O período da Independência foi uma época áurea para as viagens científicas de europeus ao Brasil. Configurou-se aí um padrão que iria se reproduzir por mais de um século: a Europa como lócus produtor de conhecimento sobre a natureza brasileira. Esse tipo de saber baseava-se no domínio teórico e prático da história natural e na posse do material necessário para sua execução. Essa espécie de dominação científica era possível em um contexto em que cabia à história natural realizar um grande inventário das espécies do planeta e descrições gerais do clima e da configuração das terras descobertas, conquistadas ou colonizadas. O processo de desenvolvimento do conhecimento científico permitiu que se elaborassem métodos de trabalho que buscavam prescindir dos saberes locais ou, então, torná-los hierarquicamente menos valiosos. [1, 2] O grande especialista em animais não seria mais o caçador que conseguia ouvir, encontrar os rastros e matar o bicho, mas aquele que teve acesso à carcaça do animal, seu esqueleto, sua imagem fixada em desenhos e até mesmo suas vísceras conservadas em aguardente. O mesmo vale para as plantas: os herboristas de populações que habitavam há milênios em um determinado bioma perderam o lugar de especialistas para cedê-lo a pessoas que acessavam herbários, livros e estufas nas frias cidades europeias. O grande ciclo das expedições científicas do século XIX consolidou uma determinada maneira de produzir conhecimento sobre a natureza.
No Brasil, a descrição da flora e da fauna data já do primeiro século da conquista; no século XVII deve-se destacar a importante presença de naturalistas neerlandeses no Nordeste. No século XVIII, a atuação de naturalistas europeus ocorreu sobretudo associada às viagens de circum-navegação. Franceses, britânicos e russos usavam principalmente o Rio de Janeiro e Santa Catarina como pontos de abastecimento e reparos. Esse tipo de empreendimento passou a incluir em sua tripulação naturalistas ou cirurgiões com conhecimentos de história natural. Algumas herborizações célebres datam desse período. Joseph Banks e Daniel Solander, membros da expedição do Endeavour, comandada por Thomas Cook, desceram à terra incógnitos, em dezembro de 1768, porque o conde da Cunha não permitiu seu desembarque. Dessas coletas furtivas no Brasil conservaram-se anotações, listas, exsicatas e alguns belos desenhos e aquarelas de Sydney Parkinson. Outro caso memorável está associado à buganvília, coletada pelo naturalista Philibert Commerson, em 1767, acompanhado por sua ajudante Jeanne Baret, que embarcou no l’Étoile disfarçada de homem e acabou sendo a primeira mulher a realizar a volta ao mundo.
“A produção bibliográfica sobre a natureza brasileira produzida na Europa no século XIX é considerável.”
A pequena presença de estrangeiros no Brasil durante o século XVIII deveu-se à proibição de sua permanência na América portuguesa, a não ser que estivessem a serviço da Coroa, e estava associada a uma política de sigilo em relação às produções brasileiras. Por isso, as atividades de história natural foram realizadas principalmente por pessoas ligadas à administração colonial. Por exemplo, algumas descrições minerais e de flora, e fauna foram feitas por engenheiros e arquitetos envolvidos com trabalhos de demarcação de fronteiras. Além disso, o Século das Luzes foi caracterizado pela atuação dos bacharéis formados por Coimbra, notadamente daqueles diplomados depois da reforma dessa Universidade por Pombal. Alguns deles, nascidos no Brasil, participaram das chamadas viagens filosóficas, idealizadas por Domingos Vandelli, naturalista de origem italiana, professor em Coimbra e diretor do Jardim Botânica da Ajuda. O mais conhecido entre esses bacharéis foi Alexandre Rodrigues Ferreira, que realizou uma longa viagem, de 1783 a 1792, pelo Pará, Amazonas e Mato Grosso. [3]
O mais importante botânico do século XVIII foi o frade franciscano Mariano da Conceição Veloso, que seguiu estudos religiosos, em particular de retórica, sem aprendizado formal em história natural. Graças ao patrocínio do vice-rei D. Luís de Vasconcelos e Sousa, Veloso realizou expedições pelo Rio de Janeiro e parte de São Paulo, com uma equipe, que incluía militares, religiosos e escravizados. Esse trabalho coletivo resultou nos volumes manuscritos intitulados “Florae fluminensis” (1790), publicados aos poucos no século XIX. Veloso é considerado o grande botânico do século XVIII porque sua obra foi publicada, mesmo que tardiamente, e várias de suas descrições são consideradas válidas até hoje. Além disso, os manuscritos do “Florae fluminensis” eram frequentemente consultados na Real Biblioteca por naturalistas e viajantes de passagem pelo Rio de Janeiro.
