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Da história à prática: os legados da Ciência & Cultura

Por meio da divulgação, a revista constrói as bases para uma cultura científica no país

 

 Há 75 anos, a Ciência & Cultura tem servido como pedra angular para a divulgação científica no Brasil. Ela transcende o papel de uma revista acadêmica tradicional, atuando como uma ponte entre as fronteiras da descoberta científica e a sociedade brasileira. A publicação também tem servido como um espaço para reflexão, nos diversos períodos da história do país, sobre questões de relevância nos cenários cultural, social e político nacional — refletindo as atividades desempenhadas pela comunidade científica e pela própria Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Como o nome já enuncia, ciência e cultura se entrelaçam nas palavras aqui registradas. Ao longo das décadas, a Ciência & Cultura vem construindo múltiplos legados — alguns dos quais serão abordados neste artigo — seguindo os anseios de José Reis, seu idealizador, de “aproximação dos cientistas entre si, e destes com o público”.[1] (Figura 1)


Figura 1. José Reis, idealizador da revista Ciência & Cultura
(Foto: Acervo COC. Reprodução)

 

A Ciência & Cultura reúne características essenciais de uma publicação de divulgação científica: formato e linguagem acessíveis, multiplicidade de temas abordados e diversidade de vozes. Essas qualidades somadas possibilitam a revista desempenhar um papel importante para a penetração da ciência na cultura do país e trazer a cultura para a ciência nacional. Em um exercício de síntese, podemos listar ao menos três formas que a revista tem cumprido seu papel nesse sentido. O primeiro e talvez mais notório legado da revista, em razão dos seus 75 anos de existência, seja o caráter de registro histórico da ciência nacional. O segundo é atuar como plataforma para que cientistas brasileiros exercitem a linguagem da divulgação, transformando questões muitas vezes complexas dos seus campos de estudo em informação compreensível para um público mais amplo. Por fim, nesse jogo de conhecimento e comunicação, a Ciência & Cultura atua como um elemento transformador da própria ciência, bem como da cultura nacional, promovendo a chamada cultura científica.

Do ponto de vista histórico, o acervo da revista configura um passeio por décadas de contribuições de pesquisadores brasileiros para a construção do conhecimento, amplamente, a partir da ciência por eles praticada. A publicação tem registrado ao longo dos anos os pensamentos de grandes nomes da comunidade científica nacional, além do trabalho de jornalistas que se especializaram e se dedicaram a divulgar ciência. Indo além, as suas páginas servem também como registro dos movimentos da comunidade científica — e da própria SBPC, como instituição — para a consolidação de uma política científica, a defesa da democracia e o desenvolvimento social no Brasil. (Figura 2)


Figura 2. Acervo da revista é um passeio por décadas de contribuições de pesquisadores brasileiros para a construção do conhecimento.
(Foto: Centro de Memória SBPC. Reprodução)

 

São centenas de edições que, hoje, podem ser navegadas on-line. Desde 2022 a revista ganhou um novo formato, digital, se renovando e seguindo a tendência de consumo de informação científica da população brasileira por meio da internet.[2] Os esforços de digitalização do conteúdo da revista impressa, por sua vez, já acontecem há algum tempo. Em 2019, a publicação passou a integrar o Acervo Digital da SBPC,[3] organizado pelo Centro de Memória da instituição, na forma de arquivos PDF das edições impressas. O acervo mais antigo da revista, por sua vez, desde o primeiro fascículo de 1949 até 2017, está disponibilizado pela Hemeroteca Digital Brasileira, da Biblioteca Nacional.[4] São mais de 450 edições e milhares de páginas que podem ser consultadas por qualquer pessoa. O processo de digitalização de todo o material, realizado em 2018, foi possível a partir de parceria firmada entre a SBPC e a Fundação Biblioteca Nacional, em projeto que contou com o financiamento do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O acervo configura uma rica fonte de informações sobre a história da ciência brasileira, podendo inclusive servir como material para pesquisas acadêmicas.

 

“A Ciência & Cultura atua como um elemento transformador da própria ciência, bem como da cultura nacional, promovendo a chamada cultura científica.”

