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Crise hídrica: a resiliência dos biomas brasileiros diante das mudanças climáticas

Para além dos ciclos naturais, a influência humana agrava o problema da crise hídrica no país

 

A crise hídrica de 2023 no Amazonas atinge proporções históricas e sem precedentes, impactando mais de 600 mil habitantes, de acordo com informações divulgadas pela Defesa Civil. Enquanto a Amazônia enfrenta essa severa escassez de água, a região Sul do Brasil é assolada por precipitações intensas. Esses eventos são, em parte, atribuídos ao fenômeno climático El Niño, que provoca condições de seca no Norte e chuvas abundantes no Sul do país. Até o momento neste ano, um total de 5,8 milhões de pessoas se viram afetadas por chuvas intensas e prolongadas secas, segundo dados reunidos pela Confederação Nacional dos Municípios.

Já em 2021 o Brasil presenciava o que parecia ser sua pior crise hídrica, com precipitações mais baixas dos últimos 91 anos. Risco de contaminação com o uso de volume morto dos reservatórios, aumento tarifário em torno de 130% ocasionado pelo uso de combustíveis fósseis por usinas termelétricas, prejuízos na agricultura que geram inflação no preço final de alimentos… Esses são apenas alguns dos danos socioeconômicos presenciados pela população brasileira. “A depender da magnitude e frequência dos eventos extremos e de suas consequências nas alterações dos ecossistemas, podemos chegar em um ponto de não retorno, onde não há mais condições de regeneração. Isso é realmente alarmante”, declara Vânia Rosa Pereira, pesquisadora do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

A crise hídrica no país é o resultado direto da degradação dos biomas brasileiros, cujas recorrentes secas e escassez têm papel crucial no ciclo hidrológico e na disponibilidade de água. O efeito cascata é literal: com a redução das chuvas ao permitir o avanço do desmatamento nos biomas brasileiros, a produção econômica despenca, empobrece o país e agrava a insegurança alimentar da população, ocasionando em uma necessidade emergencial de ações integradas de políticas ambientais e humanitárias. (Figura 1)

Figura 1. A crise hídrica no país é o resultado direto da degradação dos biomas brasileiros, cujas recorrentes secas e escassez têm papel crucial no ciclo hidrológico e na disponibilidade de água.
(Foto: Sabesp. Divulgação)

 

Como as mudanças climáticas estão alterando os recursos hídricos no país?

O número de desastres naturais causados pelas mudanças climáticas aumentou cinco vezes em 50 anos e matou mais de duas milhões de pessoas, segundo a Organização Meteorológica Mundial (OMM), agência ligada às Nações Unidas (ONU). As mudanças climáticas têm provocado alterações nos padrões de precipitação, nas temperaturas, nos níveis e na qualidade da água em áreas costeiras, na fenologia das plantas, no funcionamento dos ecossistemas e, além disso, têm afetado a distribuição da biodiversidade, inclusive de vetores transmissores de doenças. Tais mudanças interagem com diversos fatores de pressão sociais e ambientais, cujos potenciais impactos se amplificam cada vez mais. “Já é sabido que os eventos climáticos têm se comportado de maneira mais intensa do que usual. E embora as previsões estejam disponíveis com antecedência, associadas a um conhecimento científico consolidado mostrando que os eventos meteorológicos, como as chuvas e as estiagens têm sido mais intensas do que usual, o que tem faltado são medidas preventivas que nos capacitem a um melhor enfrentamento dessas condições extremas”, declara Pedro Luiz Côrtes, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP), pesquisador em políticas públicas de combate às mudanças climáticas e revisor de relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU. “Discussões que deveriam ser pautadas com urgência, como, por exemplo, o que fazer diante da emergência climática, acabam perdendo espaço para outros temas que parecem preocupar mais os políticos do que essas situações extremas que temos vivido”.

Impactos nos biomas brasileiros

Segundo maior bioma do país, o Cerrado enfrenta uma devastação desenfreada e atingiu o topo no ranking do desmatamento. Somente nos últimos 12 meses, mais de 6,3 mil km2 foram derrubados, de acordo com o Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter). Em 50 anos, metade de sua vegetação original já não existe mais. Irregularidades na concessão de licenças, falta de fiscalização e o fato de possuir apenas 10% de sua área protegida deixa a região vulnerável ao avanço do desmatamento em propriedades privadas, sendo o agronegócio seu principal causador. O Cerrado é a savana com maior biodiversidade em fauna e flora do mundo e é o berço de 8 entre as 12 principais bacias hidrográficas do Brasil. (Figura 2)


