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O cerrado e as mudanças climáticas

Ciência revela problemas e oferece soluções  para preservar savana mais biodiversa do mundo 

 

O Cerrado é maior região de savana da América do Sul e o segundo maior bioma sul-americano, com uma área original de cerca de 2 milhões de km2, quase um quarto da superfície terrestre brasileira. Ele contém um conjunto único de comunidades biológicas cuja diversidade e importância ainda não são plenamente apreciadas. Enquanto esforços importantes são feitos para preservar as florestas tropicais do Brasil, a destruição do bioma Cerrado não encontra a mesma ressonância. Paradoxalmente, a destruição dos sistemas ecológicos desse bioma ameaça os recursos naturais de suporte à vida e os serviços ecossistêmicos vitais para a maioria da população brasileira, incluindo a viabilidade contínua da agricultura. Essa antiga região, que testemunhou importantes períodos da história geológica do Brasil e da presença humana no continente, resume os principais desafios ambientais atuais em busca da sustentabilidade e traz à tona a necessidade de novas respostas da ciência e da sociedade.

No Cerrado, as seguranças alimentar, energética e hídrica do país estão intrinsecamente conectadas e são dependentes da conservação da vegetação nativa em larga escala. A agricultura no Cerrado segue o ritmo da sazonalidade da precipitação, mas as projeções mais recentes de mudanças do clima apontam para a redução da precipitação e a extensão do período seco. A adoção de práticas de irrigação tem crescido persistentemente desde os anos 1970. Porém, o desmatamento em escala regional altera o ciclo hidrológico no Cerrado e, em conjunto com a variabilidade climática, podem limitar tais práticas. (Figura 1)


Figura 1. Desmatamento do Cerrado na região do MATOPIBA
(Foto: Greenpeace. Reprodução)

 

No Brasil, 65% da matriz elétrica é de fonte hídrica. O mapeamento das unidades de aproveitamento hidrelétrico da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) indica que as unidades presentes dentro dos limites do Cerrado e as unidades externas que se encontram em bacias fortemente influenciadas pelo bioma representam 52% de todas as unidades do país. A Bacia do Paraná, que contribui com a usina hidrelétrica da Itaipu, recebe 47% de suas águas do Cerrado.

As projeções de aumento do consumo de energia e da demanda mundial por produtos agrícolas e a manutenção do atual modelo de expansão e intensificação da agricultura em um contexto de mudanças na temperatura e na precipitação regional tendem a agravar a degradação do Cerrado e a perda de biodiversidade, comprometer o seu funcionamento ecológico e impactar ainda mais grupos sociais já vulneráveis, como povos indígenas e populações tradicionais.

A perda da savana mais biodiversa do mundo, com expressivos estoques de carbono, responsável por significativa produção de água e energia para todo o país, traz um alto custo com graves repercussões por longo tempo.

 

“No Cerrado, as seguranças alimentar, energética e hídrica do país estão intrinsicamente conectadas e são dependentes da conservação da vegetação nativa em larga escala.”

 

Compreender os efeitos das ações humanas sobre a estabilidade climática e propor ações de mitigação e adaptação são alguns dos grandes desafios da humanidade para o século 21. Dentre os impactos relacionados com as mudanças do clima, estão o aumento da temperatura e do nível do mar, a perda de biodiversidade e de serviços ecossistêmicos, a alteração nos regimes de chuvas, e a intensificação dos desastres naturais. O aumento das emissões de gases de efeito estufa (GEE) é um dos principais fatores causadores do aquecimento global, principalmente, a partir da revolução industrial, devido à queima de combustíveis fósseis e mudanças do uso e cobertura da terra. No Brasil, as emissões de GEE, principalmente de CO2, estão intimamente relacionadas ao papel que a vegetação natural tem como reservatório de carbono. O país ocupa a segunda posição na lista dos detentores das maiores áreas de florestas do mundo, atrás da Rússia, sendo o primeiro quando se considera apenas as áreas de florestas tropicais. No entanto, a conversão da vegetação nativa em diferentes biomas brasileiros, em função das demandas de expansão agropecuária, contribui significativamente para a emissões brasileiras quando comparado com a proporção das emissões globais do setor de uso terra. Segundo o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), o setor de Agricultura, Florestas e Outros Usos da Terra é responsável por aproximadamente 23% das emissões globais de GEE de origem antrópica. No Brasil, o setor é o principal responsável pelas emissões líquidas de CO2.

No bioma Cerrado, a pressão da expansão da fronteira agrícola na região do MATOPIBA (estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) pressiona a conversão, principalmente, de áreas de vegetação nativa. Parte da abertura de novas terras para cultivos decorre da supressão de áreas florestadas e a região responde por uma parcela importante das emissões do bioma Cerrado.

A flora e a fauna nativas do Cerrado são adaptadas ao clima sazonal com uma estação seca acentuada. Solos predominantemente antigos, profundos e com baixa fertilidade, selecionaram a estrutura da vegetação nativa como uma “floresta invertida”: a maioria dos arbustos e árvores baixos visíveis acima da superfície investe a maior parte (~75%) de sua biomassa — e do carbono, como consequência — no componente subterrâneo. Suas raízes profundas podem, portanto, acessam a água nas camadas inferiores do perfil do solo. Elas também ajudam a reabastecer a água canalizando a chuva e outras águas superficiais de volta para os reservatórios profundos do solo, sendo usados intensivamente na produção agrícola (70% ou mais da água do Brasil é usada para a agricultura).