Figura 1. O grande ciclo das expedições científicas do século XIX consolidou uma determinada maneira de produzir conhecimento sobre a natureza.
(“Aspecto tirado a bordo da fragata Áustria em sua viagem para o Rio de Janeiro em 9 de abril de 1817 vendo-se entre outros passageiros, Spix e Martius”. Thomas Ender. 1817. Acervo Biblioteca Nacional. Reprodução)
As duas primeiras décadas do século XIX constituem um divisor de águas no que diz respeito ao conhecimento botânico da flora brasileira. Com o fim das guerras napoleônicas e a nova ordem internacional negociada no Congresso de Viena, em 1815, o Brasil passou a receber estrangeiros de maneira mais livre. Como as terras brasileiras tinham sido pouco exploradas por especialistas, passaram a atrair tanto a curiosidade de naturalistas, que almejavam a glória de descobertas inéditas, quanto de instituições científicas interessadas em aumentar seus acervos. As potências europeias competiam para identificar produtos naturais que pudessem ser comercializados ou transplantados. A grande referência para a história natural até então eram os trabalhos de Piso e Marcgraf, fruto da colonização neerlandesa no Nordeste. Em 1827, o botânico suíço Augustin de Candolle avaliou que de 500 espécies brasileiras conhecidas no início do século XIX passou-se a 14 mil no espaço de três décadas.
Os naturalistas-viajantes dessa época que mais marcaram a ciência botânica até hoje foram por um lado aqueles ligados à chamada Missão Austríaca e por outro o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire. Por ocasião do casamento da arquiduquesa Leopoldina com o Príncipe Pedro em 1817, Francisco I da Áustria organizou uma missão de sábios para acompanharem sua filha ao Novo Mundo. Por conta de suas relações familiares e políticas, vieram também ao Brasil enviados de outros estados, como Carl Martius e Johann-Baptist Spix, ambos da Baviera, e o florentino Giuseppe Raddi. Entre os austríacos estavam o botânico Johann-Emanuel Pohl e o zoólogo Johann Natterer. [4, 5]
“Em vez de olhar para fora, buscando alcançar aquilo que outros tinham proposto, pretendeu olhar para o próprio Brasil, com um projeto baseado na proximidade e na convivência com as plantas.”
Além desses naturalistas citados, uma série de outros homens de ciência estrangeiros estiveram no Brasil ao longo de todo o século XIX. [6] Essas viagens variavam em seus objetivos, duração e financiamento. Alguns viajavam com fins de diversão e aprimoramento individual, embora pudessem contribuir para coleções de instituições científicas, como foi o caso do Príncipe Maximilian de Wied-Neuwied, que esteve no Rio de Janeiro, Espírito Santo e Bahia, entre 1815 e 1817. Embora fosse familiarizado com a zoologia da época, o príncipe considerava a história natural uma atividade adicional no conjunto de seus interesses, que incluíam a caça esportiva. Além dos membros da Missão Austríaca, alguns outros naturalistas tiveram apoio oficial de governos estrangeiros, como o barão de Langsdorff, que empreendeu uma longa viagem por São Paulo, Mato Grosso, Amazonas e Pará, patrocinada pela Rússia, a quem servia como diplomata. O francês Auguste de Saint-Hilaire também teve apoio de seu governo, apesar de ele mesmo ter tido a iniciativa de vir ao Brasil, aproveitando uma expedição diplomática de partida para o Rio de Janeiro, em 1816. Charles Darwin passou cerca de quatro meses em território brasileiro, em 1832, desde as ilhas de São Pedro e São Paulo até o Rio de Janeiro, passando pela Bahia. O objetivo principal da missão comandada por Fitzroy era mapear a costa da América do Sul. O financiamento da participação de Darwin veio de sua família. À variedade de objetivos e tipos de financiamento pode ser acrescida a variação na duração das estadas desses naturalistas e coletores. Alguns ficavam dias ou semanas, outros passavam muitos anos e alguns, ainda, acabavam por se estabelecer no Brasil.
