C&C 3S24 - editorial - capa site

O legado transformador de Berta Gleizer Ribeiro

A antropologia como ferramenta de mudança social

 

Berta Gleizer Ribeiro (Beltz, Romênia, 02 de outubro de 1924 — Rio de Janeiro, 17 de novembro de 1997) foi uma antropóloga, etnóloga, geógrafa e historiadora de formação, museóloga com registro profissional; escritora, pesquisadora; produtora de audiovisual e divulgadora científica. Sua trajetória acadêmica e profissional destaca-se não apenas por sua vasta produção científica, mas também por sua militância em favor da preservação da cultura e dos direitos dos povos indígenas. Ao longo de sua carreira, Berta dedicou-se especialmente ao estudo dos povos indígenas da Amazônia. Sua obra abordou as artes da vida amazônica, destacando o valor simbólico e estético dos objetos do cotidiano dos povos indígenas e suas implicações ecológicas.

 

“Sua trajetória acadêmica e profissional destaca-se não apenas por sua vasta produção científica, mas também por sua militância em favor da preservação da cultura e dos direitos dos povos indígenas.”

 

Nascida na Romênia, em 1924, e imigrante no Brasil, Berta encontrou seu caminho na antropologia através de sua parceria de vida com o também antropólogo e político brasileiro Darcy Ribeiro, com quem compartilhou muitos anos de colaboração intelectual e pessoal. No entanto, é importante sublinhar que Berta construiu uma carreira própria, com contribuições significativas para a antropologia brasileira nos campos dos estudos sobre cultura material e arte visual dos indígenas brasileiros e nos estudos sobre adaptabilidade humana e tecnologia indígena, destacando-se suas pesquisas sobre a TecEconomia indígena, que exploram o uso social das tecnologias tradicionais para promover uma convivência sustentável com o meio ambiente.

 

“Meu currículo revela um lapso de 18 anos, intervalo em que me desliguei do Museu Nacional. Embora não tenha podido realizar obra própria, acho que contribuí para a etnologia brasileira e para o que chamamos “causa indígena”, na medida em que ajudei Darcy Ribeiro em seus trabalhos, principalmente na série que ele intitulou Antropologia da Civilização escrita – com exceção de Os índios e a civilização – no exílio.”

(Trecho do Memorial Acadêmico de Berta Gleizer Ribeiro, datado de 5 de maio de 1994)

 

Formada em Geografia e História na década de 1950, na antiga Universidade do Distrito Federal, atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Berta começou a se envolver na antropologia por meio do contato com Darcy Ribeiro, com quem foi casada por mais de duas décadas. A parceria entre os dois era mais do que um vínculo conjugal; tratava-se de uma colaboração acadêmica mútua, com Berta desempenhando um papel significativo em muitos dos projetos que Darcy desenvolveu. Entretanto, com o tempo, Berta começou a se destacar de forma independente, especialmente após o divórcio do casal, em 1974. A partir desse ponto, sua produção acadêmica se intensificou, focando-se em suas pesquisas etnográficas e no estudo da cultura material dos povos indígenas brasileiros.

 

“Os estudos de Berta sobre as práticas sustentáveis dos povos indígenas oferecem importantes lições para os desafios contemporâneos de conservação ambiental e uso responsável dos recursos naturais.”

 

Embora muitas vezes tenham sido tratados como um casal acadêmico inseparável, Berta possuía uma abordagem distinta. Seus interesses estavam voltados para a cultura material e a relação entre sociedade e ambiente, enquanto Darcy era mais focado nas grandes questões político-sociais da América Latina. Berta, portanto, não viveu à sombra de Darcy; pelo contrário, construiu uma trajetória sólida, com contribuições inovadoras e profundas para a antropologia brasileira. Através dos estudos da técnica indígena, Berta abordava questões sobre a arte indígena e a preservação do meio-ambiente, e o quanto os povos indígenas brasileiros têm a nos ensinar sobre um convívio respeitoso com a natureza.

