Fauna tem um papel fundamental na manutenção e regeneração das áreas verdes
Surpreendente, superlativa, megadiversa. Esses são alguns dos adjetivos associados à biodiversidade brasileira, que concentra mais de 13% da biota do planeta. Dos seis biomas do Brasil (Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal), dois são considerados hotspots – áreas com grande riqueza e endemismos, consideradas prioritárias para a conservação em nível mundial – o Cerrado e a Mata Atlântica. Conforme descreve o Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção (2018), compilações recentes indicam que entre os animais vertebrados há no Brasil cerca de 4.545 espécies de peixes, 1.080 de anfíbios, 773 de répteis, 1.919 de aves e 701 mamíferos. O Brasil é o país com maior número de espécies de anfíbios e primatas do mundo, o segundo em mamíferos e o terceiro em aves e répteis. Também é o sexto país em endemismos de vertebrados, sendo as taxas mais altas para os anfíbios, com 57%, e os répteis, com 37%. A Amazônia é o bioma com maior riqueza de espécies da fauna, seguido da Mata Atlântica e do Cerrado.
A primeira lista de espécies ameaçadas de extinção publicada no Brasil é de 1968. Elaborada pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), então órgão ambiental competente, dessa lista constavam 44 espécies da fauna, incluindo mamíferos, aves e répteis. Desde então, o número de espécies ameaçadas tem sido sempre crescente em cada edição dessa lista oficial, e poucas espécies deixaram a lista. O mais urbanizado e fragmentado de todos os biomas brasileiros, a Mata Atlântica, é também o bioma com maior número de espécies ameaçadas: mais da metade delas (50,5%) se encontram nesse bioma, sendo que 38,5% são endêmicas. (Gráfico 1)
Gráfico 1. Espécies ameaçadas por ano de publicação das listas, número tem sido crescente.
(Fonte: Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção, ICMBio, 2018)
Ainda conforme o levantamento do Livro Vermelho, os principais fatores de pressão às espécies continentais estão relacionados às consequências de atividades agropecuárias, seja pela fragmentação e diminuição da qualidade do habitat em áreas em que a atividade está consolidada ou pelo contínuo processo de perda de habitat onde a atividade está em expansão. O segundo maior fator de pressão é a expansão urbana, seguido de empreendimentos para geração de energia, que incluem a construção de barragens e represas para empreendimentos hidrelétricos, parques eólicos e linhas de transmissão. A poluição, seja industrial, urbana, ou agrícola, causada pelo uso de agrotóxicos, é a quarta ameaça que mais afeta as espécies continentais, atingindo principalmente os invertebrados – como caranguejos-de-rio e borboletas – mas afetando também peixes ósseos, aves, anfíbios, répteis e mamíferos. Um levantamento mais recente, o “1º Diagnóstico Brasileiro de Biodiversidade & Serviços Ecossistêmicos”, elaborado pela Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES, da sigla em inglês) mostra esses dados. (Tabela 1)
Tabela 1. Levantamento do 1º Diagnóstico Brasileiro de Biodiversidade & Serviços Ecossistêmicos, elaborado pela Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos
(Fonte: 1º Diagnóstico Brasileiro de Biodiversidade & Serviços Ecossistêmicos)
A forma como cada um desses fatores impacta a degradação dos habitats e consequentemente os animais que neles habitam varia entre os biomas. “Cada espécie tem um conjunto de adaptações para determinado habitat, com maior ou menor capacidade de se adaptar às modificações que por ventura ocorram naquele ambiente. Algumas espécies são extremamente sensíveis a qualquer mudança e essas são as primeiras a desaparecer localmente quando o ambiente se altera ou reduz de tamanho”, explica Marlúcia Martins, pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi.
E o que torna algumas espécies mais sensíveis a alterações do ambiente? Alguns animais precisam, por exemplo, de uma certa área para se reproduzir ou para se relacionar com outras espécies. Quando essa área é reduzida pode haver uma extinção em nível local. “Se esse animal eventualmente possuir distribuição geográfica ampla, essa extinção local não será tão grave para a espécie, mas se ela só existe em uma área restrita, ficará ainda mais vulnerável à extinção. Daí nossa preocupação com essas espécies sensíveis porque sem seu habitat local, elas serão extintas de uma vez por todas”, alerta Marlúcia Martins.
