Resenha
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“Não tem clima”: Os povos indígenas e as mudanças climáticas

Documentário faz retrato direto da crise climática nos territórios indígenas e da potência das narrativas que emergem da própria floresta.

 

“O indígena é um ecólogo, ele é um ambientalista, ele é um defensor da natureza. E 60% da população indígena se encontra na Amazônia. A grande tragédia é que agora que o mundo está se dando conta da importância da grande biodiversidade da Amazônia, nesse momento isso está desaparecendo e com ele todo esse conhecimento”.

“Não tem clima!” é um curta que não pede licença para existir — ele irrompe como um chamado urgente vindo da floresta, carregado de voz, memória e resistência. A declaração acima, da antropóloga, etnóloga e museóloga Berta Gleizer Ribeiro, dita há 35 anos, funciona como uma ferida aberta que o filme reaviva: mesmo com a crescente valorização global da Amazônia, pouco mudou em relação à proteção dos povos que a sustentam. O resultado é um desconforto inevitável, uma constatação dura: seguimos repetindo velhos ciclos enquanto os sinais de ruptura se acumulam diante dos nossos olhos.

O documentário nasce de uma iniciativa indígena e se constrói sobre um gesto simples e poderoso: permitir que os próprios povos falem, gravem, registrem e definam o enquadramento de suas realidades. Por meio de depoimentos videoconferenciados dos povos Marubo e Tikuna, o filme coloca em primeiro plano o cotidiano de quem sente, de forma visceral, o impacto da crise climática. A seca severa, as cheias imprevisíveis, a alteração nos ciclos das plantas e a escassez de animais não são estatísticas: são elementos que reorganizam modos de vida inteiros e colocam em risco culturas milenares.

 

“Sem terra — e sem segurança jurídica — não há cultura, não há futuro e não há floresta em pé.”

 

Essa escolha estética e política — entregar a câmera aos próprios indígenas — rompe com um histórico de mediação externa e produz um efeito imediato: o espectador não “observa” os territórios, mas é convidado a entrar na conversa, numa troca direta que humaniza a urgência e dissolve distâncias. Mendison Agostinho e Salomão Inácio Clemente, do povo Tikuna, assinam as imagens com uma sensibilidade que não se aprende em faculdade: ela nasce da intimidade com a mata, da vivência de quem lê a floresta como uma biblioteca viva.

A partir dessas narrativas, dirigidas pela historiadora e documentarista Bianca França, o curta vai lembrando algo que a ciência já sabe, mas a sociedade insiste em ignorar: os povos indígenas são responsáveis pelas áreas mais preservadas do planeta. Seus sistemas de manejo, seus saberes sobre ciclos naturais e sua relação espiritual com a terra resultam, empiricamente, em menos desmatamento, mais biodiversidade e maior capacidade de resiliência climática. Em um momento em que a Amazônia registra seu maior número de queimadas em quarenta anos — 15,6 milhões de hectares devastados em 2024 — fica ainda mais evidente o papel estratégico de quem há séculos cuida da floresta.

O filme também amplia a questão climática para além dos eventos extremos e revela o acúmulo de ameaças que se sobrepõem ao cotidiano indígena: invasões, violência, racismo, precarização da saúde e da educação, além de uma luta permanente pela demarcação territorial. A recente aprovação da PEC do Marco Temporal no Senado, apontada por juristas como uma ameaça gravíssima aos direitos constitucionais desses povos, atravessa o debate e projeta um futuro ainda mais instável. A narrativa do curta ecoa esse momento histórico, lembrando que, sem terra — e sem segurança jurídica — não há cultura, não há futuro e não há floresta em pé.

 

Ao registrar a dor, o medo e a indignação, “Não tem clima!” não cai no sensacionalismo. Pelo contrário: cada depoimento é construído com uma delicadeza que preserva a dignidade e a força das lideranças na tela. Há um cuidado profundo em manter o olhar das pessoas como centro da narrativa, permitindo que elas mesmas definam o que precisa ser dito — e como precisa ser ouvido.

Essa sensibilidade se intensifica com a trilha sonora original de Ollivia Maria Gonçalves, que se integra ao filme quase como um fio ancestral conduzindo o espectador entre passado, presente e futuro. A música não ilustra — ela convoca. E essa convocação se soma à direção firme de Bianca França, que transforma uma pesquisa acadêmica em uma obra que ultrapassa a universidade para ganhar o mundo.

O percurso do curta confirma essa força: o documentário participou de oito festivais — sete internacionais e um nacional — com exibições no Brasil (Rio de Janeiro e Goiás), Estados Unidos (Nova York), Alemanha (Berlim), Coreia do Sul (Seoul), Reino Unido (Londres), Índia e França. No Brasil, integrou a Mostra de Cinema da Associação Brasileira de História Oral – Centro-Oeste, realizada em Goiás em maio de 2025. O reconhecimento veio por meio de premiações em festivais nos Estados Unidos (New York Tri-State Film Festival, Melhor Documentário), Índia (Good Vibes International Film Awards; Melhor Documentário Curta-Metragem, Melhor Direção e Produção Feminina, Melhor Trilha Sonora Original, Melhor Fotografia, Melhor Elenco de Documentário) e França (Zeal International Film Festival, Melhor Documentário Curta-Metragem).

 

“Se não está tudo bem para eles, não estará para nós.”

 

O filme recebeu o reconhecimento que merecia justamente por fazer o que o cinema documental muitas vezes hesita: ceder o protagonismo. Salomão Inácio Clemente e Mendison Agostinho (povo Tikuna), responsáveis pelas imagens, e as lideranças Cleobina Torres Florentino (povo Tikuna), José Fernandes Mendonça (povo Tikuna) e Beto Marubo (União dos Povos do Vale do Javari), elenco do documentário, ganharam prêmios individuais que celebram não apenas suas participações, mas sua autoria na construção dessa narrativa coletiva.

No fim, “Não tem clima!” não se limita a registrar problemas — ele reafirma a centralidade das narrativas indígenas na busca por soluções. A pergunta que atravessa o curta, “qual será o futuro desses povos — e do planeta?”, funciona menos como alerta e mais como lembrete de que não há caminhos possíveis sem aqueles que sempre souberam cuidar da Terra. E, de forma sutil, o filme devolve ao público o desconforto necessário: se não está tudo bem para eles, não estará para nós.

Em tempos de retrocessos políticos, intensificação de conflitos e aceleração das mudanças climáticas, o curta se torna mais do que um registro: é um chamado ético. Um convite à escuta. Um pedido para que paremos de repetir que “não tem clima” para debate, para ação ou para mudança — quando, na verdade, o que não temos é tempo.

 

Não tem clima!

Filme de 2024

Direção: Bianca Luiza Freire de Castro França

Trilha sonora original: Ollivia Maria Gonçalves

Edição e montagem: Bianca Luiza Freire de Castro França

Imagens: Mendison Agostinho e Salomão Inácio Clemente

Gênero: Documentário

Duração: 28:08

Classificação: livre

 

Assista ao documentário aqui:

Chris Bueno

Chris Bueno

Chris Bueno é jornalista, escritora, divulgadora de ciências, editora-executiva da revista Ciência & Cultura, e mãe apaixonada por escrever (especialmente sobre ciência).
Chris Bueno é jornalista, escritora, divulgadora de ciências, editora-executiva da revista Ciência & Cultura, e mãe apaixonada por escrever (especialmente sobre ciência).
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