 

“Uma árvore lhes basta para o necessário da vida: com folhas se cobrem, com frutos se sustentam, com ramos se armam, com os troncos se abrigam e sobre a casca navegam.”

(Sermão do Padre Antônio Vieira, Sermão da Epifania, 1662, Capela Real em Lisboa, Portugal – Citado por Berta Ribeiro em entrevista quando recebeu em 1988 o Prêmio Érico Vanucci Mendes para trabalhos de Preservação da Memória Nacional, Tradições Populares e Traços Culturais durante a 40ª RASBPC)

 

O conceito de TecEconomia cunhado por ela é um dos pilares de sua contribuição teórica. A TecEconomia refere-se ao modo como os povos indígenas produzem e utilizam tecnologias sustentáveis para sobreviver em seus ambientes naturais, principalmente na floresta tropical. Os estudos de Berta demonstraram como essas tecnologias podem ser aplicadas a contextos contemporâneos para promover a conservação ambiental e uma exploração mais sustentável dos recursos naturais.

 

“ Eu acho que é chegado o momento em que nós antropólogos, linguistas… e as pessoas envolvidas com a questão indígena… vai ser que, o problema da gente vai ser de que o indígena é também um ecólogo, ele é um ambientalista, ele é um defensor da natureza. […] Na medida em que nós defendemos a autonomia cultural do índio, aprendemos o manejo da natureza com ele… […] A grande tragédia é que agora que o mundo está se dando conta da biodiversidade da Amazônia, a grande quantidade de plantas e microrganismos, da fauna e flora… é que o índio está desaparecendo e com ele todo esse conhecimento. Tão urgente quanto estudar as línguas indígenas que fazem parte do patrimônio cultural da humanidade, é importante estudar o conhecimento da natureza dos índios e o modo como eles usam a terra. O índio não desmata como a gente: aquela enorme fazenda de gado, 100 mil hectares… 10 mil hectares… aquela loucura! O índio faz uma roça de 1 hectare que dá para ele e sua família viverem por mais ou menos um ano. E deixa um corredor ecológico no entorno. Quando ele deixa aquela roça de repouso, durante uns dois ou três anos… aquela floresta vai se refazendo. Ele também deixa uma porção de plantas para os animais comerem: ingá, pupunha, umari… então, ele planta para ele comer e para o bicho também. Há um conhecimento, um manejo. Ele sabe dentro de seus mitos e superstições que ele só irá sobreviver, se ele deixar viver também os outros bichos.”

(Entrevista de Berta Gleizer Ribeiro para o Programa ―Tome Ciência‖ da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência em 1990, por conta do lançamento do livro Amazônia Urgente: cinco séculos de História e Ecologia.)

 

Berta abordava questões que partiam desde o manejo de recursos hídricos e agrícolas até a produção de cerâmica, fiação e plumária entre os povos indígenas. Para a antropóloga, esses conhecimentos tradicionais não eram apenas aspectos culturais, mas estratégias sofisticadas de adaptação que poderiam ensinar muito à sociedade contemporânea sobre sustentabilidade e convivência harmoniosa com o meio ambiente​. Os estudos de Berta sobre as práticas sustentáveis dos povos indígenas oferecem importantes lições para os desafios contemporâneos de conservação ambiental e uso responsável dos recursos naturais.

 

“Um museu não é um arquivo morto, uma atividade perdulária, como é geralmente considerado, e sim uma instituição com objetivos didáticos, científicos e político-polêmicos; ao mesmo tempo que uma área de lazer e reflexão.”

(Anteprojeto do Museu de Educação para o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos do Ministério da Educação (MEC) escrito por Berta Ribeiro em 1989)

 

Além de seu trabalho antropológico, Berta também desempenhou um importante papel na museologia brasileira. Ela foi responsável pela formação de diversas coleções etnográficas em instituições como o Museu Nacional, Museu do Índio, no Rio de Janeiro e o Museu Paraense Emílio Goeldi. Berta via o museu não como um simples repositório de artefatos, mas como uma ferramenta pedagógica para promover o conhecimento e a valorização das culturas indígenas. Nesse sentido, foi pioneira ao propor exposições que não apenas exibiam objetos, mas que contavam as histórias das populações indígenas, suas tecnologias e suas interações com o ambiente​. Berta dedicou-se ao ensino, conectando artefatos indígenas às sociedades que os produziram e ao contexto etnográfico. Sua atuação como colecionadora e museóloga reforçou o valor didático e cultural dos museus.

