, Ivan Izquierdo, um dos maiores especialistas em fisiologia da memória do mundo, falecido em 2021.

 


 

Capa: Aprendizado e memória têm relação fundamental no sistema nervoso de seres humanos e animais.
(Foto: Jon Tyson/ Unsplash.com. Reprodução)
[1] IZQUIERDO, I. Questões sobre Memória. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2004.
[2] IZQUIERDO, I. Memórias. Estudos Avançados. São Paulo, IEA / USP [online], v.3, p. 89-112, 1989. Disponível em . Acessado em: 18 outubro 2015.
[3] GREEN, J. D. The hippocampus. Physiol. Rev., v. 44, p. 561-608, 1964.
GRAY, 1982).
[4] OVERTON, D. A. Basic mechanisms of state-dependent learning. Psychopharmacology bulletin, v. 14, n. 1, p. 67–68, 1978.
[5] ZORNETZER, S.F. Neurotransmitter modulation and memory: A new neuropharmacological phrenology? In: LIPTON, M.A.; DIMASCIO, A.; KILLAM, K.F. (eds.), Psychopharmacology: A Generation of Progress. New York: Raven Press. p. 637–649, 1978.
[6] IZQUIERDO, I. Endogenous state dependence: Memory depends on the relation between the neurohumoral and hormonal states present after training and at the time of testing. In Lynch, G.; McGaugh, J. L.; Weinberger, N. M. (eds.), Neurobiology of Learning and Memory. New York: Guilford Press, p. 333-350, 1984.
[7] LOFTUS, E. F. ; YUILLE, J. C. Departures from reality in human perception and memory. In: WEINGARTNER, H. & PARKER, E. S., eds. Memory consolidation — Psychobiology of cognition. Hillsdale: Lawrence Erlbaum, 1984, p. 163-183.
[8] CHAVES, M. L. F.; IZQUIERDO, I. Previous exposure to a novel experience enhaces performance in two simple memory tests in humans. Braz. J. Med. Biol. Res., v. 19, p. 211-219, 1986.
[9] IZQUIERDO I.; CHAVES, M. L. F. The effect of a non-factual posttraining negative comment on the recall of verbal information. Journal of Psychiatric Research, 1988.
[10] BORGES, J. L. Otras inquisiciones. Buenos Aires: Emece, 1960.
Iván Izquierdo foi professor de Medicina, coordenador do Centro de Memória e coordenador de Altos Estudos do Instituto do Cérebro da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e professor emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordenou o “Centro de Memória" do Departamento de Bioquímica do Instituto de Ciências Básicas da Saúde da UFRGS e dundou o Centro de Memória do Instituto do Cérebro da PUCRS. Faleceu em 2021.

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