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Memórias de nossa mãe!

Filhos fazem um tributo familiar para celebrar centenário de Johanna Döbereiner

 

A chegada ao Brasil em 1950 foi marcada por positivismo e a esperança de uma vida melhor. As lembranças dos nossos pais, de perda, dor, fome e deslocamento, nos acompanharam por toda a vida. Muitas vezes mencionavam os tempos difíceis da guerra, mas sempre se mostravam eternamente gratos pela vida, pela acolhida no Brasil pelos brasileiros, pelo trabalho, pelas amizades e pelas experiências vividas no km 47 da antiga Rio — São Paulo, no Campus da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

A paixão de nossa mãe pelo trabalho sempre foi impressionante, era a sua prioridade. Nós, os filhos, aprendemos desde cedo a sermos independentes, pois naquela época víamos nossos pais apenas nas refeições e na hora de dormir. Durante nossa infância, contamos normalmente com a ajuda de babás alemãs, uma tia e antigas amizades da Prússia Oriental para cuidar de nós.

 

“Tínhamos muito orgulho dos prêmios que ela recebia, e as conversas sobre o laboratório mantinham a ciência sempre presente em nossas vidas.”

 

Em casa, a cozinha ficava a cargo das auxiliares, enquanto nossa mãe se dedicava à preparação de geleias — de amora, laranja, pitanga e jabuticaba — e biscoitos de Natal. Ela raramente se envolvia nas demais tarefas domésticas. Nossas refeições eram momentos em família, no café da manhã, almoço e jantar. Com o tempo, os cardápios foram se adaptando à culinária brasileira, pois as empregadas não se mantinham no emprego com pratos da sua terra natal.

Nos momentos de lazer, nossa mãe adorava fazer crochê e tricô. Costurava todos os seus vestidos e os da Marlis também. Aos sábados, íamos às compras no km 49 (Seropédica) e depois no supermercado Casa Sendas, em Campo Grande. Quando sobrava tempo, visitávamos o centro para comprar tecidos nas Casas Pernambucanas. No caminho ao sítio, parávamos na loja japonesa em Itaguaí para comprar ovos, frutas e legumes frescos. Os finais de semana frequentemente passávamos no Sítio e Reserva Porangaba (RPPN) onde ela descansava e adorava levar os netos nas férias escolares. (Figura 1)


Figura 1. Johanna Döbereiner em sua casa em em Seropédica, interior do Rio de Janeiro.
(Foto: Arquivo pessoal. Reprodução)

 

Nossa mãe raramente tirava férias para si mesma. Fizemos uma viagem toda a família acampando pelo oeste dos Estados Unidos, durante o seu Mestrado em Madison/ Wisconsin no início da década de 1960. Nos últimos nove anos de sua vida, passou o mês de janeiro com Marlis em Stellenbosch, na África do Sul. Lá, além de curtir os netos, fomentava pesquisas e intercâmbios com as universidades locais e aproveitava para comprar belas lãs nos armarinhos.

Ela adorava a praia e sempre voltava renovada após um dia de sol em Itacuruçá, Praia Grande ou Grumari. Outra paixão era descansar em sua rede, onde, após o almoço, passava cerca de 20 minutos ouvindo notícias no rádio antes de voltar ao trabalho no laboratório.

Durante muitos anos, nossa mãe fez aulas de ginástica com Dona Frida (boa amiga), ao som de piano ao vivo no Clube Social do km 47. Com o passar do tempo, ela passou a caminhar do laboratório até em casa, consciente da importância de se manter ativa para preservar a saúde.

 

“Um dos prêmios que recebeu financiou a compra do Sítio Porangaba, perto de Itaguaí, onde a família se reunia para almoços e conversas nos fins de semana a partir de 1980.”

 

A televisão só chegou em nossa casa nos anos 1970, quando os filhos já haviam saído de casa. À noite, ela assistia aos noticiários enquanto fazia tricô ou crochê, e depois revisava teses e trabalhos científicos ao som de música clássica.

Nossa mãe também adorava viajar e participar de reuniões, congressos e cerimônias. De suas viagens, sempre trazia sementes e presentes exóticos, muitos dos quais ainda guardamos com carinho. Tínhamos muito orgulho dos prêmios que ela recebia, e as conversas sobre o laboratório mantinham a ciência sempre presente em nossas vidas.

