No dia 08-06-1948, por iniciativa de José Reis, Maurício Oscar da Rocha e Silva e Paulo Sawaya, no auditório da Associação Paulista de Medicina, em São Paulo, foi fundada a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Quem hoje quiser fazer um levantamento da Ciência no Brasil tem, forçosamente, de reportar-se aos documentos impressos por esta Sociedade. Não é momento, nem teríamos o tempo, para fazermos aqui um tal levantamento, porém citaremos alguns aspectos do seu desenvolvimento. Vejamos, inicialmente, como progrediram alguns dos primeiros trabalhos publicados por Ciência & Cultura, o órgão de divulgação da SBPC.
O primeiro é o de Mario Autuori; nele está a descoberta que as içás põe dois tipos de ovos: um normal que se desenvolve em formiga e outro, enorme, que ela usa para alimentar as primeiras formiguinhas. Diz mais que as içás regurgitam o fungo, que levam da colmeia-mãe para a nova morada, 48 horas após o início da perfuração. Hoje, Autuori é Diretor da Fundação Jardim Zoológico de São Paulo e suas pesquisas em formigas estão sendo prosseguidas por Elpídio Amante no Instituto Biológico do Estado de São Paulo, além de terem chamado a atenção de um bom número de entomologistas para as saúvas.
O segundo artigo em Ciência & Cultura foi o de Oscar Sala sobre o gerador eletrostático, de Van de Graaf, de 3,5 milhões de eletrovolts, que foi construído por ele e sua equipe na USP, de 1952-1954. Quatorze físicos se doutoraram usando tal equipamento. Hoje, 1973, esse mesmo grupo acaba de montar um novo acelerador muito mais potente, de 22 milhões de eletrovolts, e construiu “in loco” um computador eletrônico para receber e analisar os dados produzidos nos experimentos e inventou todo um sistema de fontes de íons pata injeção na nova máquina.
“Imprescindível ao progresso científico é o ensino universitário.”
Em 1949, os professores Mauricio Oscar da Rocha e Silva e Wilson Beraldo publicaram a primeira referência a um novo princípio liberado do plasma, que foi por eles designado Bradicinina, e que demostraram ser um polipeptídeo de 8 a 10 aminoácidos usando o método, moderníssimo na época, da cromatografia de papel. Hoje, a Bradicinina já mereceu quase uma centena de simpósios internacionais e há mais de duas mil publicações feitas sobre ela, constituindo um justificado orgulho da farmacologia e bioquímica brasileiras.
Em dezembro de 1948 o prof. Gleb Wataghin, o prof. Marcelo Damy de Souza Santos e o Dr. César M. Lattes fazem a primeira série de conferências patrocinadas pela SBPC, que marcaram época na física nacional, já que tiveram por assunto os raios cósmicos e a produção artificial de mésons, tendo este último assunto conferido justa fama ao prof. Lattes.
Alcides Carvalho e Carlos Arnaldo Krug publicaram para o grande público científico seus primeiros resultados sobre a biologia da flor do cafeeiro, em que se utilizam, dentro outras, da técnica, ainda atual, de usar mutações com viabilidade equivalentes ao alelo selvagem. Hoje, 25 anos depois, podemos citar três grupos de trabalho da equipe do Instituto Agronômico que se distinguem dos demais: 1) desenvolvimento de linhagens altamente produtivas e de grande vigor vegetativo do café Mundo novo, Acaiá e Catuaí, esta última de porte pequeno, o que facilita a colheita. Os 600 milhões de cafeeiros recém-plantados ou em plantio são todos desses cultivares; 2) criação de linhagens de variedades resistentes à ferrugem, multiplicadas a partir de 1970, e que entrarão em distribuição estes anos; 3) seleção de cafeeiros com vários genes de resistência à ferrugem.
Figura 1. José Reis e Warwick Estevam Kerr durante a 25ª Reunião Anual da SBPC no Rio de Janeiro (RJ), em 1973.
