A pioneira da ciência que cultivou esperança em solo brasileiro
O ano de 2024 foi escolhido para uma grande e merecida homenagem a uma das maiores cientistas brasileiras, cuja carreira foi reconhecida nacional e internacionalmente, inclusive com a indicação para receber o prêmio Nobel em Química. Em seu tempo, porém, pouco se falava sobre a importância da popularização da ciência; além disso, muitos jovens pesquisadores não conhecem sua carreira. Consequentemente, resgatar a história de momentos marcantes de sua vida e de sua carreira brilhante nesta edição especial da Ciência & Cultura da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), instituição que ela tanto admirava, representa um tributo à ciência e, espera-se, uma inspiração para novas gerações. A edição conta com depoimentos, lembranças e resgate de resultados científicos e participações decisivas na agricultura.
Em 28 de novembro de 1924, em Aussig, nos Sudetos, na então Tchecoslováquia, nascia Johanna, filha primogênita de Paul e Margarethe Kubelka. Algumas fotos da juventude a mostram feliz nessa região caracterizada por uma cadeia de montanhas entre a Tchéquia, a Polônia e a Alemanha. Na época com maioria da população de origem alemã, os Sudetos sempre foram objeto de conflitos étnicos. Johanna foi agraciada com uma família com visão muito além de seu tempo. No diário de sua mãe, uma declaração chama a atenção: “Não devemos falar para nossa filha que seu destino estará alcançado quando encontrar um marido. Devemos dizer que sua vitória foi atingida quando se orgulhar do que realizou”. É fácil também imaginar que conversas sobre ciência faziam parte do cotidiano familiar, pois seu pai era livre-docente de química na Universidade de Praga, cidade onde Johanna fez a escola secundária e viveu até o final da Segunda Guerra Mundial.
“Desde seu primeiro dia de trabalho, foi visionária em entender que era necessário redescobrir a ciência agronômica para aplicá-la aos trópicos.”
Na juventude passou pela experiência que sempre relatou como a pior de sua vida, a mais difícil: a guerra. Na segunda guerra, a região caiu sob o domínio da Alemanha e seu pai foi preso, porque auxiliava os judeus a fugirem da perseguição nazista. Finda a guerra, a região foi recuperada pela então Tchecoslováquia e as populações germânicas foram expulsas ou exterminadas em massa, incluindo sua mãe, presa em 1945 e que faleceu em um campo de concentração. Johanna sempre referia à morte da mãe com profunda tristeza. Viver e sobreviver aos horrores da guerra certamente a moldou para ser forte e enfrentar as mais duras situações. Seu pai conseguiu fugir para a Alemanha, para onde Johanna foi expulsa e viveu como trabalhadora rural até que seu pai a encontrasse. Ele então a ajudou a encontrar outro emprego em uma fazenda perto de Munique, despertando sua vocação agrícola. Em 1946 ingressou no curso de Agronomia da Universidade de Munique, onde se graduou em 1950. Em uma época de baixíssimo conhecimento sobre microrganismos na agricultura e a importância da fixação biológica do nitrogênio, sua monografia de conclusão de curso foi “Bactérias de fixação assimbiótica de nitrogênio e a possibilidade de seu aproveitamento para a agricultura”, o primeiro passo traçando seu futuro.
Em 1946, o pai de Johanna veio para o Brasil, onde trabalhou no Departamento Nacional de Produção Mineral e foi um dos primeiros bolsistas do recém criado Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq). Insistiu para a filha vir também para o Brasil. Assim, o ano de 1950 foi marcante, pois, além de graduar-se, casou-se com o colega Jurgen Döbereiner e vieram para o Brasil. Aos que tiveram o privilégio de conhecer Johanna, não há como esquecer como era determinada em tudo que almejava. Não é difícil imaginar a sua insistência solicitando emprego para Álvaro Barcellos Fagundes, diretor do Serviço Nacional de Pesquisas Agronômicas do Ministério da Agricultura (SNPA), instituição antecessora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Álvaro Fagundes estava autorizado a contratar um especialista estrangeiro para dar início às investigações em microbiologia do solo. A candidata à vaga era estrangeira, mas o diploma de agronomia havia sido obtido no caos do pós-guerra, sem aulas práticas em laboratórios e a monografia era apenas uma revisão teórica. Segundo relato da própria Johanna, Álvaro Fagundes recomendou que estudasse e voltasse em 15 dias, a situação se repetiu pela segunda vez e, na terceira, ela desabafou: “Quero trabalhar, mesmo sem ganhar nada”. O apelo comoveu o diretor e presenteou o país com o início de uma carreira brilhante. Johanna sempre foi de uma sinceridade e honestidade desconcertantes. Mesmo já tendo acumulado vários prêmios, comentou em uma entrevista: “Eu não sabia nada, nunca tinha trabalhado em laboratório, e ele, com uma paciência incrível, me ajudou. Mas foi preciso mais de um ano para eu aprender o bê-á-bá em microbiologia”. Já em 1951 assinou com Álvaro Fagundes seu primeiro trabalho científico, “Influência da cobertura do solo sobre a flora microbiana”, apresentado em reunião da Sociedade Brasileira de Ciência do Solo, no Recife.
