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Uma ciência quântica brasileira de impacto global é sim possível

A urgência de uma estratégia nacional estruturada para transformar o país em um protagonista da revolução quântica global.

 

Introdução

A Organização das Nações Unidas (ONU) declarou 2025 como o Ano da Ciência e das Tecnologias Quânticas, em celebração ao centenário de um artigo científico revolucionário do físico alemão Werner Heisenberg. Publicado em 1925, este trabalho deu início a uma nova era na mecânica quântica, cujos efeitos moldaram e continuam influenciando a ciência e a tecnologia até hoje. O objetivo do Ano da Quântica é aumentar a conscientização entre o público e os tomadores de decisão sobre os impactos científicos, tecnológicos, culturais, éticos e socioeconômicos que a atual revolução quântica pode trazer em um futuro próximo. Neste artigo, exploraremos as fascinantes facetas da ciência quântica e os seus desafios.

 

A Primeira Revolução Quântica

No início do século 20, à medida que os cientistas se aprofundavam no mundo microscópico da matéria, ficou evidente que as teorias físicas vigentes eram inadequadas para descrever o que era observado. Em 1900, o físico alemão Max Planck fez uma descoberta que mudaria a história da ciência: a radiação emitida por corpos aquecidos só podia ser explicada se a troca de energia entre matéria e luz ocorresse em pacotes discretos, denominados “quanta”. Apesar de inicialmente considerar essa ideia um “ato de desespero”, Planck havia semeado o conceito central que daria origem à mecânica quântica, a teoria física mais precisa e bem-sucedida já desenvolvida. (Figura 1)


Figura 1. Físico alemão Max Planck mudou história da ciência com a descoberta da lei que rege a chamada radiação de corpo negro o primeiro passo no desenvolvimento da teoria quântica.
(Fonte: German Federal Archive/ Wikimedia. Reprodução)

 

A mecânica quântica permite prever e explicar as propriedades de partículas fundamentais, como elétrons e fótons, e o comportamento de átomos, moléculas e materiais. Além disso, ela desempenha um papel crucial no estudo de fenômenos astrofísicos, como a estrutura das estrelas, buracos negros e até mesmo a origem e evolução do universo.

No campo tecnológico, as aplicações da mecânica quântica mudaram o mundo. Tecnologias como transistores e lasers impulsionaram a era da informação, permitindo o desenvolvimento de computadores, smartphones e redes de comunicação modernas. Uma estimativa de uma década atrás sugeriu que invenções baseadas na teoria quântica representavam entre 30% e 35% do PIB dos Estados Unidos — um número que certamente é ainda maior hoje. Essa transformação abrangente na ciência e na tecnologia ao longo do século 20 ficou conhecida como a “primeira revolução quântica”.

 

A Segunda Revolução Quântica

Atualmente, estamos presenciando o desdobramento da chamada “segunda revolução quântica”. Enquanto a primeira revolução possibilitou dispositivos regidos pelas leis da mecânica quântica, o processamento de informação nestes dispositivos permaneceu clássico, com cálculos baseados em sequências de bits (0s e 1s). Essencialmente, o hardware tornou-se parcialmente quântico, mas o software permaneceu tradicional.

 

“Diversos países identificaram a ciência e a tecnologia quântica como áreas estratégicas e cruciais para a soberania nacional.”

 

Com o advento da ciência e tecnologia quânticas modernas, tanto o hardware quanto o software passaram a explorar as propriedades quânticas da informação. Conceitos como superposição, emaranhamento e teleporte quântico, antes restritos à ficção científica ou a experimentos imaginários, começaram a ser implementados em laboratórios de universidades, startups e grandes empresas de tecnologia ao redor do mundo.

As aplicações das tecnologias quânticas podem ser agrupadas em quatro grandes áreas:

 

  1. Computação quântica: A mais disruptiva, promete resolver classes de problemas que estão além do alcance mesmo dos supercomputadores mais poderosos. Entre eles, destaca-se a vulnerabilidade de protocolos de criptografia amplamente utilizados e problemas de otimização com aplicações variadas.
  2. Simulação quântica: Pode revolucionar o desenvolvimento de novos materiais, substâncias químicas e medicamentos, proporcionando métodos mais precisos e acessíveis.
  3. Metrologia quântica: Sistemas quânticos extremamente sensíveis permitem medições precisas de grandezas físicas, como campos magnéticos e gravitacionais. Um exemplo prático é o LIGO, que pode usar sensores quânticos para detectar ondas gravitacionais com altíssima precisão.
  4. Comunicação quântica: Já bem desenvolvida, possibilita a troca de informações de forma fundamentalmente segura, pois qualquer tentativa de interceptação seria detectada graças às próprias leis da física.

