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O diálogo é indispensável para a ciência e para a democracia

Discutir pontos de vista divergentes de forma pacífica visando um bem maior é um dos pilares da democracia.

 

Esta edição da revista Ciência & Cultura tem como tema a questão da desinformação e da democracia. Estamos preocupados com o fato de que a desinformação e a propaganda de mentiras estão trazendo sérios riscos ao regime democrático, que apenas nas últimas décadas se expandiu pelo mundo inteiro. Parafraseando o que disse Saint-Just durante a Revolução Francesa, podemos afirmar que a democracia é uma ideia nova no mundo.[i]

De fato, antes da década de 1980, a maior parte da população mundial vivia sob regimes não democráticos. A queda das ditaduras comunistas, assim como — em nossa parte do mundo — das ditaduras patrocinadas pelos Estados Unidos, permitiu, nos últimos 30 anos, um avanço significativo da democracia.

Entendo aqui por democracias, de forma simplificada, aqueles regimes onde as pessoas têm o direito de escolher seus governantes por meio de eleições livres e competitivas e, na vida privada, têm liberdade para escolher sua religião, valores e parceiros amorosos. Vivemos um grande avanço nesses campos na virada do século, mas isso está ameaçado desde a crise econômica de 2008, iniciada nos Estados Unidos, que reduziu a qualidade de vida global e agravou os conflitos sociais e políticos.

Uma expressão europeia interessante é a das Trente glorieuses, cunhada em 1979 pelo francês Jean Fourastié para designar os trinta anos (aproximadamente) que transcorreram entre o fim da II Guerra Mundial e a crise do petróleo de 1973. Neste período, do ponto de vista econômico, houve alto progresso técnico, intenso desenvolvimento econômico, pleno emprego pelo menos nos países desenvolvidos, forte crescimento da produção industrial (um aumento anual médio de cerca de 5%), crescimento demográfico significativo, com o baby boom — e, além disso, a consolidação da democracia e do Estado de Bem-Estar Social, pelo menos na Europa Ocidental e Canadá.

 

“Um ponto essencial para a democracia é o diálogo, ou seja, a possibilidade das pessoas discutirem pontos de vista divergentes de forma pacífica e resolverem suas diferenças sem recorrerem à violência física ou econômica.”

 

Proponho chamarmos de Trinta Anos Gloriosos bis ou 2.0 as três décadas que vão da queda das ditaduras comunistas e americanófilas, por volta de 1980, até a grande crise econômica iniciada com o colapso da especulação imobiliária nos Estados Unidos, em 2008. Neste período assistimos ao fim de ditaduras, à instituição de democracias onde elas antes não existiam e, além disso, à redução da miséria e da fome em vários países, dos quais sobressaiu o Brasil, graças ao Programa Fome Zero e seus complementos. A segunda edição dos 30 anos gloriosos, assim, beneficiou as nações que ficaram de fora da primeira.

Contudo, se a crise do petróleo pôs fim ao período áureo no Hemisfério Norte, o que acabou com os 30 gloriosos bis, no planeta como um todo, foi a destruição de inúmeros recursos econômicos, assim lançando inúmeras populações, colhidas pela perda de oportunidades, na desesperança. Uma das principais baixas desse fenômeno tem sido a democracia.

Um ponto essencial para a democracia é o diálogo. O diálogo, ou seja, a possibilidade de as pessoas discutirem pontos de vista divergentes de forma pacífica e resolverem suas diferenças sem recorrerem à violência física ou econômica, é essencial — para a ciência, a democracia e mesmo para a convivência humana. No entanto, para que o diálogo exista, alguns pontos comuns são necessários.

 

“Em um momento em que parcelas significativas da sociedade rejeitam as afirmações da ciência e do jornalismo, a democracia se torna frágil.”

 

Primeiro, é preciso haver um acordo sobre fatos; segundo, é necessário haver concordância quanto a certos valores.

O avanço das fake news e o conceito de “verdades alternativas” — termo introduzido por uma alta funcionária do governo Trump — colocaram em xeque a noção de verdade. Tradicionalmente, enciclopédias e demonstrações científicas constituíam provas incontestáveis do que é verdade ou mentira. No entanto, com a disseminação das fake news, esses critérios foram profundamente abalados.

Além dos fatos, é necessário concordar sobre valores fundamentais, como o respeito à verdade e a não-violência. Em um momento em que parcelas significativas da sociedade rejeitam as afirmações da ciência e do jornalismo, a democracia se torna frágil.