 

“A perda da savana mais biodiversa do mundo, com expressivos estoques de carbono, responsável por significativa produção de água e energia para todo o país, traz um alto custo com graves repercussões por longo tempo.”

 

A conversão da vegetação nativa com raízes profundas e dossel heterogêneo por monoculturas com raízes rasas e dossel homogêneo determina mudanças importantes na troca de energia e água entre a vegetação e a atmosfera e já tornaram o Cerrado mais quente e seco.

Como a savana mais biologicamente rica do mundo, o Cerrado abriga quase 12.000 espécies de plantas nativas, cerca de 212 espécies de mamíferos, 267 espécies de répteis e 209 espécies de anfíbios, além de uma população rica e diversificada de cerca de 837 espécies de aves, todas distribuídas em uma ampla variedade de habitats. Seus ambientes aquáticos abrigam 1.300 espécies de peixes, e estimativas recentes indicam que o Cerrado é o refúgio de 13% das borboletas, 35% das abelhas e 23% dos cupins dos trópicos. (Figura 2)


Figura 2. O Cerrado é a savana mais biodiversa do mundo
(Foto: Adriano Gambarini/ WWF Brasil. Reprodução)

 

O Cerrado é habitado por povos tradicionais (indígenas, quilombolas, geraizeiros, sertanejos, vazanteiros) que, ao longo de muitas gerações, desenvolveram usos sustentáveis e mutuamente benéficos da biodiversidade e dos recursos naturais da região. Evidências baseadas em satélites mostram que a vegetação nativa é mais bem protegida quando as unidades de conservação são gerenciadas por comunidades locais e tradicionais. A invasão da produção agrícola extensiva de monoculturas e a natureza fragmentada das áreas de conservação públicas e privadas deslocam as populações locais e as separam do ambiente natural mais extenso e seus meios de subsistência. Esse patrimônio e benefício cultural e funcional reduzido com a perda de territórios tradicionais devido ao desmatamento e agora é pressionado também pela mudança climática.

A posse da terra é um fator crítico nas regiões tropicais que determina as mudanças no uso da terra e as estratégias de conservação. Um componente importante das políticas para diminuir o desmatamento na região amazônica foi a designação da região como patrimônio nacional e a implementação de áreas protegidas, o que foi facilitado pelo fato de a maior parte das terras da Amazônia ser federal. Apesar de sua importância biológica, o Cerrado não é considerado patrimônio nacional, e apenas uma pequena percentagem do Cerrado está protegida em unidades de conservação. A propriedade é predominantemente privada no Cerrado, com cerca de 1,3 milhão de propriedades ou assentamentos rurais de gestão privada e a maior área média de propriedade rural do Brasil, implicando a necessidade de envolvimento do setor privado nos esforços de conservação. A participação mais inclusiva e consequente das comunidades locais e tradicionais nos debates e nas decisões para a região é vital para o progresso. O papel da expansão agrícola e das práticas associadas nas profundas mudanças que estão ocorrendo na região impõe a necessidade de um forte compromisso das partes interessadas nacionais e internacionais com a conservação desse conjunto único de ecossistemas.

 

“Evidências baseadas em satélites mostram que a vegetação nativa é mais bem protegida quando as unidades de conservação são gerenciadas por comunidades locais e tradicionais.”

 

A Lei de Proteção da Vegetação Nativa — o principal instrumento que regula o uso da terra no Brasil (Brasil, 2012) — determina que a cobertura vegetal nativa em propriedades rurais no Cerrado deve incluir Reserva Legal (RL) correspondente a pelo menos 20% da propriedade rural privada na maior parte do Cerrado e 35% na área de transição entre o Cerrado e a Amazônia. Em contrapartida, as mesmas Reservas Legais no bioma amazônico devem ser de 80%, permitindo que apenas 20% das terras privadas sejam desmatadas. Com grandes áreas ainda intactas e Reservas Legais de apenas 20%, cerca de 40 milhões de hectares estão legalmente disponíveis para a expansão agrícola no Cerrado. A Lei também determina que 5 milhões de hectares de áreas convertidas devem ser restaurados, 1,7 milhão deles na forma de áreas de preservação permanente para a conservação dos recursos hídricos. Para preservar os amplos serviços ecossistêmicos da região, seria preciso proteger maiores extensões de vegetação nativa de Cerrado em propriedades privadas por meio de uma combinação de conservação, uso sustentável e restauração.

Da mesma forma que a Ciência nos revela os problemas, ela também é capaz de oferecer soluções que vão desde estratégias adequadas de restauração, planejamento e gestão de paisagens diversificadas e multifuncionais até o desenvolvimento de novos modelos de agricultura que preconizem a conservação e reabilitação dos sistemas alimentares e agrícolas. Alternativas existem, mas necessitam o suporte de uma visão estratégica, responsabilidade e vontade política.

O enfrentamento das ameaças a esse bioma extremamente importante, porém negligenciado, exigirá a expansão das áreas protegidas e o aprimoramento da gestão das áreas já estabelecidas, sistemas de monitoramento ambiental sistemático e a restauração de áreas degradadas para cumprir as leis ambientais do país e seus compromissos com acordos internacionais relacionados a mudanças climáticas, conservação da biodiversidade e desenvolvimento sustentável.

 

Capa. Segundo maior bioma sul-americano sofre impactos das mudanças climáticas
(Foto: WWF. Reprodução)
Mercedes Bustamante

Mercedes Bustamante

Mercedes Bustamante é professora do Departamento de Ecologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília (UnB).
Mercedes Bustamante é professora do Departamento de Ecologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília (UnB).
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