 

A corrida do ouro quântico

Com tamanho potencial tecnológico, não é surpreendente que governos, empresas de tecnologia e diversos setores industriais estejam investindo massivamente no tema. Segundo a Qureca, uma plataforma que reúne informações sobre iniciativas relacionadas às tecnologias quânticas, pelo menos 42 bilhões de dólares foram investidos globalmente no setor. Estimativas conservadoras sugerem que esse número pode dobrar ao longo da próxima década. Entre os países que lideram esses esforços, destaca-se a China, com investimentos superiores a US $ 15 bilhões, seguida pelos Estados Unidos, Alemanha e França.

Além dos aportes governamentais, fundamentais para viabilizar essas novas tecnologias, o papel das empresas privadas tem ganhado destaque no cenário atual. Gigantes como Google e IBM lideraram por anos a corrida no desenvolvimento de computadores quânticos baseados em qubits (os bits quânticos) supercondutores. Mais recentemente, no entanto, startups e empresas emergentes têm explorado novas abordagens, superando importantes desafios. A IonQ, por exemplo, com valor de mercado superior a US $ 8 bilhões, aposta em íons aprisionados (átomos excitados) como base de seus computadores quânticos. Já a QuEra utiliza átomos neutros para construir suas máquinas, alcançando avanços significativos no aumento do número de qubits e na correção de erros quânticos — desafios cruciais para tornar essas máquinas funcionalmente úteis. Em um movimento estratégico recente, o governo australiano anunciou um investimento de 1 bilhão de dólares australianos na PsiQuantum, uma empresa que desenvolve computadores quânticos baseados em partículas de luz integradas a chips de silício, cujos detalhes permanecem um segredo bem guardado.

 

“Desde 2023, o Brasil começou a reconhecer o papel estratégico das tecnologias quânticas, aumentando significativamente os investimentos na área.”

 

No campo da comunicação e da criptografia quântica, atualmente a tecnologia quântica mais madura, existem dezenas, possivelmente centenas, de empresas e startups operando globalmente. Um exemplo pioneiro é a empresa suíça ID Quantique, que em 2007 utilizou tecnologia quântica para garantir a segurança de uma parte da rede de comunicação empregada na contagem de votos de uma eleição em Genebra. Na América Latina, a Sequre Quantum emprega partículas quânticas de luz para gerar números aleatórios utilizados na loteria nacional do Chile. Já em 2017, a China impressionou o mundo ao lançar o satélite Micius, o primeiro capaz de produzir fótons emaranhados e distribuí-los pelo vasto território chinês, marcando um passo fundamental na criação da rede quântica chinesa de comunicação interligando diversos setores estratégicos do país asiático.

 

Embargo quântico

Embora as tecnologias quânticas ainda estejam em grande parte em desenvolvimento e provavelmente distantes pelo menos uma década do uso prático em larga escala, já emergem no cenário internacional os primeiros indícios de uma “guerra fria” tecnológica. Diversos países identificaram a ciência e a tecnologia quântica como áreas estratégicas e cruciais para a soberania nacional, lançando grandes iniciativas nacionais para impulsionar a pesquisa, formar recursos humanos especializados, fortalecer a competitividade econômica e garantir a independência tecnológica. Esse movimento não passou despercebido por organizações como a OTAN, que já considera as tecnologias quânticas como peças-chave em seus planos de defesa e segurança. Coincidência ou não, muitos países passaram a adotar medidas restritivas relacionadas às tecnologias quânticas. Exportações de computadores e dispositivos quânticos têm sido controladas, e colaborações científicas internacionais, antes incentivadas, agora enfrentam regulamentações que dificultam parcerias entre cientistas de diferentes nações.

Para países como o Brasil, que infelizmente estão atrasados nessa corrida tecnológica, os efeitos desse “embargo tecnológico” são profundamente prejudiciais. Além das restrições internacionais, questões socioeconômicas têm sido um obstáculo significativo. Muitos pesquisadores brasileiros já não conseguem prosseguir com suas pesquisas em computação quântica devido aos altos custos cobrados por empresas internacionais para o acesso a dispositivos quânticos. Outro problema é a dificuldade crescente de publicar em revistas científicas de prestígio, que frequentemente exigem taxas exorbitantes, limitando a disseminação de ideias e o avanço da pesquisa.

