A chegada
A chegada de Cabral (1500)
O destino era Calicute, na Índia, para começar as atividades comerciais. Há apenas dois anos, Vasco da Gama lá tinha chegado, após cruzar o cabo da Boa Esperança e navegar a leste, pelo desconhecido Índico. A chegada de Cabral à costa brasileira era um desvio de rota para uma breve parada. Mas isso aconteceu, graças à Astronomia. Os portugueses realizaram as Grandes Navegações porque inovaram a arte de navegar, introduzindo um método astronômico de determinar a latitude em alto mar. Aqui já podemos concluir: Cabral não trouxe a Astronomia para o Brasil. Pelo contrário, ele foi trazido pela Astronomia.
Mas a superfície do globo é bidimensional. Para a determinação cabal da posição de um ponto nessa superfície são necessárias duas coordenadas: latitude e longitude. Se a latitude já podia ser determinada astronomicamente, a longitude era precariamente estimada com base na distância percorrida pela embarcação. Podemos então perceber quão precária eram as Grandes Navegações. Saber a longitude constituiu um sério problema que se tornou um clamor, pois as navegações passaram a envolver um grande fluxo de mercadorias e, o conhecimento impreciso da posição no mar causava grandes tragédias e prejuízos. Aproximadamente na mesma época, várias soluções confiáveis tornaram-se praticáveis, mas a entrega pelo relojoeiro inglês John Harrison (1693-1776) em 1759, do famoso cronômetro náutico H4 à comissão julgadora que, finalmente considerou sua performance satisfatória, é um marco simbólico.
As primeiras observações astronômicas
Latitude de Santa Cruz de Cabrália: 17º Sul
Na chegada de Cabral, o ainda pouco conhecido céu austral foi observado e notificado por um europeu pela primeira vez. O observador era João Faras ou Mestre João, médico e astrônomo da tripulação. Medindo a altura meridiana do Sol, ele determinou a latitude de Santa Cruz de Cabrália, local da chegada.[1] A anotação documental da latitude tinha força para atestar para todo o sempre, a presença da expedição naquela data e local, algo importante para assegurar a posse territorial.
Cruzeiro do Sul
À noite Mestre João visualizou num asterismo no céu, o sinal da Cruz, símbolo de significação máxima para Portugal, uma nação cristã aliada ao papado. A identidade cristã de Portugal remonta à Reconquista do Condado Portucalense (século 9) pelos cristãos e à emergência de Portugal em 1143 como nação independente. Depois, as Grandes Navegações fizeram os portugueses crerem que eram o povo eleito por Deus para expandir o mundo cristão.
O asterismo cruciforme é hoje uma das 88 constelações oficializadas em 1930 pela União Astronômica Internacional (IAU, sigla em inglês), a do Cruzeiro do Sul, uma contribuição dos navegadores portugueses.[2, 3]
A forma de cruz era providencial, pois, na decepcionante ausência de uma contrapartida austral da brilhante estrela Polar do Hemisfério Norte, o pé da cruz serve para indicar o Polo Celeste Sul, carente de estrela brilhante, no prolongamento da haste vertical da cruz, a cerca de 5,5 vezes o tamanho angular da haste vertical, a partir do pé da cruz. Contando com a Polar sempre acima do horizonte no Hemisfério Norte, para os navegadores daquele hemisfério era mais fácil saber a latitude, exceto quando o céu estava fechado ou de dia, quando a claridade diurna oblitera as estrelas.
Nuvens de Magalhães
Historicamente não foi Fernão de Magalhães quem as descobriu. Há registros de povos antigos referindo-se a elas. Todavia, trata-se da descoberta por um europeu. Na viagem em que as descobriu, Magalhães estava a serviço da Espanha. Mas o registro aqui se justifica porque Magalhães era português. Hoje sabemos que essas nuvens são galáxias satélites da nossa, a Via Láctea.
A descoberta do Estreito, que é a passagem do Atlântico ao Pacífico no extremo meridional do continente americano, leva o nome de Magalhães. A descoberta durante o inverno, e a travessia pelo mesmo, foram experiências atrozes. A descoberta das nuvens se deu logo após a travessia ao Pacífico.[4]
No âmbito global, a circunavegação em si foi importante, pois confirmou empiricamente a esfericidade da Terra, posta em dúvida na Idade Média apesar dos ensinamentos corretos nesta matéria de Platão, Aristóteles e outros. Dúvidas medievais foram suscitadas pelas pregações e ensinamentos do monge alexandrino Cosmas (século 6) em sua Topografia Cristã. Para ele era inconcebível que cristãos batizados, salvos pelo sangue de Cristo, ficassem do outro lado do mundo debaixo dos pés de outras pessoas.
Magalhães é tradicionalmente descrito como um intrépido herói, movido por sentimentos nobres, um modelo a ser imitado. Uma nova história segundo uma historiografia menos hagiográfica foi escrita recentemente.[5]
Portugal perdeu importantes primazias
Tanto no desenvolvimento da técnica astronômica na arte de navegar, como na cartografia do céu austral em que os portugueses brilharam, nações rivais assumiram a continuidade e prosperaram, até mais que Portugal. Por quê?
“As meras abordagens litorâneas no recém-nascido Brasil por navegadores, exploradores e piratas já possibilitaram mapear, ainda que precariamente, os contornos do litoral oriental do nosso Brasil.”