Os cientistas, de modo geral, lidam com a verdade sobre os fenômenos, enquanto os jornalistas buscam apurar a verdade dos fatos. Embora nunca se possa afirmar que se chegou à verdade final, essa referência é essencial para mediar divergências. A democracia se baseia na importância do debate, no reconhecimento do direito à divergência e na existência de um pano de fundo que permita moderar essas divergências e orientar a tomada de decisões.

A democracia precisa ser pautada em princípios de conhecimento, como o respeito pelos fatos e fenômenos. Contudo, o que ela pretende, sobretudo, é definir, por meio da escolha livre do povo, qual será a ação a ser tomada. Essa ação não é automaticamente determinada pelo conhecimento, mas precisa reconhecê-lo.

Por exemplo, o combate a doenças graves começa pela detecção das causas, definição dos tratamentos e formas de prevenção. É desse conhecimento que derivamos as medidas a tomar, para as enfrentar. Tudo isso, porém, está sendo questionado atualmente, comprometendo a eficácia das ações necessárias.

 

***

 

Justamente pela importância de termos esses referenciais comuns — primeiro, de fatos ou fenômenos, e segundo, de valores — foi que decidimos preparar esta edição a partir de um podcast.

Houve várias razões para essa escolha, e eu poderia citar algumas conjunturais. Por exemplo, o fato de que as pessoas que gostaríamos de consultar dificilmente teriam tempo para escrever artigos com a profundidade e dimensão que desejávamos. Além disso, o podcast é uma forma de comunicação bastante apreciada hoje pelo público, o que daria uma vivacidade maior ao tema.

No entanto, prefiro enfatizar minha própria origem. Venho da filosofia, sou filósofo, e talvez a maior contribuição da filosofia para a escrita sejam os diálogos de Platão, que colocam Sócrates em cena. Sabemos que Sócrates nada deixou escrito e que, por isso, a memória que temos dele vem essencialmente dos diálogos registrados por seu discípulo Platão.

 

“A democracia precisa ser pautada em princípios de conhecimento, como o respeito pelos fatos e fenômenos.”

 

Há algo de único nos diálogos socráticos e platônicos (sim, há uma distinção entre uns e outros): é que não constituem apenas um modo de exposição de conhecimentos já sabidos, mas se inscrevem no que chamamos o modo da descoberta. Sócrates, interrogando seus interlocutores, faz que eles progridam rumo a conclusões mais qualificadas. Infelizmente, na tradição filosófica, os demais autores de diálogos — podemos indicar Galileu, Hobbes e Rousseau — fizeram mais exposição do que descoberta, ao adotarem essa forma literária. Mas continua sendo importante empregá-la, mesmo que, ao longo dos mais de vinte séculos de filosofia ocidental, ela tenha cedido a vez a discursos ou tratados — que não abrem espaço, em seu interior, para a contradição ou o conflito.

Ora, para discutir a falta de diálogo, sua falência ou ausência nos dias de hoje, o que seria melhor do que dialogar? Recorrer a diálogos que coloquem nossos intelectuais, aqueles que desejamos ouvir, em interação com alguém que os provoque e levante as questões importantes. Esse foi o papel que assumi. É claro que muito mais modestamente do que Sócrates, mas tentando lembrar sua lição.

O diálogo foi assim nossa forma de discutir a falta de diálogo. Aqui, o diálogo é a forma de tentar restabelecer o diálogo em um momento em que ele é tão necessário. Isso, embora seja óbvio, a quem ler ou ouvir este número, que a concordância entre os participantes seja alta, até porque todos defendem o respeito à verdade factual e o compromisso com a vida, humana, planetária, una.

Boa leitura!


NOTAS
[i] “A felicidade é uma ideia nova na Europa”, assim conclui Saint-Just seu discurso de 3 de março de 1794, que previa o confisco dos bens dos inimigos da Revolução em favor dos patriotas pobres. http://palimpsestes.fr/blocnotes/2016/juin/stjust-bonheur.html. Menos de cinco meses depois, após o golpe de Estado de Termidor, ele seria executado.

Capa. Polarização e discurso de ódio alimentados pela desinformação ameaçam a democracia
(Foto: Freepik.com. Reprodução)
Renato Janine Ribeiro

Renato Janine Ribeiro

Renato Janine Ribeiro é presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Filósofo, cientista político, escritor e colunista, foi ministro da Educação do Brasil no governo de Dilma Rousseff.
Renato Janine Ribeiro é presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Filósofo, cientista político, escritor e colunista, foi ministro da Educação do Brasil no governo de Dilma Rousseff.
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