Figura 2. Segundo maior bioma do país, o Cerrado enfrenta uma devastação desenfreada e atingiu o topo no ranking do desmatamento.
(Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil. Reprodução)

 

A atual seca no bioma Amazônico deixa evidente sua situação de fragilidade para lidar com as adversidades climáticas. Além disso, a contaminação da água por agrotóxicos, pulverização aérea, redução da água, deslocamento forçado de povos tradicionais, milícias rurais, entre outros fatores, enfraquecem comunidades inteiras e colocam em risco a questão hídrica e energética com impacto humano e urbano. “A Amazônia vive o paradoxo de que, embora conhecida por sua alta disponibilidade hídrica, atualmente possui baixíssimas condições de segurança hídrica. É o bioma que registra déficits marcantes de instrumentos básicos de gestão dos recursos hídricos, saneamento básico, infraestrutura, governança e articulação local em relação aos recursos hídricos”, aponta Vânia Pereira.

Na Mata Atlântica, o bioma ocupado por mais de 70% da população brasileira atualmente possui apenas 12,4% da cobertura de sua vegetação original, resultado do desmatamento que acentua o quadro de eventos climáticos, como o temporal devastador ocorrido no litoral paulista que matou 65 pessoas em fevereiro deste ano.

 

“A depender da magnitude e frequência dos eventos extremos e de suas consequências nas alterações dos ecossistemas, podemos chegar a um ponto de não retorno, onde não há mais condições de regeneração.”

 

Já a Caatinga possui um histórico de déficit hídrico devido a longas estiagens sazonais, tornando seus rios intermitentes. No entanto, o problema é agravado pela retirada significativa de água para a agricultura irrigada e áreas urbanas. Mesmo com instrumentos de gestão existentes, as crises hídricas persistem. Além disso, a Caatinga tem as piores condições de saneamento básico do país. As projeções para o futuro indicam redução nas vazões e aumento de secas extremas, tornando a região ainda mais vulnerável em termos de quantidade e qualidade de água. Fatores socioeconômicos, como a falta de infraestrutura e saneamento, pobreza e agricultura de sequeiro são as principais vulnerabilidades diante das mudanças climáticas nesse bioma.

No Pantanal, a falta de infraestrutura e saneamento básico, juntamente com um fraco monitoramento da qualidade da água, representa uma séria preocupação para a segurança hídrica. Embora haja uma grande quantidade de água disponível atualmente, a capacidade de resposta a eventos de seca extrema é limitada devido à frágil governança regional. Projeções climáticas futuras apontam para um aumento de secas excepcionais, o que pode resultar em mudanças significativas nos períodos de inundação. Isso tornaria a região ainda mais suscetível à poluição difusa, contaminação da água subterrânea e perda da biodiversidade.

Já nos Pampas, atualmente caracterizado por uma alta disponibilidade de água e um bom acesso a serviços de saneamento, o aumento da demanda de água, principalmente para a produção de arroz irrigado, gera o potencial aumento da poluição e contaminação do lençol freático. “Os conflitos pelo uso múltiplo da água e perdas de biodiversidade podem ser amplificadas”, alerta Vânia Pereira.

Ações para mitigar os efeitos

Tradicionalmente, o Brasil tem adotado um modelo de gerenciamento de crises para enfrentar situações de seca. Isso implica na tomada de medidas reativas e emergenciais somente após a ocorrência da escassez de água, concentrando-se na mitigação dos efeitos da seca. No entanto, esse enfoque não contribui para fortalecer a resiliência do sistema diante de crises futuras. “Não temos que esperar o que quer que aconteça durante o pico do evento climático para agir. É importante que haja o monitoramento contínuo de condições que podem levar a uma redução do número de reservatórios, por exemplo, sempre considerando algo contínuo, que não pode parar”, analisa José Antonio Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN). O CEMADEN realiza monitoramento de secas e risco de fogo nas principais bacias do país, seja para avaliação de disponibilidade para consumo humano ou para geração de energia. Este monitoramento começou em 2013 devido à crise energética em São Paulo e se estendeu para outras bacias estratégicas.

 

“Embora as previsões estejam disponíveis com antecedência, associadas a um conhecimento científico consolidado mostrando que os eventos meteorológicos, como as chuvas e as estiagens, têm sido mais intensas do que usual, o que tem faltado são medidas preventivas que nos capacitem a um melhor enfrentamento dessas condições extremas.”