A ocupação do litoral oriental do Brasil
Após a chegada de Cabral, os reis portugueses pouca atenção deram ao Brasil, empolgados que estavam com o mais lucrativo comércio com as Índias. Ficou o Brasil relegado a feitorias precárias para a predação do pau-brasil, nativo da Mata Atlântica e abundante na época, mas hoje árvore raríssima, na lista de árvores em extinção. Sem nenhuma fiscalização, a predação era praticada por portugueses e por piratas estrangeiros. Os indígenas do litoral eram cooptados pelos europeus para abaterem as árvores e as transportarem e eram “recompensados” com quinquilharias.
Depois foram os experimentos de colonização, na base da tentativa e erro, com o administrador colonial Martim Afonso de Sousa, as capitanias hereditárias e os governos gerais. Martim Afonso teve o mérito de trazer mudas de cana-de-açúcar da ilha da Madeira e verificar em São Vicente, a primeira vila brasileira fundada por ele, como elas se adaptavam às nossas terras. Esse experimento agrícola deu tão certo que a produção açucareira marcou o primeiro século da nossa colonização. O primeiro governador-geral, Tomé de Sousa, trouxe os jesuítas, missionários e educadores ao mesmo tempo. Com Mem de Sá, terceiro governador-geral, piratas estrangeiros foram repelidos (por exemplo, franceses da França Antártica), o cultivo da cana-de-açúcar se estendeu por todo o litoral, de São Vicente a Olinda. O sistema de plantation da cana era caracterizado por latifúndios de um dono só, o senhor de engenho; pela monocultura visando só a exportação, em detrimento do bem-estar e sobrevivência dos próprios brasileiros e pela escravidão negra, já que o cultivo, processamento e transporte da cana requeria muita mão de obra, mas a escravização de indígenas estava interditada por documentos papais. Já para a escravização de negros africanos, as interdições não eram taxativas. Havia inclusive uma prática estabelecida pelos próprios portugueses desde o início das Grandes Navegações.
União Ibérica (1580-1640)
Entre 1580 e 1640 ocorreu a União Ibérica.
Brasil holandês
Durante a União Ibérica ocorreu a invasão holandesa em Pernambuco. Em 1637 a Companhia das Índias Ocidentais (CIO) enviou o conde Maurício de Nassau para governar o Brasil holandês. Por ser um nobre humanista, foi um administrador colonial diferenciado que, na medida em que pôde, conciliou os interesses da CIO com a modernização da colônia.
O cosmógrafo Jorge Marcgrave (1610-1644)
O conde de Nassau tinha na sua corte um séquito de artistas e cientistas. Um deles era o alemão Jorge Marcgrave, mais conhecido entre nós por suas obras de História Natural e cartografia. Mas, o que o trouxe ao Brasil foi o seu desejo de contemplar o céu austral. Não sendo dono de seu tempo, pouco pôde dedicar a essa atividade. Mesmo assim, ele realizou importantes feitos em Astronomia que, infelizmente, ficaram pouco conhecidos por não terem atingido a publicação. Recentemente esses feitos puderam ser desvelados através da análise de manuscritos originais.
Apesar de a União Ibérica implicar uma ascendência hierárquica da Espanha sobre Portugal, os reis filipinos mantiveram os portugueses nos quadros administrativos de Portugal, assim como do Brasil. Não houve restrições de autonomia, de modo que as autoridades portuguesas no Brasil puderam completar a ocupação do litoral leste brasileiro ao norte do Recife, até a quebrada para o oeste. Essa ocupação que, a cada núcleo requeria a expulsão de invasores estrangeiros e a aquiescência ou derrota dos indígenas parceiros dos invasores, se concluiu em 1598, com a construção do Forte dos Reis Magos, origem de Natal, RN, às margens do rio Potengi.
Figura 1. No mapa do nordeste brasileiro elaborado por Marcgrave, ele determinou longitudes usando o método dos eclipses lunares
(“Mapa da Paraíba e do Rio Grande do Norte”, 1643, de Jorge Marcgrave. Reprodução)
O Brasil na cartografia dos séculos 16 e 17
As meras abordagens litorâneas no recém-nascido Brasil por navegadores, exploradores e piratas já possibilitaram mapear, ainda que precariamente, os contornos do litoral oriental do nosso Brasil. Afinal navegantes e cartógrafos já se colaboravam. Todavia, dada a superficialidade do conhecimento territorial, ainda prevaleciam mitos de origem ignota. Um deles era o da Ilha do Brasil, como se este fosse circundado pelas bacias do Amazonas e do Prata. Nos primeiros mapas, esse mito ganhava representação,[6] até porque era procurado.
Pouco a pouco no território real foram se estabelecendo vilas e cidades, e o seu reconhecimento foi gradativamente se tornando mais detalhado e preciso. Isso transparece nos vários mapas históricos, muitos resgatados em leilões e fundo de acervos. Alguns que consideramos mais importantes, ou porque o autor conheceu pessoalmente os lugares e gerou fonte para mapas secundários, ou porque se trata de algum trabalho sob contrato governamental que pode ter tido utilidade histórica relevante, podem ser destacados (afinal mapas eram feitos para orientar navegantes e para utilidade militar e administrativa).