Os museus e jardins botânicos europeus eram os principais beneficiários das coletas de caráter oficial. Alguns viajantes, apesar de também suprirem coleções públicas, entraram no circuito do mercado de animais, plantas e minerais considerados “exóticos” aos olhos dos europeus. Alfred Russel Wallace e Henry Walter Bates enviavam coleções para a Grã-Bretanha para custearem suas expedições pela Amazônia. George Gardner financiava sua viagem com a coleta, para colecionadores privados, de plantas da moda, como cactos e orquídeas, e de animais vistosos, principalmente insetos. O horticultor belga Louis van Houtte esteve no Brasil de 1834 a 1836 para coletar plantas de valor comercial e reproduzi-las em estufas europeias, visando o mercado de luxo.
Figura 2. Os manuscritos do “Florae fluminensis” eram frequentemente consultados na Real Biblioteca por naturalistas e viajantes de passagem pelo Rio de Janeiro.
(Folha de rosto do tomo I de “Florae Fluminensis Icones fundamentales”, versão manuscrita.. Acervo Biblioteca Nacional. Reprodução)
De todas essas viagens e coletas resultaram os materiais que permitiram aos europeus desenvolver conhecimento botânico, zoológico e mineralógico sobre o Brasil. Mesmo um naturalista que nunca tivesse viajado poderia associar seu nome a espécies brasileiras. A localização das coleções na Europa, bem como suas bibliotecas e publicações científicas, fazia com que todos aqueles que fossem participar da construção de conhecimento naqueles moldes se vissem obrigados a se deslocar para aquele continente. Além disso, algumas atividades necessitavam de instrumentos para serem realizadas, como lentes, microscópios, termômetros, barômetros, objetos para desenho científico, entre outros. No Brasil, o acesso a esses equipamentos era restrito.
Quando um grupo de intelectuais brasileiros decidiu, na década de 1850, fazer uma expedição científica exclusivamente nacional – a Comissão Científica do Império [7] – a primeira e longa etapa de preparação consistia em comprar livros e instrumentos na Europa. O rico acervo bibliográfico adquirido nessa época foi incorporado à biblioteca do Museu Nacional, onde está até hoje. Poucas publicações resultaram dessa viagem. Por uma série de infortúnios, os estudos de botânica resultantes – os mais promissores – foram relativamente limitados.
“Pensar a independência científica do Brasil deve incluir uma reflexão histórica sobre o tipo de conhecimento que produzimos e sobre o que queremos para o século XXI.”
A produção bibliográfica sobre a natureza brasileira produzida na Europa no século XIX é considerável. Na botânica, por exemplo, destacam-se “Flora Brasiliensis”, obra coletiva coordenada inicialmente por Carl von Martius, e “Flora brasiliae meridionalis”, obra mais modesta, realizada por Auguste de Saint-Hilaire e dois outros naturalistas mais jovens. Esses livros compõem um conjunto maior de obras sobre o Brasil que formou uma base sólida para os estudos, em certa medida válida até hoje. A atualização desses estudos do século XIX ocupou e ocupa parte do tempo de cientistas brasileiros nos séculos XX e XXI.
O botânico brasileiro Francisco Freire Alemão (1797-1874), professor e diretor do Museu Nacional, foi membro da Comissão Científica do Império e incentivador de várias agremiações científicas. [8] Em 1849, estabeleceu um balanço da botânica até então e traçou um programa de diretrizes de pesquisas sobre a floresta. Segundo ele, os viajantes estrangeiros haviam realizado o que havia de “verdadeiramente científico” sobre a flora brasileira, porém, “não descem positivamente aos detalhes (nem o podiam fazer) que sós (sic) podem fornecer os elementos para uma história de nossas matas.” Essa história deveria compreender o estudo dos tipos de terreno, sua composição, exposição, altitudes; determinar a presença, ausência ou concentração de famílias, gêneros e espécies por regiões e localidades; determinar a altura média das árvores por região; identificar a época de frutificação e floração; registrar a proporção de madeiras de lei, de tintura ou de bálsamos e resinas em cada localidade. Propunha uma história da floresta viva, realizada por naturalistas que tivessem a experiência da mata. Em vez de olhar para fora, buscando alcançar aquilo que outros tinham proposto, pretendeu olhar para o próprio Brasil, com um projeto baseado na proximidade e na convivência com as plantas. Era uma proposta híbrida, que incorporava elementos da botânica, de pretensão universalista, com a força da experiência local. Pensar a independência científica do Brasil deve incluir uma reflexão histórica sobre o tipo de conhecimento que produzimos e sobre o que queremos para o século XXI.