A democracia deve almejar pluralidade de vozes, respeito às diferenças e o bem comum
A foto de capa Oitocentista sempre me chamou muita atenção. Ela foi feita no famoso estúdio paulista de Militão Augusto de Azevedo, ainda nos tempos da escravidão.[1]
Militão, que era formado em teatro e na fotografia, usou de sua primeira expertise para criar paisagens — tanto urbanas, como humanas, digamos assim. Em 1875, por conta do sucesso que foi alcançando, ele criou o estúdio Photographia Americana, onde além de imortalizar figuras renomadas — como Luiz Gama e Pedro II — recebeu uma clientela sem grande passaporte ou galhardia, e até mesmo populares. Com um preço, então, considerado razoável — 5 mil reais, que equivalia a cinco passagens para o bairro vizinho da Penha — e contando com uma localização convidativa, já que seu comércio ficava em frente à Igreja do Rosário, o negócio prosperou, com o próprio mercado fotográfico.[2]
Assim como acontece com vários arquivos fotográficos, cuja história atravessa séculos, muitos de seus retratados têm, hoje em dia, autoria reconhecida, outros não. Muitas imagens que o profissional captou são localizáveis, outras viram seus nomes e endereços serem apagados pela pátina do tempo. Muitos desses documentos ganharam divulgação, outros ficaram retidos no arquivo do próprio profissional.
Esse é o caso da foto que abre esse artigo, sob a qual faltam todos os nomes e sobrenomes. Já não sabemos quem é o proprietário em questão, e tampouco conhecemos a história dos trabalhadores escravizados que aparecem retratados na foto, ladeando o seu senhor — o quais, se foram convocados para tal atividade, a eles não foi dado o arbítrio de aceitar ou não o convite.
“Vemos por convenção e assim naturalizamos o que nada tem de natural, como a hierarquia, o autoritarismo – e a própria escravidão.”
Mas algumas certezas podemos ter: que se trata de um documento que devolve uma grande representação de hierarquia, e que a foto deve ter sido encomendada pelo senhor, que nela incluiu seus cativos como prova de riqueza e privilégio.
Tal evidência pode ser confirmada a partir de grandes estruturas, mas também por meio de alguns detalhes, da maior relevância. Aliás, foi o historiador italiano, Carlo Ginzburg, quem introduziu a área da micro-história e criou uma metodologia para mostrar como é possível trabalhar a partir de sinais e indícios presentes nos documentos.[3]
Vemos por convenção e assim naturalizamos o que nada tem de natural, como a hierarquia, o autoritarismo — e a própria escravidão. Pois bem, voltemos a nossa foto inicial. A linguagem corporal nela presente já indica a desigualdade reinante. Em primeiro lugar, o senhor é o único que traz o traje completo — calça, jaquetão, camisa branca e gravata-borboleta — diferença que se destaca sobretudo em comparação com as roupas mais remediadas dos demais. A cor do proprietário que encomendou a foto é branca e seu cabelo e barba mais claros — numa espécie de reforço de quem exerce o mando e tem o domínio material e simbólico da situação.
Mas o que distingue, para valer, o homem que está no centro da foto é o fato dele estar ligeiramente à frente dos outros, e, ademais, calçar sapatos, que surgem com muita evidência de desigualdade, e ganham ainda maior relevância ante a ausência de calçados nos pés dos demais — seus escravizados.
Todavia, o segredo que essa foto guarda — e o que explica sua pouca divulgação na época — era interno (hoje em dia não soa bem um patrão mostrar-se, dessa maneira, à frente de seus escravizados), e técnico, também. Como era difícil controlar o resultado de uma foto no formato albúmen, pois a lente abria muito lentamente e acabava capturando qualquer movimento, cada um dos modelos expressou (inadvertidamente) uma reação. O proprietário fez uma expressão séria, típica de sua posição, enquanto os escravizados mostraram todo tipo de gesto. O homem na extremidade direita, por exemplo, se mexeu e saiu borrado. Além disso, enquanto as duas outras pessoas da direita revelam passividade e resignação diante do lugar que devem ocupar nessa representação (que não lhes diz respeito), a que está postada logo à esquerda do senhor mostra contrariedade, com os braços cruzados. O registro guardou, porém, a lógica simbólica dos sapatos. Mesmo sem nomes, é também por conta dos calçados que divisamos quem tem ou não tem liberdade.
O autoritarismo no Brasil é fato do presente que nos vincula indelevelmente ao passado. É possível dizer que ressoam no presente os tempos do passado, quando o Brasil era ainda uma colônia portuguesa na América do Sul, e quando se naturalizaram hierarquias de mando e de subordinação. (Figura 1)
Figura 1. Brasil ainda carrega heranças da escravidão e do colonialismo, como o racismo estrutural, o autoritarismo e a desigualdade
(Fonte: “Navio negreiro”, tela de Johann Moritz Rugendas, de 1830. Reprodução)
Em primeiro lugar, o sistema escravocrata, disseminado ao longo desse território de proporções continentais, supunha o poder de poucos e o domínio de muitos. Já o modelo latifundiário, determinava que o comando absoluto dos senhores de terra — o poder social, cultural, político e religioso — criava uma sociedade profundamente desigual e hierarquizada. Tais modelos inauguraram estruturas de longa duração, que possuem até hoje — guardadas as diferenças regionais e contextuais — ressonância com mandonismos, clientelismos, o racismo, a misoginia e o machismo, profundamente naturalizados no cotidiano da nação.