No mapa do nordeste brasileiro elaborado por Marcgrave, ele determinou longitudes usando o método dos eclipses lunares.
O aprimoramento das técnicas astronômicas para a determinação de longitudes constituirá um desafio central na época, tanto para a produção de bons mapas de territórios, necessários para a administração e defesa, assim como pela importância crescente da segurança das mercadorias, embarcações e pessoas na navegação.
Ainda no campo astronômico cabe registrar que no mesmo século da chegada de Cabral ao Brasil, foi publicada a obra “De Revolutionibus Orbium Coelestium” (1542) com a teoria heliocêntrica do cônego polonês Nicolau Copérnico, que virou de cabeça para baixo a concepção que tínhamos do Universo. Não só, mas abalou a Fé escorada nas Sagradas Escrituras, bem como os ensinamentos clássicos superentranhados de Aristóteles e Ptolomeu, deixando uns ofendidos e outros condenados à excomunhão, prisão e até fogueira. Também foi introduzido o Calendário Gregoriano (1582), sem nenhuma influência no Brasil da época, mas que eliminou uma incômoda confusão na datação da Páscoa, tanto que continua em vigor até hoje. No Brasil obviamente essas mudanças não repercutiram de imediato. Mas reverberações chegariam, quae sera tamen!
Interiorização
O litoral oriental do Brasil, bem ou mal já estava ocupado. A expulsão dos holandeses na Restauração Pernambucana foi muito comemorada e tinha despertado, pela primeira vez, um senso de nativismo. Afinal, D. João IV tinha ajudado militarmente, mas nem tanto. Suas gestões no âmbito diplomático terminaram pagando aos holandeses uma indenização pelo não pagamento do empréstimo concedido aos senhores de engenho pernambucanos no início da administração nassoviana. Os lusos e luso-brasileiros que apoiados, por uma parte de indígenas e outra de escravos negros, tinham derrotado e expulsado os holandeses calvinistas, sentiram-se capazes de defenderem sua própria terra, mesmo sem ajuda da coroa. Esse foi o fundamento do nativismo, ainda bastante regional e bastante distante de ideias separatistas.
Todavia, a expulsão dos holandeses trouxe uma grave crise econômica: a crise açucareira em um Portugal já mergulhado em crise. Portugal perdia também o monopólio do açúcar brasileiro. A concorrência comercial vinha do açúcar agora produzido nas Antilhas pelos próprios holandeses expulsos do Brasil, e comercializado por eles por um preço bem mais baixo na Europa. Além disso, os holandeses detinham o domínio sobre os mercados consumidores europeus.
No Brasil, se a atividade produtiva havia sido determinada principalmente pela cana-de-açúcar na faixa litorânea oriental do Brasil, agora a saída era a interiorização, e esta demandava novas atividades.
No norte, a interiorização partiu do nordeste de duas formas: expedições que saíam do litoral nordestino para desenvolverem a pecuária nas bacias do São Francisco e do extenso Jaguaribe, no Ceará; ou as que saíam do Recife para ocupar o litoral norte do Maranhão e Pará, para finalmente adentrarem na Amazônia. Aí as atividades seriam a exploração de drogas do sertão (produtos da floresta como a baunilha, a salsaparrilha e sobretudo o cacau nativo) colhidas pelos índios e mestiços ao longo dos rios e trazidas até Belém.
Um fator que encorajou a interiorização foi a dubiedade da legalidade do Tratado de Tordesilhas. Afinal, se as coroas de Portugal e Espanha estavam unidas, a interiorização pelos colonos portugueses poderia avançar além do meridiano de Tordesilhas!
Ocupação do litoral norte até Belém
Já no início do século 17, os reis filipinos não hesitaram em entregar aos capitães portugueses a responsabilidade pela vigilância, ocupação e colonização do litoral norte do Maranhão e Pará. Obedecendo ordens deles, governadores portugueses implantaram núcleos, vilas, cidades e fortalezas em São Luís, Belém, depois em Macapá.
Os mesmos reis incentivaram também a expulsão de estrangeiros pelos portugueses, caso dos franceses que tentaram implantar a França Equinocial em São Luís do Maranhão entre 1612 e 1615, ambicionando ainda estender a ocupação pelo litoral setentrional do Brasil até a foz do Oiapoque.
“Com a transferência da sede do reino de Lisboa para o Rio de Janeiro, a segurança territorial e ausência de pessoal qualificado na agora ex-colônia eram as preocupações que demandavam ações imediatas. A segurança territorial implicava no conhecimento dos limites do território Brasil e na constituição de forças militares capazes de defendê-lo da cobiça de estados estrangeiros.”