 

Em 2002, a Ciência & Cultura foi indexada à Biblioteca Virtual SciELO [5]como revista de divulgação científica.[6] Atualmente, a revista é classificada no Qualis, sistema brasileiro de avaliação de periódicos científicos mantido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), no estrato A1 — que contempla periódicos de excelência internacional — na área interdisciplinar. A indexação na SciELO e a inclusão no Qualis Capes permitiu que a publicação ganhasse ainda mais referência de credibilidade e tradição dentro da comunidade científica. Esse movimento, quase natural para periódicos científicos de excelência, ganha relevância quando colocado em marcha por uma publicação de divulgação científica, facilitando o que seria o segundo legado da C&C, ou seja, as contribuições de pesquisadores das mais diversas áreas para a disseminação da ciência de forma mais ampla.

O registro de achados científicos é parte fundamental da ciência institucionalizada. Pesquisadores comunicam os resultados de seus estudos (bem como os métodos empregados na pesquisa e seu embasamento teórico) a seus pares — geralmente, cientistas da mesma área e/ou que estudam o mesmo fenômeno pelo olhar de outras disciplinas — de formas diversas, por exemplo, em congressos acadêmicos e por meio da publicação de artigos em revistas especializadas. Esse sistema de comunicação entre pesquisadores é o que John Ziman (1925-2005), físico e humanista britânico, chamou de “instituição fundamental da ciência”.

 

“O princípio basilar da ciência acadêmica é que os resultados da pesquisa devem ser públicos. Independentemente do que os cientistas pensem ou digam individualmente, as suas descobertas não podem ser consideradas como pertencentes ao conhecimento científico até que tenham sido comunicadas ao mundo e registradas permanentemente. A instituição fundamental da ciência, então, é o sistema de comunicação.” [7]

 

A Ciência & Cultura permitiu que, ao longo das décadas, gerações de pesquisadores brasileiros fossem além, no sentido de dar mais um passo na “espiral da cultura científica” proposta por Carlos Vogt.[8] Por meio da metáfora de uma forma gráfica (espiral), Vogt desenha os caminhos que a disseminação dos achados científicos percorre, dando voltas e ampliando, em um movimento de acúmulo e transformações do conhecimento. Do ponto de partida, da comunicação entre pares, segue para o ensino da ciência e da formação de cientistas, nas universidades; continua, então, para o ensino para a ciência, nas escolas e espaços de educação não formal, como museus; chegando até veículos e meios de comunicação em massa, como a imprensa e, hoje, as redes sociais. Nesse processo, alguns aspectos se modificam: o primeiro deles é o número de pessoas que recebem a informação (de poucas, a princípio, para muitas, ao final). O segundo, é o tipo de linguagem empregado na comunicação (de algo técnico, característico dos artigos científicos, ao formato jornalístico e/ou da divulgação).

 

“O conhecimento científico transforma a humanidade e as culturas, possibilitando novas formas de se viver e de se relacionar – e, em última análise, o mundo como o conhecemos hoje.”

 

Quando cientistas escrevem na Ciência & Cultura, começa o exercício da linguagem da divulgação científica. Isso porque, na comunicação entre pares, são usados termos e conceitos muitas vezes incompreensíveis até mesmo para cientistas de outras áreas. Ao escrever um artigo para a revista, a linguagem se transforma e a informação chega mais longe. Essa prática, da divulgação, não faz parte da formação da grande maioria dos pesquisadores brasileiros. E, muitas vezes, é algo a que não se dedicam no seu dia a dia — seja pela falta de treinamento, mas também de habilidade/interesse, ou até mesmo de tempo, já que, além das pesquisas, os profissionais da ciência no Brasil, em sua maioria, também se dedicam ao ensino e à administração de projetos e laboratórios. Vale lembrar, apenas há poucos anos o item “Educação e Popularização de C&T” foi inserido no Currículo Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) — e que cientistas não são formalmente avaliados pela sua produção e contribuições nesse aspecto. Nesse sentido, a Ciência & Cultura construiu mais um legado, o da possibilidade da prática da divulgação por pesquisadores de todo o país.

Por fim, talvez como resultado dos aspectos aqui mencionados, a Ciência & Cultura tem como legado fundamental a promoção da cultura científica no país. Primeiro, por se tratar de um mecanismo de ampliação do acesso das pessoas — em um número cada vez maior — ao conhecimento produzido pela ciência. Quando munidas de informações embasadas em evidências, a sociedade, de forma organizada e suas instituições, assim como os indivíduos em suas vidas privadas, podem fazer escolhas mais acertadas. A ciência passa então a fazer parte da vida das pessoas e, de forma mais ampla, de sua cultura.

 

“Uma cultura científica só é possível quando o conhecimento é valorizado e utilizado como base para práticas cotidianas e tomadas de decisão, e com uma ciência atenta às questões do seu tempo.”