“Abriu as portas para muitas mulheres, que deram continuidade a suas pesquisas.”
Desde seu primeiro dia de trabalho, foi visionária em entender que era necessário redescobrir a ciência agronômica para aplicá-la aos trópicos. Em 1953 apresentou o trabalho “Azotobacter em solos ácidos” e não parou mais. Estava fascinada pela imensidão de possibilidades científicas, visto que todo o conhecimento da época era baseado em regiões temperadas. Nesse trabalho, concluiu que o comportamento da bactéria “nos nossos solos” diferia do relatado na Europa e na América do Norte. Emblemática, a frase já definia onde seria seu lar e onde estaria seu coração para sempre: “nossos” solos. Em 1956, se naturalizou brasileira e tinha profundo amor e respeito ao Brasil, considerado sua verdadeira pátria. As abordagens de solos ácidos, com toxidez de alumínio, temperaturas elevadas, abertura dos Cerrados e diversidade na Amazônia sempre foram muito fortes em suas pesquisas. A fria cadeia de montanhas da Europa foi substituída pela umidade e temperaturas escaldantes de Seropédica, no Rio de Janeiro, na casa 19 da rua Colina, a apenas dez minutos de caminhada do laboratório, onde viveu desde março de 1952 até o final de sua vida. Foi também onde criou os três filhos, Maria Luisa (Marlis), Christian e Lorenz e onde recebia, com vários preparativos, os netos. Seus filhos trazem um depoimento comovente neste suplemento. Comentava como era bom trabalhar ao lado de casa, almoçar com a família e jamais relatou que os filhos tivessem representado qualquer obstáculo à sua carreira. Provavelmente graças a essa harmonia entre ser mulher, mãe e cientista, não via nenhuma limitação e nunca teve nenhum tipo de discriminação na escolha de alunas ou ao contratar grávidas, mães. Uma mulher que agia assim há meio século, sendo que, ainda hoje, vivenciamos histórias descabidas de preconceito contra mulheres, de dúvidas sobre a capacidade científica frente à maternidade. Graças a essa atitude, abriu as portas para muitas mulheres que deram continuidade a suas pesquisas.
Uma das maiores contribuições da agora conhecida como “Dra. Johanna” envolveu, no momento certo, uma combinação fantástica de conhecimento científico, personalidade forte e capacidade de convencimento. Foi no início da década de 1960, com a criação de uma comissão para estudar a “nova cultura” da soja. Segundo seu depoimento, “Os geneticistas da comissão, todos com formação norte-americana, achavam que trabalhar com bactérias era brincadeira de cientista, que não tinha aplicação alguma. O melhoramento genético da soja nos Estados Unidos havia sido feito com adubação nitrogenada. Eles selecionaram a soja que respondia melhor à adubação nitrogenada. Mas eu reagi. Nas reuniões tivemos uma discussão muito forte tentando convencê-los a fazer o melhoramento da soja sem adubo nitrogenado”. Quem conheceu Johanna usa facilmente o imaginário para reconstruir a cena, ela furiosa, determinada, saindo vencedora dos embates. Hoje somos o maior produtor e exportador mundial de soja, não restando dúvidas de que isso só foi possível graças à fixação biológica do nitrogênio, pois jamais teríamos condições econômicas de usar fertilizantes nitrogenados, cotados em dólar e majoritariamente importados. As estimativas de economia pela substituição dos fertilizantes nitrogenados por bactérias fixadoras de nitrogênio na soja foram, na última safra de 2023/24, da ordem U$ 25 bilhões. É a maior marca deixada pela Johanna na agricultura brasileira.