“É possível chamar atenção para como o autoritarismo tem crescido não só no Brasil como no mundo, na mesma proporção da desinformação promovida por governos de extrema-direita e pelo uso pouco crítico das redes sociais.”
Sérgio Buarque de Holanda, quando lançou seu livro “Raízes do Brasil”, em 1936, dizia que a democracia no Brasil não passava de um grande “mal-entendido”. Na época, ele vivia os impasses gestados pelo Estado Novo e dizia temer os autoritarismos de esquerda e de direita, referindo-se ao nazismo e ao stalinismo; perigos certeiros daquele momento. Mal sabia o historiador que com essa frase ele se tornava uma espécie de pitonisa nacional: até hoje no Brasil, democracia é um mal-entendido, uma vez que não se aplica a todas as pessoas e amplamente.
Afinal, igualdade é um bem ainda caro num país que guarda a triste marca de ter sido o último a abolir a escravidão mercantil, e de ser o 8º do mundo em termos de desigualdade e gap social. E nossa teimosa e perversa desigualdade se inscreve em muitas áreas, mas sobretudo na saúde, na segurança, no transporte, na moradia e na educação. Pesquisas mostram, aliás, como nações mais deseducadas tendem muitas vezes a se fiarem, mais facilmente, no canto da sereia do autoritarismo.
Nesse mesmo sentido, é possível chamar atenção para como o autoritarismo tem crescido não só no Brasil como no mundo, na mesma proporção da desinformação promovida por governos de extrema-direita e pelo uso pouco crítico das redes sociais.
Foi em 2016 que Donald Trump venceu a primeira eleição presidencial utilizando os recursos digitais. O fenômeno era então novo e causou espanto por conta do tamanho de sua repercussão e da capacidade que tinha de anular ou mitigar as demais instituições representativas, como a academia, e veículos noticiosos: a imprensa televisionada, radiofônica e escrita.
Aquela eleição preparou terreno para a emergência de um novo paradigma, em que as fake news passaram a fazer parte de nosso cotidiano, e das campanhas e gestões de várias políticos e líderes internacionais e nacionais que sequestraram pautas e agendas democráticas, usando o emblema da “liberdade de expressão”. Mas liberdade de expressão, embora seja um direito fundamental, não é “ilimitada”, sobretudo quando envolve incitação à violência, calúnia e difamação, e propaganda de ódio.
Por outro lado, a própria noção de democracia virou parte da contenda e um conceito em disputa. Isso quando não passou a ser definido como um regime desacreditado, por políticos de ultradireita.
“Não se pode afirmar que exista república, democracia e cidadania plenas em uma país tão desigual, racista, machista e misógino como o Brasil.”
Mas vale retomar as bases desta prática que continua a ser fundamental para os regimes de base republicana. Como sabemos, democracia foi um conceito inventado em Atenas por volta de 510 a.C. Chamava-se, então, dēmokratia, palavra que significa “capacidade de se autogovernar entre os iguais”. Já na modernidade, democracia passou a designar “poder do povo”, quando cidadãos comuns concedem partes limitadas dessa soberania para o indivíduo ou para o partido que governa, através de eleições, mas concentra e não abre mão dos seus demais direitos. Por conta disso, noções como igualdade e liberdade permitem distinguir governos democráticos daqueles que não o são, e formam os dois princípios do regime.
A democracia depende, em primeiro lugar, de instituições e de uma prática democrática: eleições, partidos políticos, constituição, parlamento, justiça. Em segundo, ela se apoia nas distinções e divisões equilibradas entre os poderes — Legislativo, Executivo, Judiciário — e faz da igualdade de condições entre eles o grande motor de transformação da sociedade moderna, reclamando e oferecendo transparência e visibilidade ao poder.
Mas democracia não é só um sistema baseado em instituições. É igualmente um modo de vida e uma forma de sociedade. Não por coincidência, os valores fundantes dos regimes democráticos são os direitos civis, as liberdades de ir e vir; de expressão; de associação; de imprensa. Esses se encontram associados, por sua vez, ao direito à autodeterminação; de votar e ser votado, de contar com presunção de inocência até prova de culpa acima de dúvida razoável, e a julgamento justo.[4]
O regime carrega ainda uma espécie de ideal de extensão; uma forma de franquia da cidadania que se orienta pelo critério de inclusão. Dessa maneira, a cidadania numa democracia deve incluir grande número de pessoas, mantendo-se as diferenças que existam entre elas, sejam de status, classe social, raça, etnia, gênero, sexo, religião, região, geração. É por isso que a beleza da democracia está em sua incompletude, pois a agenda de direitos não cessa de ser ampliada a partir de novas demandas e grupos de pressão que fazem da defesa da diferença uma das virtudes deste regime.