(Foto: SBPC/ Acervo. Reprodução)
No segundo número da Ciência & Cultura, em 1949, vemos nascer várias linhas de pesquisas que permanecem até agora.
Em 1949 chega a São Paulo Theodosius Dobzhansky, que dirige uma equipe de 18 pessoas. Entre eles estavam: A. Langden Cavancanti, hoje chefe do Grupo de Genética do Rio de Janeiro, H. Burla, hoje diretor do Museu de Zoologia de Zurique, Z. R. Cordeiro, hoje professor titular de genética da Universidade do Rio Grande do Sul, A. Brito da Cunha, hoje professor titular de genética na Universidade de São Paulo, Newton Freire Maia, hoje chefe do Departamento de Genética da Universidade Federal do Paraná, C. Pavan, chefe do Departamento de Biologia da Universidade de São Paulo e muitos outros.
Este mesmo número mostra também o início de minhas próprias pesquisas em Himepópteros, especialmente nas abelhas, que já se desdobram em 16 teses de Doutoramento, cinco de Mestrado, duas de Livre Docência e quase mil publicações, em que uma equipe de quase cem pessoas desvenda a biologia das abelhas brasileiras, seus métodos de comunicação, sua citologia, etologia, anatomia interna e externa, genética da determinação do sexo e das castas, frequência dos genes detrimentais e de genes limitados aos sexo, etc.
“A realização de pesquisas científicas foi consideravelmente facilitada devido à organização de órgãos de amparo.”
Uma característica, no entanto, é gritante no progresso científico no Brasil: é o eu desenvolvimento não harmônico, o que é facilmente observável analisando-se os vários campos da ciência:
a) A Matemática tem bom desenvolvimento em Sistemas Dinâmicos, Análise Funcional, Equações Diferenciais, Estatística e Geometria Diferencial. Há falta de pessoal em campos importantes como Matemática Aplicada, que inclui a Teoria de Controle. Falta à Matemática brasileira aquilo que se convencionou chamar de massa crítica: faltam professores nos três níveis, e as consequências são facilmente visíveis. Até hoje os matemáticos não se reuniram na SBPC para apresentação de trabalhos originais.
b) A Física é bem desenvolvida na Física Molecular, Física Nuclear e Física do Estado Sólido. Ramos altamente necessários, como Ótica e Eletricidade, e vários outros, são mal desenvolvidos.
c) A Química tem bom desenvolvimento na Bioquímica e Ciências dela dependentes e na Química Orgânica, principalmente no campo da Química de Produtos Naturais. Regularmente desenvolvida vem a Física-Química, porém a Química Inorgânica e Analítica deixam a desejar, especialmente se considerarmos a sua grande importância. O avanço das pesquisas químicas no país deve muito ao prof. Heinrich Rheinbolt, ex-presidente da SBPC.
d) A Biologia é o ponto alto da Ciência brasileira. Têm alto nível a Genética, a Fisiologia, a Farmacologia e a Histologia. São razoavelmente desenvolvidas a Zoologia e a Botânica. Sem dúvida o calcanhar de Aquiles da Biologia brasileira é a Ecologia. A falta de ensino e pesquisa em Ecologia reflete-se em vários aspectos da administração do país: não há política eficiente de proteção à fauna e à flora, não há mentalidade conservacionista nos políticos, nos governadores e nem nos secretários de Estado. O “reflorestamento à brasileira”, que é a derrubada da floresta nativa e sua substituição por Eucaliptos e Pinos, é motivo de crítica e tristeza dos especialistas. Nenhum projeto de floresta mista foi publicado. As margens dos rios são devastadas até por pescadores, que ainda não aliaram a produtividade dos lagos e rios à quantidade de folhas, flores e frutos, direta ou indiretamente ligados à cadeira alimentar dos grandes peixes. Uma das poucas exceções que conhecemos de aplicação de métodos ecológicos é o zoneamento agrícola do Estado de São Paulo.