“Teve uma capacidade incrível de formar recursos humanos, hoje espalhados por todos os cantos do Brasil e em outros laboratórios do mundo, o que permitiu a perpetuação de suas linhas de pesquisa.”
Em termos científicos globais, porém, sua maior projeção se deu pelos estudos com bactérias fixadoras de nitrogênio em interações associativas ou endofíticas com gramíneas. Em 1955, relatou a descoberta de bactérias da espécie Beijerinckia, capazes de fixar nitrogênio assimbioticamente em solos ácidos. Em 1958, em parceria com outros pesquisadores, publicou na Revista Brasileira de Biologia um trabalho pioneiro sobre a fixação biológica do nitrogênio em cana-de-açúcar, associada a uma nova espécie de bactéria, Beijerinckia fluminensis, mas os resultados apresentados foram recebidos com ceticismo. Ser desafiada era o combustível que Johanna mais gostava para continuar suas pesquisas. Nos anos 1970, realizou seu trabalho mais importante, relatando a associação entre bactérias do gênero Spirillum (posteriormente Azospirillum) e gramíneas. Gostava de contar que a ideia veio pelo costume que tinha de deitar na rede por alguns minutos após o almoço, ao observar o gramado que nunca havia recebido fertilizante nitrogenado e sempre ficava verde quando chegava a época das chuvas. A robustez dos dados agora não deixava dúvidas e o mundo finalmente a reverenciou. Mas sempre estava preocupada com o Brasil, sendo obstinada, desde a implementação do Programa Nacional do Álcool (Pró-Álcool), até o final da vida, em maximizar a contribuição de bactérias fixadoras de nitrogênio com a cana-de-açúcar.
O brilhantismo de Johanna em diferentes situações será comentado neste suplemento. Mas não é demasiado mencionar alguns pontos de sua personalidade, vindo de pessoas que conviveram com ela. Tinha um grande poder de observação no laboratório e no campo e uma mente privilegiada e incansável em formular hipóteses científicas a partir dessas observações. Era generosa no compartilhamento de suas ideias e, quando alguém comentava sobre “roubar ideias”, respondia sem titubear “Podem levar as ideias que quiserem, tenho tantas, não vai fazer falta”. Era um prodígio na redação científica, em poucas horas reformulava e “dava outra vida” a um trabalho científico que poderia ter levado semanas ou meses para ser escrito. Como poucos, lutava para conseguir concretizar suas pesquisas; com a pasta na mão, batia em todas as portas na busca por recursos financeiros, sempre apresentando resultados científicos para justificar a concessão. Essa luta incansável foi responsável pelo crescimento de um laboratório, que passou a ser uma unidade e, depois, um centro de pesquisa. Seu legado foi tão importante que, na lista dos cientistas mais relevantes do mundo na área de Agronomia, mesmo após um quarto de século de sua morte, ela continua como uma das mais citadas. Teve uma capacidade incrível de formar recursos humanos, hoje espalhados por todos os cantos do Brasil e em outros laboratórios do mundo, o que permitiu a perpetuação de suas linhas de pesquisa. Muito importante, se hoje se fala em agricultura sustentável, regenerativa, ela já trabalhava nesse conceito desde a década de 1950. Uma cientista à frente do seu tempo.
Dra. Johanna foi nos deixando aos poucos, uma mente prodigiosa na qual as memórias iam se apagando. Partiu em 5 de outubro de 2000, pouco antes de completar 76 anos. Reverenciamos neste suplemento suas memoráveis contribuições às ciências agrícolas no Brasil e no mundo e os ensinamentos que deixou sobre a importância na formação de recursos humanos, para o reconhecimento das mulheres na ciência e para o fortalecimento da atuação em sociedades e academias científicas.
Observação:
Conteúdo retirado de várias fontes (CD-ROM “Johanna Döbereiner: 50 anos dedicados à Pesquisa em Microbiologia do Solo”, Embrapa Agrobiologia; https://www.brasilagricola.com/2012/03/pesquisa-que-revolucionou-agricultura.html; https://memoria.cnpq.br/pioneiras-view/-/journal_content/56_INSTANCE_a6MO/10157/902973?p_p_state=pop_up&_56_INSTANCE_a6MO_view%E2%80%A6; livro de K.H. Michahelles, ”Johanna Döbereiner: uma vida dedicada à ciência”) e de lembranças pessoais.
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