 

O desafio quântico brasileiro

No início deste século, o Brasil despontava como referência no campo da informação quântica, a ciência fundamental por trás das tecnologias quânticas. A criação do Instituto do Milênio de Informação Quântica e, posteriormente, a formação de Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) na área possibilitaram a formação de gerações de cientistas altamente qualificados. Muitos desses pesquisadores optaram por permanecer no país, onde criaram novos grupos de pesquisa e impulsionaram linhas de investigação promissoras.

 

“É perfeitamente possível desenvolver uma ciência quântica brasileira — nacional, regional, cooperativa, inclusiva e de impacto global.”

 

No entanto, a partir de 2016, o cenário mudou drasticamente com a significativa redução dos investimentos em ciência e tecnologia. O Brasil passou a enfrentar uma fuga de cérebros sem precedentes. Pesquisadores de renome internacional, já consolidados no país, foram atraídos por melhores condições de trabalho no exterior, enquanto talentos brasileiros que atuavam fora deixaram de retornar. Como reflexo desse êxodo, hoje, praticamente todos os países que investem seriamente em tecnologias quânticas contam com cientistas brasileiros em posições de destaque.

Segundo um estudo recente da agência Bori, o Brasil ocupa atualmente a 21ª posição no número de publicações em ciência e tecnologia quânticas entre 2014 e 2023. Embora esse dado reflita o impacto de anos de escassez de recursos, também é um testemunho da resiliência da comunidade científica brasileira, que conseguiu se manter competitiva mesmo diante de condições adversas. Em contraste, os países que nos ultrapassaram nesse período têm realizado investimentos expressivos e consistentes, frequentemente na casa de bilhões de dólares, com estratégias de longo prazo.

Há, no entanto, motivos para otimismo. Desde 2023, o Brasil começou a reconhecer o papel estratégico das tecnologias quânticas, aumentando significativamente os investimentos na área. O Governo Federal, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) desempenham um papel crucial nesse novo momento. Em especial, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) lançou um programa pioneiro para impulsionar as tecnologias quânticas no estado de São Paulo, que promete colocar o Brasil em uma posição mais competitiva no cenário global.

Além disso, outras iniciativas relevantes demonstram um esforço de descentralização e democratização dos recursos. O Senai Cimatec, em Salvador, recebeu recentemente um aporte de R$ 60 milhões para a criação de um Centro de Competências em Tecnologias Quânticas, reforçando a presença da região Nordeste na vanguarda tecnológica. Da mesma forma, a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) anunciou a criação do Instituto Quanta, com financiamento de R$ 15 milhões da Finep, um marco para a região e para a ciência brasileira como um todo. Esses exemplos mostram que, apesar das desigualdades regionais ainda presentes no país, é possível compartilhar os recursos, embora ainda limitados, de forma mais equitativa. No entanto, é necessário destacar uma questão crítica: os valores das bolsas de pesquisa em muitos estados brasileiros continuam sendo baseados nos valores praticados pelo CNPq, que, em alguns casos, representam apenas 40% dos valores pagos no estado de São Paulo. Essa discrepância gera uma “fuga de cérebros interna”, com pesquisadores migrando de suas regiões para locais onde encontram melhores condições de trabalho e remuneração.

É urgente, portanto, que os valores das bolsas de pesquisa sejam ajustados nacionalmente, seguindo o exemplo positivo da Fapesp. Essa uniformização é essencial para evitar a concentração de talentos em poucos estados e para promover um desenvolvimento científico mais integrado e sustentável em todo o país. Não restam dúvidas de que, se os investimentos forem mantidos e ampliados, o Brasil poderá retomar sua posição de destaque no campo das tecnologias quânticas nos próximos anos, contribuindo não apenas para o avanço científico, mas também para a soberania tecnológica e o desenvolvimento econômico do país.

 

Ciência Quântica e Ciência Aberta – perspectivas

Apesar dessas dificuldades, existem também exemplos positivos de iniciativas que ajudam a disseminar e democratizar a ciência quântica, no âmbito da ciência aberta. No campo educacional, algumas empresas do setor têm se dedicado a formar especialistas ao nível global. A IBM, por exemplo, foi pioneira ao disponibilizar o Qiskit, um software de código aberto para programação de computadores quânticos. Além disso, a empresa oferece regularmente cursos online gratuitos e promove competições que permitem aos participantes acessar seus dispositivos quânticos, fomentando o aprendizado prático e a inovação. Outra iniciativa notável é da Xanadu, que fornece o Pennylane, uma biblioteca de software gratuita que tem ajudado cientistas e estudantes ao redor do mundo a explorar os limites da computação quântica.