Frei Claude d’Abbeville (-1630)
Em 1612 vieram ao Maranhão, na atual ilha de São Luís, os frades capuchinhos franceses Claude d’Abbeville (-1630) e Yves d’Évreux (1577-1632), ambos entomólogos, acompanhando Daniel de La Touche ou o Senhor de La Ravardière (1570-1631), chefe da expedição que viera fundar a efêmera França Equinocial. O frei d’Abeville veio enviado pelo governo como missionário e teria ficado no Maranhão até 1616. Nesse tempo desempenhou funções religiosas junto aos índios, coletou amostras e anotou nomes indígenas de insetos e realizou pesquisas etnográficas sobre os nativos, inclusive sobre os saberes astronômicos dos tupinambás. Publicou “Historie de la mission des pères capucins en l’isle de Maragnan et terres circonvoisines” (1614) que serviram de base para pesquisas etnoastronômicas brasileiras.[7]
Litoral norte além de Belém
Pelo Tratado de Tordesilhas, até Belém era território português e para a Espanha, a ocupação portuguesa dos litorais oriental e norte, até Belém, interessava, pois era um escudo protetor das minas de Potosi contra ataques estrangeiros. Para os reis filipinos faltava ainda fechar a foz do Amazonas e proteger o litoral a oeste dele contra os ataques estrangeiros. Os portugueses já estavam determinados a avançar para o oeste. Os reis espanhóis não se opunham. Aparentemente houve um lapso de comunicação, intencional ou não, entre a corte e os jesuítas a serviço da Espanha, pois, como veremos, gerou-se ruído em torno da observância do meridiano de Tordesilhas e da fidelidade à coroa, qual delas?
Apesar dos alertas de risco de ataques estrangeiros dados por funcionários reais e missionários franciscanos e jesuítas do lado português, que melhor conheciam a região, pareceu natural ao rei de Espanha entregar aos súditos portugueses e aos missionários, normalmente jesuítas que instalaram missões (reduciones) no rio Napo (Equador e Peru), Huallaga e Marañon (Peru) e Solimões (Peru e Brasil), a responsabilidade pela vigilância e controle da vastidão das terras alcançadas pelo grande rio das Amazonas e seus afluentes, cuja posse o explorador e oficial militar português Pedro Teixeira (1587-1641) tomaria em 1639.
Posse do rio Amazonas (1637-1639)
Há uma história do rio Amazonas prévia à sua posse. Saiba mais sobre a épica posse do rio Amazonas.
Cartografia por militares
As dificuldades na manutenção das possessões ultramarinhas atacadas por outras potências europeias (por exemplo, invasão holandesa no Brasil) e o fim da União Ibérica em 1640, que transformou a Espanha de parceira em rival, tornavam urgente uma reorganização interna no Reino.[8] A reestruturação na esfera militar tornou-se prioridade de D. João IV, o Restaurador de Portugal. A criação do Conselho de Guerra sublinhava o compromisso régio de dotar as colônias de defesas militares capazes de enfrentar eventual tentativa espanhola de reaver territórios. Essa decisão real ocorreu no contexto em que a arte da guerra tinha provocado na Europa uma revalorização da ciência militar, agora com novos tipos de poder de fogo, de fortificações e aumento do tamanho do exército. No Brasil, com um retardamento que é compreensível, foram criadas em 1696 e 1698 escolas de Fortificação e Arquitetura Militar, respectivamente em Salvador e no Rio de Janeiro, que formaram oficiais militares para trabalharem na construção de fortificações e em tarefas cartográficas.
P. Valentin Stansel (1621-1705)
O morávio Valentin Stansel,[9] ainda jovem, ingressou na Companhia de Jesus em Praga, quando já demonstrava pendores pela Matemática e Filosofia Natural. Aspirando seguir a vida missionária, com 34 anos seguiu para Roma e depois para Lisboa, de onde partiu para o Brasil em 1663. Lisboa era o porto de partida dos missionários enviados para a Índia, China, Japão e Novo Mundo.
Tendo deixado Praga com idade madura, lá deixou montado um museu de história natural onde fazia experimentos e inventava vários dispositivos.[10] Desde cedo e durante toda a vida escreveu inúmeros textos sobre ciência, mas a maioria deles foi censurada pela própria Ordem e se perdeu. Muitos foram produzidos enquanto esteve no Colégio da Bahia, um deles astronômico-ficcional que foi traduzido ao português.[11] Outro, de conteúdo científico, teve repercussão na comunidade mundial de sábios, como veremos.
Sendo Stansel não um teórico puro, mas um experimentalista, fez a observação de vários cometas na Bahia. A do cometa de 1668, dotado de cauda extensa e brilhante, foi comunicada para uma revista italiana, depois traduzida e publicada pela “Philosophical Transactions of the Royal Society“. Essa publicação foi a fonte utilizada por Isaac Newton para incluir em “Principia Mathematica Philosophiae Naturalis” (1687) uma menção à observação de Stansel: “Newton used Stansel’s observations of the dramatic cometary tail of 1668 to argue against the Jesuit’s view that such appearances must be due to refracted sunlight from these nearby bodies”.[12] Portanto, a menção não era relacionada ao movimento do astro, tema central de Principia, mas a uma questão então candente: como explicar o brilho dos cometas, particularmente da cauda? Havia disputas na época sobre a natureza da cauda dos cometas.
O padre Stansel e o famoso pregador, padre António Vieira (1608-1697) conviveram por algum tempo no Colégio da Bahia. Pensavam de forma diferente e chegaram a ter discordâncias. Isso ficou bem ilustrado numa análise comparativa entre um sermão de Vieira, baseado na aparição do cometa de 1695 e vários textos de Stansel referentes à observação feita por ele de vários cometas entre 1664 e 1689.[13] Vieira fala como pregador, enquanto Stansel discursa para confrades de sociedades científicas. A discussão é centrada no tema da causalidade das ocorrências da vida, em termos de Causa Primeira (Deus) e de sua intervenção, ou não, nas “causas segundas”.