Pois bem, pensada nesses termos, democracia significa o oposto de autoritarismo e totalitarismo. Por outro lado, não se pode afirmar que exista república, democracia e cidadania plenas em um país tão desigual, racista, machista e misógino como o Brasil. Ou, como explica o historiador José Murilo de Carvalho nossa república é muito pouco democrática.[5]
Pretos e pardos, nos termos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), compõem 56,1% da população brasileira; mesmo assim não compartilham de uma democracia onde a igualdade deveria reger princípios e nortear políticas. Segundo o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), que avalia a renda dos brasileiros, brancos ganham cerca de duas vezes mais que os negros no país. Um estudo divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com a Fundação João Pinheiro e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), indica que a desigualdade social ainda hoje afeta profundamente a população preta ou parda. (Figura 2)
Figura 2. Desigualdade é uma barreira para a democracia
(Fonte: Tânia Rêgo/Agência Brasil. Agência Brasil)
De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2018, do IBGE, a proporção de pessoas pretas ou pardas com rendimento inferior às linhas de pobreza propostas pelo Banco Mundial foi maior que o dobro da proporção verificada entre as brancas. Em 2018, ainda, considerando a linha de 5,50 dólares diários, a taxa de pobreza das pessoas brancas era de 15,4%, e 32,9% entre as pretas ou pardas. Segundo a mesma pesquisa, as desigualdades por cor ou raça revelam-se também nas condições de moradia, seja na distribuição espacial dos domicílios, no acesso a serviços ou ainda nas características individuais das habitações.
Em um país onde 43% de toda a renda está concentrada nas mãos de apenas 10% da população, reverter este cenário é tão necessário quanto premente. Por mais que avanços já tenham ocorrido, como, por exemplo, o fato de, pela primeira vez, existir mais pretos e pardos no ensino superior público no Brasil (são 50,3% contra 49,7% brancos, segundo o IBGE), há ainda muito a mudar no sentido de tornar a Universidade ainda mais plural e inclusiva.
É também a população negra que mais sofre com a violência. Segundo o IBGE, a taxa de homicídio entre jovens negros de 15 a 29 anos é de 98,5 por 100 mil — entre os brancos, na mesma faixa etária, esse número cai para 34. Além disso, no que se refere ao número de pessoas mortas pela polícia, a concentração da população negra é gritante, sendo que o mesmo ocorre quando se quantifica o número de pessoas que vivem nas nossas prisões. E mais, o IBGE realizou pesquisa sobre o trabalho infantil em 2024 e a constatação é eloquente e paralela, com uma grande maioria dos casos incidindo sobre crianças pretas. Estamos tratando, pois, não de minorias, mas de “maiorias minorizadas” em todos os espaços de representação e poder.[6]
A desigualdade não é só racial, é étnica — com os povos indígenas ainda vivendo um duplo perecimento e morte: ou a chacina, ou a “incorporação” à sociedade, a qual, na maior parte das vezes, significa um assassinato cultural.[7] A desigualdade é também de gênero e sexo, isso se contarmos com os números elevados de feminicídios, e o Brasil ocupando o vexaminoso 5º lugar no ranking mundial de assassinato de pessoas LGBTQ+, chegando a mais de um caso por dia.
Essa situação vem sendo revertida graças à força dos movimentos sociais, que têm alterado essa agenda e tirado dela o véu da naturalização da violência e da exclusão.
O fato é que o Brasil será uma democracia se tiver, de fato, vozes plurais, se contar outras histórias, se combater firmemente o racismo e as várias formas de discriminação, tiver mais minorias representativas nos locais de decisão e postos de representação.
Naturalizar a desigualdade, evadir-se do passado, apoiar-se em eleitores parcialmente informados são características de governos autoritários que, não raro, lançam mão de narrativas edulcoradas como forma de propaganda do Estado e para a propagação de fake news.
Essas são formas de deseducação que vêm sendo aplicadas, com relativo sucesso, entre nós brasileiros, também. Não são poucos deles que atacam o que chamam de “identitarismo”; termo que, aliás, já indica falta de informação ou tentativa de caricaturar e desqualificar um debate tão necessário como urgente. Afinal, o que estar por detrás destes movimentos legítimos são políticas de identidade que se constituem em formas de luta por justiça e igualdade de direitos.
Não existe determinismo histórico, pois o passado nunca foi a única fonte crível para entender o presente. Mas o certo é que, no nosso caso, quando se discute democracia e autoritarismo, não há como esquecer o nosso “presente do passado”. As amarras que carregamos e aquelas que vamos criando.
A foto de meados do século XIX, ainda ressoa, tal qual fantasma teimoso, nosso retrato em três quartos da atualidade.