e) As Geociências, tanto a Geologia como a Geografia, constituem as ciências mais harmonicamente desenvolvidas no Brasil, não obstante, terem pequeno número de pesquisadores.
f) Na Medicina, temos áreas avançadas, como Cirurgia e algumas áreas clínicas, que tem desenvolvimento equiparado aos melhores existentes, mas é deficiente, contudo, nos campos de medicina social, doenças tropicais e nutrição. As grandes endemias, como doença de Chagas, esquistossomose, filariose, e viroses tropicais têm número de investigadores e de pesquisas realmente diminuto.
g) A Agronomia constitui um grande sucesso da Ciência brasileira porque a maioria dos problemas agrícolas tem de ter soluções “in loco”, ou seja, tem de ter cunho francamente ecológico. Existem, todavia, áreas deficientes em pesquisas como: tecnologia em vários produtos naturais como couros; seleção para solos de pH ácidos; silvicultura ecológica; estudo de plantas brasileiras (mandioca com mais proteínas, milho opaco mais resistente); combate de praga por metodologia ecológica e, sobretudo, com menos poluição.
h) A Engenharia, em toda sua plenitude, com pesquisa autóctone, ainda não pode desenvolver-se entre nós por estarmos atados a uma indústria eminentemente estrangeira. O país paga cinco bilhões e meio de cruzeiros por tecnologia importada, porém não são montados, pelas indústrias importadoras, laboratórios que permitam aos engenheiros brasileiros o desenvolvimento desta tecnologia. Até a indústria de computação, que une físicos, matemáticos, engenheiros e industriais, que é essencial a qualquer país grande e independente, e para a qual havia fortes indícios de rápido desenvolvimento, entrou novamente em colapso de espera.
Outro aspecto que contribui para o desenvolvimento não harmônico das Ciências no Brasil é a grande diferença de salários entre uma instituição e outra, entre Estados, e mesmo dentro de um mesmo Estado. Cito, como exemplo, o caso gritante do Instituto Agronômico de Campinas. Um pesquisador em início de carreira ganha no Instituto Agronômico 3.000,00 e na USP 3.780,00. Em fim de carreira ganha no Agronômico os mesmos 3.000,00 acrescidos de 100,00 por cada cinco anos de serviço, ao passo que na USP ganha 9.396,00 acrescidos de 470,00 por cada cinco anos de serviço. A consequência dessa aberração é a saída, nesses últimos 10 anos, de 42 pesquisadores com mais de dois anos de casa, e de 16 com menos de dois anos, todos por razões salariais. O principal órgão de pesquisa agronômica do país perdeu, por uma sucessão de incompreensões administrativas, 58 pesquisadores por pressão salarial, 40 por aposentadoria, 15 por relotação, dois por exoneração, dois por afastamento e cinco que faleceram, só conseguido repor, a título precário, 36 novos pesquisadores.
Figura 2. Capa da 11a edição de 1973 da revista Ciência & Cultura
(Foto: Acervo)
Imprescindível ao progresso científico é o ensino universitário. Nestes 25 anos os grandes marcos no ensino pátrio foram: a organização da Universidade Nacional de Brasília em bases modernas, a Reforma Universitária e sua extensão à toda rede de ensino superior, a estruturação em níveis e bases muito satisfatórios dos cursos de pós-graduação, a implantação de 10 universidades federais em vários estados da república, e a constituição de 9 faculdades e uma universidade no interior do Estado de São Paulo.
De 1948 para cá a realização de pesquisas científicas foi consideravelmente facilitada devido à organização de órgãos de amparo. Na área federal temos: o Conselho Nacional de Pesquisas, a Comissão Nacional de Energia Nuclear, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, durante alguns anos a COSUPI e, recentemente, a criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Na área dos Estados temos: a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul, a Fundação Mineira de Pesquisas, e as Secretarias de Ciência e Tecnologia da Guanabara e da Bahia. Várias companhias particulares e cooperativas, das quais destacamos a Copersucar e a Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica, gastam somas consideráveis em pesquisas científicas. Infelizmente as Fundações particulares ainda não fizeram o impacto que poderiam fazer. Preferem destinar seus fundos em prêmios, sem atentar para a área muitíssimo mais importante para o país, que é a concessão de bolsas de pesquisa tanto no nível de graduação como de pós-graduação, e financiamento direto de investigações.