Stansel foi um representante dos jesuítas que ajudaram a construir a ciência moderna tanto que, se preparou adquirindo formação intelectual para pleitear seu envio para a China, como missionário. Lá a catequese era difícil na dinastia Ming, pois era fechada a ocidentais. Considerando que os chineses tinham elevado grau de cultura, os jesuítas procuraram conquistar a elite, apresentando a ciência ocidental. Para isso se esmeravam na formação científica, pois esta ancorava a comunicação e granjeava para eles respeito e credibilidade. Assim eles levaram para lá, dentre outras coisas, os Elementos de Euclides, o Calendário Gregoriano, o mapa mundi, a luneta, o relógio mecânico, etc.
Numa carta de 1669 a um amigo jesuíta em Roma, Stansel pedia que intercedesse junto ao Padre Geral para seu retorno à Europa, o que jamais aconteceu. Reclamava da falta de livros, da dificuldade em publicar os seus trabalhos, do ensino de Teologia Moral que ministrava no Colégio da Bahia (talvez julgasse inútil), contrariedade dos censores revisores de seus trabalhos, porque defendia ideias cartesianas e atomísticas. Em suma, Stansel estava no lugar errado. Não se podia introduzir a ciência moderna no Brasil com a mesma estratégia usada no Extremo Oriente. O Brasil não tinha essas condições. Mesmo assim, pudemos contar com mais um importante astrônomo, mas cuja estada foi apenas outro parêntese sem maiores consequências.
A questão dos indígenas no norte
Antes dos lusitanos chegarem à região norte, os indígenas mantinham relações comerciais e de trabalho com holandeses, ingleses, irlandeses e franceses. Apenas na segunda metade do século 17 os portugueses conseguiram expulsar os outros europeus. Mas os colonos portugueses escravizavam os indígenas, e essa escravização durou mais tempo no norte. Contra isso uma voz eloquente, porém pouco ouvida, se ergueu. Entre 1643 e 1661 o padre Vieira desenvolveu intensa pregação tentando limitar os abusos cometidos contra os índios.
Observações astronômicas em Caiena
Observações astronômicas de suma importância foram feitas pelo francês Jean Richer entre 1671 e 1673 em Caiena. Elas se tornaram históricas, mas também guardam relação com o aprimoramento da instrumentação para a melhor determinação da longitude. A Guiana Francesa tinha passado por várias mãos estrangeiras, mas havia sido recém-reconquistada pelos franceses, que iniciavam ali um processo de colonização. As observações astronômicas foram realizadas numa efêmera janela de paz. Embora a observação não tenha sido feita em território brasileiro, foi feita perto de uma área de litígio entre as coroas da França e de Portugal.
P. Aloísio Conrado Pfeil (1638-1701)
O Tratado de Lisboa (1668) assinado por Carlos II da Espanha e Afonso VI de Portugal, que formalmente colocava um fim à Guerra de Restauração do Reino de Portugal, decidiu que a disputa entre França e Portugal sobre o rio Oiapoque como fronteira entre a Guiana Francesa e o Brasil, deixaria provisoriamente a zona de litígio entre os rios Oiapoque e Araguari como zona neutra. Por esse tratado de 1681, a Espanha devolveria a Colônia do Sacramento a Portugal.
Novas disputas começariam com o Tratado de Utrecht, mas antes disso, em 1681, o padre Pfeil, suíço de Constança, com outro padre e um irmão jesuíta, foi ao Cabo do Norte (atual estado do Amapá) conhecer rios, terras e lugares para confeccionar o mapa. A vinda do padre Pfeil foi arranjada pelo padre Vieira, que atendia a um pedido do príncipe regente D. Pedro II de Portugal.
P. Samuel Fritz (1654-1725)
O jesuíta tcheco Samuel Fritz foi missionário e cartógrafo a serviço da Espanha de 1685 a 1725. Em 1685 se apresentou na presidência de Quito nas Índias Ocidentais para iniciar sua atividade missionária. Trabalhando para a coroa espanhola, considerava intrusos os colonizadores portugueses na Amazônia. Por isso os denunciou veementemente à Real Audiência de Quito.
O francês Pierre Couplet na Paraíba
Charles-Marie de La Condamine (1701-1774)
Expansão territorial para o centro-oeste
Com a crise açucareira, uma nova atividade econômica que não a da cana-de-açúcar se fazia necessária. A essas alturas o Tratado de Tordesilhas era, na prática, lei morta. Os colonos portugueses e luso-portugueses de toda a América lusitana sentiam que podiam cruzar o meridiano de Tordesilhas. O cenário era perfeito para que bandeirantes de São Paulo e da Baixada Santista, sem opções locais de atividade econômica que eles tivessem capacidade de empreender, decidissem marchar para o centro-oeste.
Esse movimento teve início por volta de 1620. Por volta de 1630 os bandeirantes atacaram as missões do Guairá, no oeste do atual estado do PR. Por volta de 1635 atacaram as missões do Tape, atual estado do RS e Uruguai e, por volta de 1650, as missões do Itatim, no oeste do atual estado do MS. Essas missões foram simplesmente arrasadas. Assim tinha início mais uma contribuição regional para expandir o Brasil territorialmente.