O Natal tinha uma importância especial em nossa família. Quando o aniversário de nossa mãe se aproximava, no dia 28 de novembro, sabíamos que os preparativos começariam. A primeira tarefa era comprar nozes, castanhas e frutas secas na Rua da Alfândega, no Rio de Janeiro. Ela voltava de ônibus com grandes pacotes, contendo os ingredientes dos biscoitos que ajudava Papai Noel a preparar.

Esses biscoitos eram feitos à noite, e nós, crianças, adormecíamos com o delicioso aroma de cravo, canela e noz-moscada no ar. A primeira leva de biscoitos tinha que estar pronta para o Dia de São Nicolau, em 6 de dezembro. Na véspera, colocávamos as botas de papai na varanda da frente. Na manhã seguinte, encontrávamos biscoitos, frutas secas e, às vezes, batatas, cenouras e pedras, caso não tivéssemos nos comportado bem. Havia também uma vara ao lado das botas, e precisávamos nos comportar até o Natal para garantir nossos presentes.

 

“Sua força de vontade de trabalhar no laboratório persistiu até o fim, com grande apoio de colegas e ex-alunos da Embrapa.”

 

As festividades começavam no dia 24 de dezembro, com o almoço de sopa de lentilha com linguiça. A árvore de Natal era montada após o almoço, e à noite vestíamos sempre roupas novas. O jantar consistia em camarão como entrada, peixe assado com alcaparras e batatas como prato principal, e a sobremesa era “Welfenspeise”. Após o jantar, ouvíamos canções natalinas, e ao som de um sininho, éramos convidados a abrir os presentes.

No dia 25, o café da manhã incluía “Stollen”, e o almoço era peru assado com “Knödel” de ameixa e repolho roxo. Até hoje, Marlis mantém essas tradições, adaptando-as às tradições inglesas do marido, David.

Nosso Ano Novo muitas vezes era celebrado na Ilha do Governador com os tios Werner e Glycia Kubelka e primos Claire, Beatriz e Paulo. Apesar da liberdade, sempre tivemos responsabilidades. Nossa mãe, relutante, acompanhava Marlis aos bailes e festinhas da universidade, pois as amigas só podiam ir se uma das mães estivesse presente.

Em 1974, nossa mãe costurou o vestido de noiva de Marlis na velha máquina de costura “Elna”. Esteve presente no nascimento de seus três netos, ajudando a cuidar de Stephan, Philip e Vivian. Um dos prêmios que recebeu financiou a compra do Sítio Porangaba, perto de Itaguaí, onde a família se reunia para almoços e conversas nos fins de semana a partir de 1980.

Na década de 1980, nossa mãe passou por uma cirurgia na perna e mais tarde, por uma cirurgia de ponte de safena. Nos anos 1990, começou a se queixar de perda de memória, agravada pela perda de nosso irmão Lorenz em 1996. Nos últimos anos de sua vida, já não conseguíamos ter as mesmas conversas, mas sua força de vontade de trabalhar no laboratório persistiu até o fim, com grande apoio de colegas e ex-alunos da Embrapa.

Nossos pais sendo imigrantes, sempre valorizaram a nova vida que construíram no Brasil. Depois de tudo o que passaram durante a Segunda Guerra Mundial, o Brasil foi um verdadeiro paraíso para eles. Tornaram-se resilientes, sempre enfrentando os desafios com coragem e gratidão.

 

Capa. Johanna Döbereiner com seu marido e filhos em 1957.
(Foto: Arquivo pessoal. Reprodução)
Marlis Arkcoll

Marlis Arkcoll

Marlis Arkcoll é economista pela Unicamp, diretora de Planejamento e Orçamento da SUFRAMA, fundadora e diretora da empresa Resulta Exporters (Pty) Ltd.
Marlis Arkcoll é economista pela Unicamp, diretora de Planejamento e Orçamento da SUFRAMA, fundadora e diretora da empresa Resulta Exporters (Pty) Ltd.
Christian Döbereiner é geólogo pela UFRJ, PhD pela Universidade de Dundee com carreira no setor de óleo e gás e desenvolvendo um modelo de negócio sustentável em corredor ecológico da Serra Geral (SC).
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