Uma chance a mais
A primeira lei que busca proteger a fauna silvestre no Brasil é a Lei de Proteção a Fauna (Lei 5197, de 03 de janeiro de 1967). Em 1992, o país tornou-se um dos signatários da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), promulgada pelo Decreto nº 2.519 em 1998. Entre os compromissos assumidos pelos países membros da CDB destaca-se o desenvolvimento de estratégias, políticas, planos e programas nacionais de biodiversidade. Pouco tempo depois, no ano 2000, o país instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC, Lei nº 9.985). As unidades de conservação são espaços territoriais com limites definidos e com características naturais relevantes, legalmente instituídas pelo Poder Público, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias de proteção. Elas estão organizadas em dois grupos: Unidades de Proteção Integral, com regras e normas bastante restritivas, como as que valem nos parques nacionais. No outro grupo estão as Unidades de Uso Sustentável que conciliam a conservação da natureza com o uso sustentável de parte dos recursos naturais. É neste grupo que estão as Áreas de Proteção Ambiental (APAs).
“As mudanças climáticas se juntaram aos fatores que alteram o equilíbrio dos ecossistemas e, consequentemente, a população das espécies da fauna em todos dos biomas brasileiros.”
Entre os principais objetivos do SNUC estão justamente contribuir para a conservação da variedade de espécies biológicas e dos recursos genéticos no território nacional e nas águas jurisdicionais e proteger as espécies ameaçadas de extinção. “O SNUC é a nossa melhor estratégia de conservação e proteção de todos os biomas brasileiros” pontua Marlúcia Martins. “Combinado com o Código Florestal, que legisla a organização das propriedades rurais para garantir a proteção de nascentes, margens dos rios, áreas de alta declividade, temos os instrumentos legais para proteger não só a biodiversidade, mas também garantir água potável para todos, menor ocorrência de desastres como inundações, deslizamentos e a produção de alimentos de qualidade. Se bem aplicado e gerido, e com apoio da população, esse modelo pode proporcionar melhor qualidade de vida para todos”, destacou a pesquisadora do Museu Goeldi.
Ela também ressalta a importância da educação ambiental e de campanhas que ajudem a explicar para o público leigo – especialmente para as pessoas que vivem em ambientes urbanos – sobre o impacto que a perda de uma espécie poderia causar no planeta. “A vantagem dessas campanhas é que as ações direcionadas ao salvamento da onça-pintada, mico-leão-dourado ou araras-azuis, por exemplo, em geral, levam em consideração o ambiente como um todo, e isso acaba melhorando as condições de outras espécies e não só da que está ameaçada”, explicou Martins. Nos biomas tudo está conectado. (Figura 1)
Figura 1. Campanhas de preservação beneficiam o habitat como um todo e não apenas a espécie alvo da campanha.
(Fonte: Leonardo Ramos. Reprodução)
Um mundo interligado
Não há fauna sem habitat. Conforme explica Marlúcia Martins, muitas vezes, a degradação e a redução da área do habitat vêm com o seu isolamento, o que também impacta na reprodução das espécies, colaborando para sua extinção. “Todas as áreas verdes – seja uma floresta, seja um fragmento de mata em uma área de cultivo, até parques urbanos – podem funcionar como corredores para indivíduos de vários biomas, viabilizando sua comunicação com indivíduos da mesma espécie, de outras espécies, assim como o acesso ao alimento e à água. Esses corredores verdes são muito importantes na manutenção da fauna”, aponta.
Da mesma forma que os animais dependem do habitat para se alimentar, se reproduzir, para viver, a fauna tem um papel fundamental na manutenção regeneração das áreas verdes. Para entender essa função precisamos entender como as plantas se reproduzem e de como esse processo é dependente da polinização feita por animais. “A polinização é a garantia de que as plantas vão se reproduzir, vão gerar flores, frutos e dar origem a novas plantas”, lembra a pesquisadora do Museu Goeldi. Abelhas, besouros, borboletas e muitos desempenham essa função e, com a degradação de seus habitats, esse processo entra em risco. Isso sem falar nos impactos na produção de alimentos.
“A perda de qualquer espécie é grave porque em cada bioma se estabelecem interconexões entre todos os seres que ali habitam, seja como alimento, como polinizador.”
Outro exemplo das interações entre fauna e flora é a dispersão das sementes pelos animais dispersores como pássaros, insetos, macacos e roedores. Ainda segundo Marlúcia Martins, um papel importantíssimo, mas pouco conhecido, é o de regulação do ecossistema. “Algumas plantas competem entre si por espaço, por luz, podendo sufocar outros indivíduos. Quando alguns animais herbívoros se alimentam dessas plantas, eles equilibram o sistema como um todo”, explicou.
Um mundo em desequilíbrio
Mais recentemente, as mudanças climáticas se juntaram aos fatores que alteram o equilíbrio dos ecossistemas e, consequentemente, a população das espécies da fauna em todos dos biomas brasileiros. O boto-cor-de-rosa é apenas um dos tristes exemplos recentes. Símbolo da biodiversidade da Amazônia, ele já está na lista de mamíferos ameaçados de extinção por conta de modificações ambientais provocadas por barramentos e a prática de pesca insustentável. Desde o fim do mês de setembro, pelo menos 150 botos-cor-de-rosa e tucuxis (outro golfinho da Amazônia) morreram por conta das altas temperaturas e da estiagem considerada a mais severa na região nos últimos 100 anos na Região.