Em 1683 D. Pedro II tornou-se rei de Portugal. Embora o trono de Portugal tivesse ganho o reconhecimento de sua autonomia em 1668, os cofres estavam vazios. Sem comércio na África e no Oriente, Portugal precisava desesperadamente de uma fonte de recursos. D. Pedro II fixou as bases de sua política no Brasil em dois pontos: a busca de metais e pedras preciosas e a expansão da fronteira da colônia até as margens do rio da Prata.
No primeiro ponto, D. Pedro II chegou a escrever a 12 dos principais sertanistas paulistas, convocando-os ao seu real serviço. Tinha início mais uma contribuição regional para expandir o Brasil territorialmente.
Expansão territorial para o sul
As primeiras viagens de reconhecimento do litoral meridional da América do Sul foram realizadas na chegada de Cabral ou pouco depois. Para os portugueses essas viagens deveriam se confinar entre Belém, ao norte, e a ilha de Santa Catarina ao sul, pois esse era supostamente o litoral que cabia a Portugal segundo o meridiano de Tordesilhas.
Pouco depois, espanhóis realizaram esse tipo de reconhecimento, mas indo mais ao sul que a ilha de Santa Catarina, o que faziam com direito, pois eram territórios da Espanha.
Com o relaxamento do Tratado de Tordesilhas, portugueses e bandeirantes paulistas decidiram ultrapassar o limite putativo desse Tratado no litoral do Brasil, a ilha de Santa Catarina. Na segunda metade do século 17 cidades importantes de Santa Catarina foram fundadas por eles, como a atual Florianópolis, inicialmente chamada Nossa Senhora do Desterro e Laguna. Avançaram além de Laguna (SC) e, a partir de 1682 atacaram as regiões das missões de jesuítas espanhóis no Tape (região dos Sete Povos das Missões, na margem esquerda do rio Uruguai, correspondente ao atual RS), onde os índios, instruídos pelos missionários a serviço da Espanha, cultivavam a erva-mate, criavam o gado e animais de carga nos pampas gaúchos. Os bandeirantes seguiram esse caminho para apresar índios.
Mas, para os bandeirantes surgia agora um novo atrativo. O contrabando da prata de Potosi negociada em Buenos Aires. Estava em vigor na América hispânica o pacto colonial pelo qual o contrabando de metais preciosos era proibido. As rotas de transporte dessa mercadoria da colônia para a Espanha eram bem definidas. Mas isso não adiantou.
Esse contrabando interessava tanto aos portugueses que, o príncipe-regente D. Pedro II ordenou o governador da capitania do Rio de Janeiro, Manuel Lobo, que construísse a fortificação da Colônia do Sacramento na margem esquerda do rio da Prata, do lado oposto de Buenos Aires. A expansão da fronteira até as margens do rio da Prata era, como vimos, o segundo ponto da política de D. Pedro II em relação ao Brasil colônia.
Para o governante português havia vantagem estratégica ter um território no litoral sul-Atlântico, pois servia como escala dos navios que buscavam as riquezas das Índias. Também era importante ter acesso ao contrabando que navios portugueses e ingleses praticavam na região com diversos produtos, especialmente a prata de Potosí, no Alto Peru, que chegava ao porto de Buenos Aires. O contrabando interessava aos comerciantes espanhóis de Buenos Aires, assim como aos brasileiros.
Foi, portanto, construído em 1680 o forte da Colônia do Sacramento pedido por Pedro II. Em 1714, no fim da Guerra de Sucessão Espanhola, o forte seria violentamente atacado por tropas vindas de Buenos Aires por ordem da coroa espanhola. Os brasileiros se renderam e se retiraram. Mas em 1715 o Tratado de Utrecht estabeleceria a devolução da Colônia do Sacramento aos portugueses.
“No Brasil, que não só é extenso territorialmente, mas abriga a maior parte da Amazônia, meio ambiente é tema prescrito originariamente. Aqui foram e continuam sendo desenvolvidas pesquisas sobre a nossa Astronomia nativa e inclusive sobre a Etnoastronomia de raízes africanas. Nesta matéria já foram apurados interessantes conteúdos astronômicos que podem enriquecer o ensino da história e cultura indígena e afro-brasileira.”
A descoberta do ouro (1698)
Numa fase tardia dos seus deslocamentos, os bandeirantes paulistas seguiram para o Vale do Paraíba e, na altura de Taubaté, se dirigiram para Minas Gerais cruzando a Serra da Mantiqueira. Em 1698, quase no fim do século 17, ocorreu o achamento do ouro, riqueza buscada desde o início do bandeirantismo, em vista do invejável sucesso que os colonizadores da América Espanhola tiveram quase dois séculos antes. A descoberta do ouro ocorreu numa região montanhosa da atual Ouro Preto.