 

O Monitor de Secas do Brasil, gerenciado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e o sistema de monitoramento dos efeitos da seca realizado pelo CEMADEN são ferramentas que produzem a classificação da intensidade da seca como resultado de suas atividades. Em 2022 foi lançada a segunda edição do Atlas Águas, um estudo que visa identificar vulnerabilidades no abastecimento de água nas áreas urbanas e recomendar medidas de gestão para garantir a segurança hídrica. O estudo destacou a necessidade de investimento de R$ 110 bilhões em infraestruturas de produção e distribuição de água até 2035, sendo 76% deste investimento necessário para as regiões Sudeste e Nordeste devido à alta densidade populacional nesses locais.

Atualmente, a Defesa Civil de estados e municípios emitem alertas à população presente em áreas onde a previsão meteorológica apresenta iminente risco de evento climático. Contudo, esses alertas ainda possuem baixa adesão e efetividade, já que é necessário o cadastro voluntariamente pela pessoa interessada. “Não somente os alertas devem ocorrer de forma mandatória, mas há medidas que podem ser tomadas localmente pelos governos, como organização de rotas de fuga, indicando onde buscar abrigo e outras de cunho estrutural, onde a população pode ser realocada das áreas de risco para ocupar áreas com condições dignas de habitação, pois, as pessoas não vão para a área de risco porque elas querem, elas vão por falta de opção”, analisa Pedro Côrtes.

Paralelamente, é fundamental investir em uma cultura de conscientização, resultando em uma sociedade que seja minimamente sustentável, mais preparada e engajada na preservação dos recursos hídricos, com uma maior visão de longo prazo. “É impossível conter os eventos que vão acontecer, mas devemos minimizar, sobretudo, a perda de vidas humanas”, pontua José Antonio Marengo.

Ao adotar medidas que promovem uma gestão preventiva ao invés de reativa, nos aproximamos do conceito da segurança hídrica, pontuado pelo estudo Vulnerabilidades da segurança hídrica no Brasil frente às mudanças climáticas, de Vânia Pereira em colaboração com Daniel Andrés Rodriguez, do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “O termo é de imensa relevância no contexto atual, cujo planejamento precisa considerar a incerteza e a não estacionaridade do clima, buscando um olhar para além das questões ligadas à segurança energética, alimentar e socioambiental”, enfatiza. Essa abordagem visa assegurar o acesso sustentável à água de qualidade, atendendo às necessidades humanas, econômicas, ambientais e sociais, enfrentando os desafios presentes e futuros relacionados à água.

 

“É importante que haja o monitoramento contínuo de condições que podem levar a uma redução do número de reservatórios, sempre considerando algo contínuo, que não pode parar.”

 

A crise hídrica que o Brasil enfrenta, agravada pelas mudanças climáticas, demanda uma resposta proativa e emergencial por parte da nação. Para encarar esse desafio, é imperativo promover uma mudança de paradigma, transicionando de uma abordagem reativa para uma estratégia de segurança hídrica preventiva. Este novo enfoque envolve a alocação de recursos em monitoramento ininterrupto, infraestrutura hídrica, sistemas de alerta eficazes e, sobretudo, em fomentar uma cultura de conscientização e preservação dos recursos hídricos. “Temos que atuar em uma nova dinâmica que precisa ser corretamente assimilada pelos gestores públicos e a população precisa ser permanentemente informada para que ela possa cobrar isso dos gestores e estar ao menos mais precavida. Talvez nós não possamos evitar a perda econômica e a perda de bens materiais, mas é fundamental que consigamos salvar vidas”, declara Pedro Côrtes.

 

Capa. A atual seca na Amazônia deixa evidente sua situação de fragilidade para lidar com as adversidades climáticas.
(Foto: Defesa Civil AM. Reprodução)
Priscylla Almeida

Priscylla Almeida

Priscylla Almeida é jornalista e produtora de conteúdo para áreas de saúde e ciência, marketing e publicidade. Apaixonada por filmes, gatinhos e pela rotina dinâmica que a comunicação traz: o contato com gente, a curiosidade de assuntos diversos, a troca.
Priscylla Almeida é jornalista e produtora de conteúdo para áreas de saúde e ciência, marketing e publicidade. Apaixonada por filmes, gatinhos e pela rotina dinâmica que a comunicação traz: o contato com gente, a curiosidade de assuntos diversos, a troca.
João F. F. Nogueira é desenvolvedor de software, professor e pesquisador. Transita por diversos temas, das ciências humanas às exatas, sempre estudando algo novo. Adora jogar videogame quando não está viajando.
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