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Farmácia natural brasileira: biomas como berços para a criação de medicamentos

Plantas, animais e microrganismos guardam “receitas” para a saúde e o bem-estar, mas desafios põem em cheque o potencial desses recursos

 

A Política e Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, criada em 2006 e detalhada em 2008 pelo Ministério da Saúde (MS), foi implementada para regulamentar, estimular e promover o acesso seguro e sustentável a uma prática que já era comum no país há séculos: o uso de recursos naturais como medicamentos. Antes mesmo da colonização, em meados de 1500, a rica biodiversidade contida em cada bioma brasileiro e o conhecimento milenar dos povos nativos já se uniam e se transformavam em ferramentas poderosas para promover a cura, o bem-estar e a saúde da comunidade de forma natural. Ao longo dos anos, os saberes e práticas tradicionais passaram por diferentes processos de lapidação e foram combinados com conceitos trazidos pelas comunidades europeias e africanas que chegaram no país, criando uma medicina natural fértil e essencialmente brasileira.

O passar do tempo não diminuiu o interesse pelas propriedades medicinais de plantas, microrganismos e animais. Em paralelo ao desenvolvimento de novas técnicas e tecnologias para explorar o potencial da natureza, diversos remédios importantes com bases naturais foram descobertos e aprimorados. Um marco importante no Brasil se deu em 2009, quando, com o intuito de incentivar e orientar pesquisas para a elaboração de fitoterápicos seguros e eficazes, o MS lançou a Relação Nacional de Plantas Medicinais de Interesse ao Sistema Único de Saúde (ReniSUS). A proposta do projeto era direcionar novos estudos que resultassem em produtos viáveis para distribuição via Sistema Único de Saúde (SUS), favorecendo o acesso a medicamentos de qualidade para as mais diversas condições. Nomes conhecidos como caju, pitanga, guaco e maracujá são algumas das plantas brasileiras que integram essa relação e vêm sendo estudadas para substituir ou potencializar os efeitos de remédios sintéticos. (Figura 1)


Figura 1. O caju, assim como a pitanga, o guaco e o maracujá, são algumas das plantas brasileiras que integram a Relação Nacional de Plantas Medicinais de Interesse ao Sistema Único de Saúde
(Foto: Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Reprodução)

 

Letícia Lotufo, professora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB/USP) e membro da coordenação do Programa de Pesquisas em Caracterização, Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade do Estado de São Paulo (BIOTA/FAPESP), destaca que, além dos chás e extratos artesanais feitos há séculos a partir dessas plantas, hoje, alguns dos medicamentos industrializados mais difundidos, como a aspirina e a histatina, também têm seus princípios ativos baseados em recursos naturais – especialmente microorganismos e plantas. O Caderno de Atenção Básica número 31 do MS dá suporte às explicações da pesquisadora, revelando que cerca de 25% de todos os medicamentos modernos são derivados de plantas medicinais, com um enfoque na aplicação de tecnologias modernas ao conhecimento tradicional. O documento também destaca que o mercado de medicamentos naturais já é responsável por movimentar bilhões de dólares anualmente no mundo todo e afirma que, somente no Brasil, em 2012, ele promoveu a rotação de até US$ 550 milhões.

 

Desafios

Em contrapartida à grande diversidade biológica abrigada em seu território, aos conhecimentos tradicionais presentes na genética do povo, às políticas de incentivo e ao tamanho das demandas do mercado, a produção sistematizada de medicamentos naturais baseados em nativos brasileiros ainda parece enfrentar desafios e lacunas significativas. “Produzimos muitas pesquisas, mas é uma cadeia quebrada”, explica Maria Beatriz Bonacelli, professora do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas (DPCT/UNICAMP). “Exportamos muito os insumos, as matérias-primas cultivadas aqui, mas elas são processadas, beneficiadas e testadas no exterior para, só então, voltarem para cá como importação”, acrescenta a pesquisadora.

 

“A produção de um medicamento nunca pode ser baseada no extrativismo de um produto natural, não podemos coletar toneladas de uma planta ou de um animal para criar um medicamento.”

 

O processo indicado por Bonacelli pode dificultar e, até mesmo, encarecer o acesso aos medicamentos naturais pela população brasileira. No entanto, esse foi somente um dos desafios identificados pela equipe da pesquisadora durante o projeto transdisciplinar “Prospecção e Priorização Técnico-produtivas para a Integração da Cadeia de Fitoterápicos Amazônicos”, financiado pela Fapesp e Fapeam, que está em execução desde 2021 com o objetivo de contribuir para um maior protagonismo da Região Amazônica no avanço técnico-científico e na produção de fitoterápicos. Nadja Lepsch-Cunha, que também coordena o estudo e atua no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), cita que há a necessidade de ampliar o investimento em pesquisas de base, intensificar a aplicação das regulamentações e estimular as trocas entre os mais diversos níveis da cadeia produtiva a fim de tornar a exploração dos biomas brasileiros mais eficaz para a criação de remédios seguros, eficientes e sustentáveis.

Letícia Lotufo destaca que a preservação da natureza também é um desafio a ser levado em conta. “Temos que cuidar da natureza. Lá, estão guardados muitos produtos naturais, alguns que nem conhecemos ainda e que podem inspirar o desenvolvimento de medicamentos”, explica. “Sendo assim, a produção de um medicamento nunca pode ser baseada no extrativismo de um produto natural, não podemos coletar toneladas de uma planta ou de um animal, para criar um medicamento. Esse desenvolvimento só faz sentido se a gente basear o processo em uma fonte renovável”, completa.