Tratava-se de ouro de aluvião que era abundante e não requeria do explorador grandes investimentos (nada comparável ao custo de um engenho). Isso provocou a “corrida do ouro”, pois a notícia da descoberta se espalhou rapidamente. Houve migração em direção a essa região de todas as partes do Brasil, inclusive de nordestinos. Não só, mas até de portugueses em busca de melhor sorte na colônia. Ocorreram consequências da maior importância para os moradores do Brasil, como o povoamento do interior, a fundação aí de novas freguesias, aldeias e vilas com estruturas administrativa, judiciária e religiosa. O comércio do ouro, não só do que foi enviado legalmente para a Metrópole com pagamento de tributos, mas também do que era contrabandeado, acabou criando localmente estruturas fiscalizadoras, jurídicas e alfandegárias. Surgiram novas vias como o Caminho Novo da Estrada Real (ao Rio de Janeiro e não para Paraty) para o escoamento do ouro. O Rio de Janeiro, mais próximo das Minas toma o lugar de Salvador como capital. O comércio local é dinamizado sendo implantados engenhos, não para exportação, mas para consumo local que se tornara significativo. Por isso mesmo há diversificação nas trocas comerciais, com a implantação até de um circuito comercial de longa distância para a aquisição na região mineira de carne (charque), animais de carga trazidos do sul. Essa pujança mineira deslocou o centro econômico que estava no nordeste para o sudeste. Mas, acima de tudo, estabeleceu pela primeira vez uma população local com massa crítica capaz de identificar e expressar suas próprias necessidades, interesses e aspirações libertárias.
Para o bem do Brasil, a exploração do ouro trouxe os elementos que propiciaram a formação de uma verdadeira sociedade. Não se tratava mais de um mero ajuntamento de pessoas, mas numa quantidade que superava “a massa crítica”, o que garantia um grande número de interações humanas de troca e compartilhamento de ideias, que deu lugar à emergência de uma sociedade consciente de seus direitos e potencialidades. Isso ocorreu nas Minas Gerais, numa classe média minimamente acima do nível da mera sobrevivência e diversificada, formada por artesãos, comerciantes, profissionais da mineração, profissionais liberais, militares, artistas, etc.
Famílias mais ricas começaram a mandar seus filhos para estudarem na Europa, geralmente para Coimbra. Na volta eles traziam as ideias do Iluminismo, pois já era o século 18. Embora os brasileiros tivessem estudado numa universidade reacionária, na metrópole que negou repetidas vezes o pedido de uma universidade na colônia (diferentemente da América Hispânica que teve muitas universidades), surgiu entre eles por volta de 1780, a ideia da Inconfidência, de inspiração separatista, germe da Independência cujo bicentenário comemoramos.
Mas a metrópole estava no fundo do poço. Desde D. João IV, Portugal vinha assinando acordos com a Inglaterra que concediam privilégios comerciais aos britânicos, inclusive nas relações com o Brasil. Em 1703 D. Pedro II assina o malfadado Tratado de Methuen. Esses acordos reforçaram o sistema bancário inglês e financiaram a bem sucedida Revolução Industrial daquela nação, onde a contribuição do ouro colonial brasileiro não foi desprezível. Foi nesse contexto crítico para a Metrópole que tentava se reerguer economicamente, que se deu a descoberta salvadora do ouro no Brasil.
Porém, a exploração do ouro de aluvião, por mais abundante que seja, pelas vantagens de dispensar investimentos e técnicas sofisticadas, é incrivelmente efêmera. Em meados do século 18 já entrava em decadência, provocando grave crise nas últimas décadas.
Para se reerguer, a colônia precisaria de um novo produto para exportação. Seria o café cujo ciclo começaria no início do século seguinte.
Cartografia seiscentista tardia
“Mapa da maior parte da costa, e sertão, do Brasil”: esse mapa é de autoria do jesuíta francês Jacobo Cocleo que, sintetizando os conhecimentos acumulados pelas entradas e bandeiras dos séculos 16 e 17, é representativo da cartografia do final do século 17.
A segunda investida dos bandeirantes para o oeste
Logo no início do ciclo do ouro, houve a Guerra dos Emboabas (1708-1709). Os bandeirantes paulistas reivindicavam o monopólio da exploração das jazidas de ouro, pois eles as tinham descoberto. Mas os emboabas, os forasteiros para os bandeirantes, inclusive reinóis que chegavam à região das Minas atrás do ouro, não arredaram pé. Os emboabas foram ainda favorecidos pela Coroa que tinha interesse em cobrar impostos e, assim, não concedeu o monopólio reivindicado pelos bandeirantes. Estes acabaram perdendo a guerra e se retiraram. Continuaram buscando metais preciosos no antigo estado de Mato Grosso e em Goiás, mas foram eles que deram os retoques finais que definiram os contornos gerais do Brasil.
Mato Grosso e Goiás
Ouro foi descoberto por volta de 1720 no Mato Grosso, perto da atual Cuiabá. Desta vez eram organizadas as monções, as famosas monções do rio Tietê. Desde 1722 até 1838 elas partiam de Araritaguaba, atual Porto Feliz, SP. Seguiam os rios Tietê, Paraná, depois o Pardo e Anhandeú no atual estado MS. Daí seguia-se a pé até Campos das Vacarias para atingir o rio Miranda (MS), de onde se continuava pelo rio Paraguai até Cuiabá. As monções para os bandeirantes eram vitais, pois transportavam os itens de sobrevivência para os faiscadores, mineradores e escravos dedicados só à lavra do ouro. As monções eram tão penosas e perigosas que desencorajavam os exploradores espanhóis a atacá-las. Mas, estes já estavam contentes com Potosí. Todavia os monçoeiros deveriam evitar as missões dos jesuítas a serviço da Espanha, na margem direita do rio Guaporé (lado leste da atual fronteira entre a Bolívia e o Brasil), pois ataques poderiam vir dali, em represália pela retomada da Colônia do Sacramento, segundo os termos do Tratado de Madri (1750).