Nesses 25 anos, foi quase uma centena de vezes que a SBPC se dirigiu as mais altas autoridades estaduais e federais a fim de cumprir sua missão a favor da ciência e dos cientistas.
“A SBPC tem sido incansável na defesa da liberdade de pesquisa por acreditar que ela é condição indispensável para o progresso científico.”
Em 1949 os pesquisadores da SBPC pressionaram os deputados paulistas para que processasse a regulamentação do artigo da Constituição do Estado de São Paulo que instituía a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Logo a seguir, no mesmo ano, a SBPC dirigiu-se ao governador paulista solicitando revisão do decreto de tempo integral. Suas reuniões têm sido uma forma de debate entre autoridades governamentais e cientistas, estudantes e professores. Na defesa dos direitos e em busca de melhores oportunidades aos cientistas brasileiros, a SBPC se dirigiu, nesses 25 anos, a vários governadores, de vários estados, a muitos secretários, ministros e, em 1968, enviou detalhado documento de sugestão e críticas ao Marechal Costa e Silva. A partir de 1698, a SBPC passou a realizar simpósios sobre antropologia, e com isso aumentaram suas preocupações na defesa do indígena brasileiro. Vários ofícios foram enviados às autoridades do país, tanto do executivo como do legislativo, denunciando casos em que o indígena estava sendo espoliado de seus direitos. O ingresso dos antropologistas deu início a abertura das portas da SBPC aos cientistas sociais e humanistas, que desde 1971 congregam conosco, juntando-se aos demais cientistas brasileiros na defesa dos ideais de liberdade, de humanismo e de decência. Desde 1950, com a espetacular conferência de Eduardo Braun-Menéndez, a SBPC tem sido incansável na defesa da liberdade de pesquisa por acreditar que ela é condição indispensável para o progresso científico; na defesa da liberdade de comunicar os resultados das pesquisas; na noção de que todo conhecimento é ou pode vir a ser útil; na noção de que a liberdade de pesquisas só pode existir numa sociedade livre, pois os princípios que a fundamentam são os mesmos que fundamentam as demais liberdades essenciais do homem; tem também sido incansável na pregação de que os resultados da ciência jamais devem ser utilizados contra a pessoa humana.
Sempre foi favorável ao ensino compulsório e gratuito. Há cerca de 800.000 anos o homem adicionou um fator novo na sua evolução: além de conquistar novos nichos ecológicos por mutação e seleção, passou a conquistá-los também por invenção. O processo educativo tornou-se, consequentemente, da mais alta importância para capacitar as populações humana sem suas relações competitivas. Por isso a educação não deve ficar sujeita a bolsas, a níveis econômicos, a requerimentos, nem as origens ou tendências particulares de diretores, informantes ou quaisquer pessoas: é o direito líquido de um ser que nasceu livre e com o destino de ser imagem e semelhança de Deus.
A comunidade de cientistas brasileiros, que se organizou nesta SBPC, tem também sido incansável em exigir condições para a profissionalização do professor universitário em bater-se pela maior eficiência e moralização das Universidades brasileiras a fim de que prestem à sociedade o serviço de transmitir conhecimento de uma geração à outra, de ensinar a fazer ciência, de ter ânsia pela busca da verdade, de maneira a produzirem trabalhos científicos de alta criatividade, de completa integridade, e contribuírem para preparar as novas e velhas gerações para uma vida mais abundante e mais humana. Pensamos, pois, que esta comunidade de cientistas profissionais que é a SBPC tem cumprido os objetivos a que se propôs em 1948.