Como possível alternativa para aprimorar o processo de desenvolvimento desses medicamentos de forma eficiente e sustentável, Jéssica Aline Silva Soares, farmacêutica clínica e especialista em Saúde, Bem-Estar e Fitoterapia, defende que a reincorporação dos saberes das comunidades tradicionais de forma não-hierarquizada é uma etapa essencial para avançar nas pesquisas fitoterápicas nos biomas brasileiros. “O conhecimento tradicional, hoje, entra em uma perspectiva inferiorizada em relação ao conhecimento científico por conta de um processo em que a Ciência foi, por muito tempo, usada como ferramenta de poder”, reflete a pesquisadora. “É urgente pensar em caminhos para equilibrar a produção sustentável de fitoterápicos com a proteção das comunidades tradicionais, colocando essas pessoas como protagonistas, permitindo que entrem na academia, e tudo isso por uma perspectiva não-exploratória. Assim, poderemos fortalecer as cadeias produtivas e usar esses recursos de forma responsável”, acrescenta. (Figura 2)


Figura 2.  É fundamental reconhecer e valorizar os conhecimentos tradicionais sobre os recursos naturais da biodiversidade brasileira.
(Foto: Fiocruz. Reprodução)

 

 

Iniciativas

O projeto “Encontro de Saberes”, adotado por diversas universidades brasileiras desde 2010 para favorecer a integração de conhecimentos para além da academia nas pesquisas acadêmicas, se destaca como uma iniciativa positiva para trilhar o caminho mencionado por Soares. A proposta permite que mestres e mestras tradicionais compartilhem ensinamentos na posição de docentes no ensino superior, trazendo à tona saberes extra-acadêmicos que podem embasar novas pesquisas ou abordagens sobre diversos campos – incluindo pesquisas sobre medicamentos naturais.

Além de ampliar o compartilhamento de informações e o contato entre diferentes instâncias conhecedoras dos biomas brasileiros, unir e sistematizar esses conhecimentos, bem como relacioná-los com as demandas da população, também podem ser passos essenciais para aproveitar o potencial dos biomas brasileiros. Com essa proposta, o site “Fitoterapia Brasil” funciona como um portal nacional que visa sistematizar e garantir acesso a saberes antes dispersos em documentos físicos e digitais. O portal, que pretende auxiliar o cumprimento das metas da Política e Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, reúne dados sobre diferentes espécies, grupos de pesquisa, eventos e legislações que tratam de plantas medicinais, além de abas sobre biodiversidade, educação e arte, por exemplo.

 

“É urgente pensar em caminhos para equilibrar a produção sustentável de fitoterápicos com a proteção das comunidades tradicionais, colocando essas pessoas como protagonistas.”

 

Por parte do governo, as Farmácias Vivas são outra maneira de aproximar, compartilhar e compilar dados sobre a relação da comunidade com os medicamentos naturais. Nesses locais, plantas medicinais nativas e exóticas são cultivadas, prescritas e distribuídas via SUS. “No Brasil, levantamos mais de 180 Farmácias Vivas e cada uma tem um modelo muito próprio, embora todas estejam ligadas à Secretaria de Saúde do Município”, lembra Maria Beatriz Bonacelli. Nadja Lepsch-Cunha completa que a atuação desse sistema ocorre de forma diferente em cada município. “Vimos Farmácias Vivas formadas por uma só pessoa no interior do Ceará, onde o governador apoia e a pessoa anda pelo estado inteiro capacitando pessoas para prescrever fitoterápicos, no caso, basicamente, chás”, explica. “Em outros locais, já se produz extratos, cápsulas… Por exemplo, há uma organização bacana em Jardinópolis, onde montaram uma Farmácia Viva que recebe um orçamento regular da prefeitura e tem oito médicos voluntários”, completa.

 

Um alerta

Apesar de iniciativas como essas contribuírem para a expansão das pesquisas, do uso e do conhecimento sobre plantas medicinais, especialmente aquelas provenientes dos biomas brasileiros, Jéssica Aline Silva Soares enfatiza a necessidade de uma maior integração com a sociedade no contexto brasileiro para aproveitar plenamente o potencial dos recursos disponíveis em nossos biomas. “Considerando a riqueza da biodiversidade que temos à nossa disposição e falando como fitoterapeuta, vejo um cenário promissor para os próximos anos, graças aos avanços nas políticas públicas e pesquisas relacionadas ao uso desses recursos, por meio das quais podemos fortalecer e cumprir as políticas públicas”, afirma. “No entanto, se não refletirmos sobre como incorporar essas pesquisas ao contexto do nosso país, acredito que a lacuna em relação às necessidades sociais ainda representará um obstáculo para o desenvolvimento dessa área”, conclui.

 

“Considerando a riqueza da biodiversidade que temos à nossa disposição e falando como fitoterapeuta, vejo um cenário promissor para os próximos anos, graças aos avanços nas políticas públicas e pesquisas relacionadas ao uso desses recurso.”

 

Capa. Biomas brasileiros guardam ingredientes valiosos para a saúde e o bem-estar
(Foto: ComCiência/ Unicamp. Reprodução)
Bianca Bosso

Bianca Bosso

Bianca Bosso é especialista em Jornalismo Científico e Bacharela em Ciências Biológicas (Unicamp). Iniciou sua trajetória na Divulgação Científica no ano de 2018. Já desenvolveu pautas para revistas como Ciência & Cultura, ComCiência e Ciência Hoje, além de sites como Agência Bori, Jornal da Unicamp, Portal Campinas Inovadora e blog Ciência na Rua.
Bianca Bosso é especialista em Jornalismo Científico e Bacharela em Ciências Biológicas (Unicamp). Iniciou sua trajetória na Divulgação Científica no ano de 2018. Já desenvolveu pautas para revistas como Ciência & Cultura, ComCiência e Ciência Hoje, além de sites como Agência Bori, Jornal da Unicamp, Portal Campinas Inovadora e blog Ciência na Rua.
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