Conforme explica a pesquisadora do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, Miriam Marmontel, a região do médio Rio Solimões, que juntamente com o Rio Negro formam o Rio Amazonas, com foco no Lago Tefé, experimentou o primeiro caso de UME (unusual mortality event, ou evento de mortalidade incomum) de botos amazônicos, atrelado às altas temperaturas registradas, em combinação com um evento de seca extrema, péssima qualidade do ar e extraordinariamente baixa umidade do ar. “Ainda não descartamos a possibilidade de uma causa multifatorial, mas não há dúvida de que o calor intenso desempenhou um papel fundamental na crise”, disse.
“Atualmente estamos vivenciando um processo de extinção maciça, ou seja, a quantidade de espécies extintas nos últimos 100 anos no planeta por conta das atividades humanas já é maior do que todos os eventos de extinção que aconteceram em eras geológicas passadas.”
Os botos evoluíram na região amazônica, por isso se adaptaram ao subir e descer das águas, conseguem adentrar a mata alagada e caçar peixes em seu interior, explica Miriam Marmontel. “Toda a sua anatomia é adaptada para esse ambiente, permitindo uma flexibilidade ímpar para contornar os troncos das árvores alagadas. Eles são do mundo aquático, conseguem lidar com cheias extremas – mas não com secas extremas ou extremos de calor”, explica. Ainda segundo a pesquisadora, os cetáceos produzem calor e mantém temperatura corporal constante, em torno de 37 oC. Eles também desenvolveram outros mecanismos para livrar-se do calor ou para poupá-lo em um ambiente onde a perda de calor é bem maior do que no ambiente terrestre. Mas a mesma gordura que lhes proporciona proteção térmica, hidrodinâmica, controle da flutuação e estoque de energia, pode se tornar uma armadilha nos trópicos porque os botos não têm glândulas sudoríparas. Se a temperatura de um animal aumenta em 10 oC, sua taxa metabólica provavelmente dobrará e prejudicará todo o equilíbrio bioquímico, levando o organismo a um colapso. “A probabilidade de que eventos como este voltem a acontecer é muito alta já a partir do próximo ano, quando se estima que o efeito do El Niño que estamos vivenciando agora seja ainda mais forte. Como vem alertando os meteorologistas, eventos de secas e cheias extremas vão ocorrer com mais intensidade e frequência nas próximas décadas, em função das mudanças climáticas”, alertou.
O valor da vida
Não há como recuperar um animal extinto da natureza, a extinção é irreversível. No Brasil, dez espécies foram consideradas extintas, algumas recentemente. Uma delas é o limpa-folha-do-nordeste, cuja ocorrência era restrita a apenas três localidades nos estados do Alagoas e Pernambuco. Na Lista de 2014, este pequeno pássaro endêmico e raro foi classificado como criticamente em perigo, mas em 2018 foi considerado extinto, ou seja, quando não restam quaisquer dúvidas de que o último indivíduo tenha morrido. “A estrutura dos remanescentes de mata onde o limpa-folha vivia foi tão alterada que não havia mais bromélias, das quais a espécie parecia ser dependente”, segundo a Lista Vermelha. Uma planta, uma espécie, uma relação delicada e insubstituível. (Figura 2)
Figura 2. Limpa-Folha-do-Nordeste. Espécie não resistiu à perda de habitat no Nordeste.
(Fonte: https://ebird.org/species/alfgle1?siteLanguage=es. Reprodução)
A perda de qualquer espécie é grave porque em cada bioma se estabelecem interconexões entre todos os seres que ali habitam, seja como alimento, como polinizador. A redução das populações ou a extinção colocam em risco outras espécies, seja da fauna, seja da flora, colocando essa cadeia de elos e ligações em desequilíbrio. Conforme explica Marlúcia Martins, em cada extinção há o risco do chamado efeito em cascata, de extinções subsequentes. Atualmente estamos vivenciando um processo de extinção maciça, ou seja, a quantidade de espécies extintas nos últimos 100 anos no planeta por conta das atividades humanas já é maior do que todos os eventos de extinção que aconteceram em eras geológicas passadas. “Isso é fruto da ação humana e será agravado pelo aquecimento global que vai atingir de maneira indiscriminada um conjunto enorme de espécies”, afirma a pesquisadora. Entender a importância de preservar esse equilíbrio do qual depende a sobrevivência da fauna em todos os biomas é crucial, assim como compreender que a extinção é um processo definitivo. “Trata-se de um compromisso ético com a vida: do mesmo jeito que nós existimos, outras espécies têm o mesmo direito de existir”, finaliza.
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