Um dos seus maiores feitos foi a exposição “Amazônia Urgente: cinco séculos de história e ecologia”, exibida gratuitamente no hall da estação de metrô da Carioca no Rio de Janeiro (RJ), no começo da década de 1990, na qual Berta procurou mostrar a íntima relação dos povos amazônicos com a floresta, destacando a importância de suas práticas sustentáveis para a preservação dos recursos naturais​. Essa exposição marcou um ponto de inflexão na forma como os museus no Brasil abordavam a cultura indígena, incentivando a reflexão sobre o papel dos museus na preservação do patrimônio e do conhecimento tradicional.

 

“Sua obra representa uma ponte entre o conhecimento tradicional dos povos indígenas e as ciências sociais modernas, oferecendo um exemplo notável de como as práticas ancestrais podem ser aplicadas para enfrentar os desafios do presente.”

 

Seu legado significativo na antropologia brasileira pode ser observado quando, ainda em vida, ela foi homenageada pela comunidade científica em diversas ocasiões, sendo reconhecida por sua dedicação à pesquisa e à preservação da cultura indígena. Em 1995, pouco antes de entrar em coma, devido ao câncer cerebral que a tirou do mundo em 1997, foi condecorada com a Ordem Nacional do Mérito Científico pelo governo brasileiro, uma das mais altas honrarias concedidas a cientistas no país.

Berta Gleizer Ribeiro foi uma figura de destaque na história da antropologia no Brasil. O centenário de Berta, celebrado em outubro de 2024, é uma oportunidade para homenagear sua significativa contribuição à antropologia brasileira, mas também para refletir sobre a necessidade de um maior reconhecimento das mulheres na construção do campo científico latino-americano. Sua obra representa uma ponte entre o conhecimento tradicional dos povos indígenas e as ciências sociais modernas, oferecendo um exemplo notável de como as práticas ancestrais podem ser aplicadas para enfrentar os desafios do presente. Com uma carreira marcada pelo rigor científico, comprometimento com os povos indígenas brasileiros e uma paixão inabalável pelo conhecimento, Berta Ribeiro consolidou-se como uma das grandes intelectuais de sua época, cujo legado permanece vivo nas discussões sobre sustentabilidade e preservação da cultura dos povos indígenas brasileiros. Viva Berta Ribeiro!

 

Capa. Berta Gleizer Ribeiro: antropóloga e defensora dos direitos e cultura dos povos indígenas da Amazônia.
(Fonte: Fundação Darcy Ribeiro. Reprodução)
Bianca Luiza Freire de Castro França

Bianca Luiza Freire de Castro França

Bianca Luiza Freire de Castro França é historiadora, doutora em História, Política e Bens Culturais (PPHPBC/FGV), mestre em Preservação de Acervos de Ciência e Tecnologia (PPACT/MAST), especialista em Docência (IFMG/Arcos) e em Sociologia (UCAM) e Licenciada em História (UNIRIO). Autora da tese “Uma Civilização Vegetal: A contribuição de Berta G. Ribeiro para a Antropologia brasileira no século XX”; e diretora e produtora do documentário “Para Berta, com amor”.
Bianca Luiza Freire de Castro França é historiadora, doutora em História, Política e Bens Culturais (PPHPBC/FGV), mestre em Preservação de Acervos de Ciência e Tecnologia (PPACT/MAST), especialista em Docência (IFMG/Arcos) e em Sociologia (UCAM) e Licenciada em História (UNIRIO). Autora da tese “Uma Civilização Vegetal: A contribuição de Berta G. Ribeiro para a Antropologia brasileira no…
Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on whatsapp
WhatsApp
Share on email
Email
Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on email
Palavras-chaves
CATEGORIAS

Relacionados