No âmbito das publicações científicas, destaca-se o arXiv, uma plataforma pioneira criada há mais de três décadas, que oferece acesso gratuito a preprints (resultados científicos preliminares). Utilizado pela ampla maioria dos pesquisadores na área quântica, o arXiv tem sido essencial para a rápida disseminação do conhecimento. Outro exemplo de sucesso é o Quantum Journal, uma revista científica criada e gerida por cientistas da área. Totalmente gratuita e de alto impacto, ela rapidamente se tornou uma referência para publicações em ciência e tecnologia quântica.

Um exemplo recente dedicado à ciência quântica aberta é o instituto Open Quantum Computing, inicialmente abrigado no CERN, cujo objetivo é fornecer a todos os pesquisadores da área acesso aberto e inclusivo a software e um pool de máquinas na nuvem. Visa ampliar e disseminar o conhecimento em ciência quântica para qualquer pesquisador, independente de onde realize sua pesquisa.

Como em todos os outros domínios de pesquisa, e ainda mais nesta área tão nova e promissora, são muitos os desafios para disseminação da prática de abertura de pesquisas e resultados. Destaca-se a necessidade de mudança de cultura, já que muitos pesquisadores da área desconhecem o movimento e seu potencial. Embora já seja padrão a colaboração por meio de compartilhamento de resultados, falta conscientizar os pesquisadores da área sobre o que significa disponibilização: “o mais aberto que possível, tão fechado quanto necessário”.

 

Uma iniciativa quântica brasileira

Expostos os fatos, encerro este artigo com uma proposta. Além dos desafios já mencionados — como baixo investimento, embargo tecnológico, fuga de cérebros, entre outros — acredito que uma questão em particular intensifica ainda mais o atraso do Brasil no cenário global das tecnologias quânticas. Os países que se destacam na área reconheceram a necessidade de uma iniciativa nacional estruturada, bem financiada e de longo prazo em ciência e tecnologia quânticas. No Brasil, embora existam tentativas promissoras, essas iniciativas ainda são incipientes.

Todos os países desenvolvidos, sem exceção, assim como vários em desenvolvimento, têm implementado estratégias nacionais voltadas à ciência quântica. Em cada uma delas, destaca-se a criação de novos centros de pesquisa, que se tornam polos de atração e pontos de referência para os cientistas do setor. Esse movimento desencadeia um ciclo virtuoso: os países fortalecem a expertise de seus próprios pesquisadores, retêm talentos e atraem especialistas do exterior, promovendo um ambiente propício para colaborações de alto impacto. Esses polos não apenas impulsionam descobertas científicas de ponta, mas também se consolidam como referências globais de excelência para a comunidade científica.

Embora a maioria desses centros ou iniciativas seja financiada por recursos públicos — como o Institute for Quantum Information and Matter, do Caltech, nos Estados Unidos, e o Munich Quantum Valley, em Munique, na Alemanha — diversas instituições quânticas têm sido criadas e mantidas por patronos e parcerias público-privadas. Exemplos relevantes incluem o Quantum for Life Centre, em Copenhague, financiado pela farmacêutica Novo Nordisk, e o Wallenberg Centre for Quantum Technology, na Suécia, sustentado pela Wallenberg Foundation. (Figura 2)


Figura 2. Pesquisa no Munich Quantum Valley
(Fonte: MQV. Reprodução)

 

Está mais do que na hora de o Brasil se inspirar nesses modelos bem-sucedidos. É perfeitamente possível desenvolver uma ciência quântica brasileira — nacional, regional, cooperativa, inclusiva e de impacto global. E ainda, quando possível, disseminando e aproveitando as boas práticas da ciência aberta.

 

Capa. O Ano da Ciência e das Tecnologias Quânticas inspira o Brasil a desenvolver uma ciência quântica nacional, cooperativa, inclusiva e com impacto global.
(Fonte: Freepik.com. Reprodução)
Rafael Chaves

Rafael Chaves

Rafael Chaves é líder de pesquisa e vice-diretor do Instituto Internacional de Física (IIF-UFRN).
Rafael Chaves é líder de pesquisa e vice-diretor do Instituto Internacional de Física (IIF-UFRN).
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