 

Segundo, porque tratar dos métodos e das práticas da ciência, desde as metodologias aplicadas em uma pesquisa até os mecanismos de financiamento e organização da atividade científica no país, é tratar da ciência como um processo cultural. A pesquisa é feita por pessoas, inseridas em instituições, que por sua vez fazem parte de um sistema que é organizado e que se modifica (ou é modificado) ao longo do tempo. A ciência é guiada, em algum nível, pelas preocupações e habilidades dos cientistas, assim como pelas questões e problemas da sociedade, no país e no mundo. Os conteúdos da Ciência & Cultura, para além dos achados da ciência, exploram os fundamentos filosóficos das pesquisas e suas implicações na sociedade, apresentando as dimensões humanísticas da exploração científica. Essa troca por meio da divulgação permite, portanto, que se estabeleçam relações críticas necessárias entre a ciência e a sociedade.

O conhecimento científico transforma a humanidade e as culturas, possibilitando novas formas de se viver e de se relacionar — e, em última análise, o mundo como o conhecemos hoje. Por outro lado, como diz o engenheiro e filósofo francês Jean-Pierre Dupuy, uma atividade intelectual deve se comunicar com o que não é ela própria para que se torne cultura.[9] Ou seja, para que esse “estado” de cultura científica exista, em que ciência e cultura se entrelaçam como partes de uma coisa só, a comunicação é essencial, atuando como elemento transformador de ambas. Uma cultura científica só é possível quando o conhecimento é valorizado e utilizado como base para práticas cotidianas e tomadas de decisão, e com uma ciência atenta às questões do seu tempo. É isso que a Ciência & Cultura tem praticado ao longo da sua história e também por isso será sempre lembrada.


Notas e referências
[1] Reis, J. (1949). Ciência e Cultura, vol. 1. n. 1-2, p. 3. Acesso em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=003069 pesq=&pagfis=7
[2] Segundo dados da última pesquisa de Percepção Pública da C&C no Brasil, lançada recentemente, cerca de 61% da população brasileira ontem informação sobre ciência e temas correlatos por meio de redes sociais, aplicativos de mensagens e plataformas digitais. Ref: CGEE (2024). Percepção pública da C&T no Brasil – 2023. Resumo Executivo. Brasília, DF. 30 p. Disponível em: https://www.cgee.org.br/documents/10195/4686075/CGEE_OCTI_Resumo_Executivo-Perc_Pub_CT_Br_2023.pdf
[3] Página da coleção da C&C no Acervo Digital da SBPC: https://sbpcacervodigital.org.br/handle/20.500.11832/2534
[4] Hemeroteca Digital: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Para acessar o acervo da C&C, deve-se digitar “Ciência e Cultura” no campo de busca “periódico”.
[5] Página da C&C no SciELO: http://cienciaecultura.bvs.br
[6] Versão impressa ISSN 0009-6725; versão on-line ISSN 2317-6660
[7] Ziman, J. (1984). “An introduction to science studies”, p. 58.
[8] Vogt, C. (2012). “The spiral of scientific culture and cultural well-being: Brazil and Ibero-America”. Public Understanding of Science, 21(1), 4-16. https://doi.org/10.1177/0963662511420410
[9] Dupuy, J.-P. (2006). “Retour de Tchernobyl”. Journal dún homme en colère, Paris, Seuil; Apud Jurdant. B. (2006). “Falar ciência?”, In Vogt, C. (org), Cultura Científica: Desafios. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp, 232 p.

Capa. A revista Ciência & Cultura tem como legado fundamental a promoção da cultura científica no país
(Foto: Freepik.com. Reprodução)
Ana Paula Morales

Ana Paula Morales

Ana Paula Morales é pesquisadora e jornalista de ciência. Cofundadora e diretora da Agência Bori. Com formação científica (graduação em biomedicina e mestrado em farmacologia - Unifesp), atua como jornalista desde 2008 (pós-graduação em jornalismo científico no Labjor/Unicamp). É pesquisadora associada do Labjor/Unicamp e foi editora-executiva da revista Ciência & Cultura (2017-2021).
Ana Paula Morales é pesquisadora e jornalista de ciência. Cofundadora e diretora da Agência Bori. Com formação científica (graduação em biomedicina e mestrado em farmacologia - Unifesp), atua como jornalista desde 2008 (pós-graduação em jornalismo científico no Labjor/Unicamp). É pesquisadora associada do Labjor/Unicamp e foi editora-executiva da revista Ciência & Cultura (2017-2021).
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