De qualquer forma, o ouro do Mato Grosso, de aluvião, também acabou logo. Capitães-generais que governaram Mato Grosso nesse período, já atuavam com o apoio de engenheiros, matemáticos e cartógrafos que fizeram bons levantamentos e bons mapas. Isso foi uma consequência da nova orientação implantada por D. João IV.
Também por volta de 1720 se descobriu ouro em Goiás, onde a colonização se consolidou melhor que no Mato Grosso, estabelecendo um mercado com fluxo permanente. A ocupação teve início em 1725 em Vila Boa de Goiás, hoje Cidade de Goiás, às margens do rio Vermelho, perto de Serra Dourada. Novas vilas surgiram pelos rios Tocantins e Vermelho. A criação de prelazias ajudou a Coroa na posse e conquista de terras além do meridiano de Tordesilhas. Para descentralizar e melhorar o controle, foi criada a Capitania de Goiás em 1748. As minas de Goiás ajudaram para a prosperidade das minas de Cuiabá, criando um caminho terrestre conectando Goiás a Mato Grosso (capitania desde 1725), além da via fluvial que já conectava Mato Grosso a São Paulo pelas monções. Assim Goiás se integrou ela própria às capitanias do Mato Grosso, São Paulo e Minas Gerais, mantendo a integridade das fronteiras dos territórios conquistados, demarcando limites com fortificações construídas por militares. Depois do esgotamento do ouro, também rápido nessa região, já se abria um extenso território apto ao desenvolvimento da agropecuária e à ruralização da população. O mapa da fronteira do Mato Grosso foi feito pelo primeiro Governador da Capitania de Goiás, D. Marcos Noronha (Conde dos Arcos), nobre português e administrador colonial, que será usado no Tratado de Madri.
Desta vez a coroa não poupou esforços para a ocupação em Goiás e no Mato Grosso. Garantindo a posse das terras, deteve o avanço de missões jesuíticas espanholas que queriam ocupar a margem direita do rio Guaporé. Em 1757 D. José I financiou postos de defesa nas fronteiras. O dinheiro vinha de Goiás. Esse zelo, já sabemos, era o temor de uma represália espanhola em Cuiabá pelo estabelecimento da Colônia do Sacramento como eixo do contrabando da prata de Potosi. Houve batalhas militares entre espanhóis e portugueses até o início do século 19 para estes defenderem o fluxo comercial nos rios Guaporé e Mamoré. A conexão das bacias amazônica e platina já estava estabelecida.
D. João V: Diplomacia e cartografia
Tratado de Utrecht
Quase no fim do reinado de D. Pedro II, pai de D. João V, estourou a Guerra da Sucessão da Espanha (1702-1714), a maior crise entre casas aristocráticas europeias provocada pela morte de Carlos II da Espanha. Este, antes de morrer, sugeriu que o seu sucessor fosse Felipe de Bourbon, o duque de Anjou que se tornaria Felipe V da Espanha. Mas ele era neto de Luís XIV da França. Este também iria precisar de um sucessor e correu o boato de que ele também queria escolher Felipe V. Então, França e Espanha teriam um mesmo rei da casa dos Bourbons. Ora, a maioria dos outros países europeus era da casa dos Habsburgos que formaram a Grande Aliança (Áustria, Inglaterra, Holanda, Suécia, Dinamarca e principados alemães) para evitar esse desfecho. Mas D. Pedro II reconheceu Felipe V como rei da Espanha, o que agradou Luís XIV, mas ofendeu a Inglaterra e a Holanda, ambas da Grande Aliança. Em 1702 a guerra se espalhou rapidamente por toda a Europa e a Espanha perdeu. Portugal pediu ajuda à França, mas essa ajuda não veio. Então D. Pedro II se juntou à Grande Aliança e assinou o pacto de entrar na guerra contra a Espanha. É que o segundo sucessor ao trono da Espanha era o Arquiduque Carlos da Áustria, que apoiava a Grande Aliança. Assim Portugal ganhou cidades da Espanha, e no Brasil ganhou a Colônia do Sacramento e o Amapá. Mas as tratativas iniciadas por D. Pedro II foram formalizadas por seu sucessor D. João V, através do Tratado de Utrecht.
Cartografia para o domínio territorial
“Somente em 1713, com o acordo entre Portugal e França assinado em Utrecht, iniciou-se, então, a sequência de acordos internacionais que exigiriam, na colônia, uma atividade incessante de técnicos e autoridades na busca de informações cada vez mais precisas, sobre as quais dependiam o sucesso ou o fracasso das negociações diplomáticas. Enquanto na Corte eram reunidas as informações coletadas e elaborados os mapas e documentos que serviriam de base para os tratados de limites, na colônia ocorria um inédito movimento de exploração territorial.”[14] A novidade na cartografia eram influxos da Ilustração Lusitana e se caracterizava pelo ideal de representar o real nos menores detalhes. Isso levava ao quantitativo e à representação matemática.
Padres matemáticos Capassi e Soares
D. João V contratou os jesuítas napolitanos João Batista Carbone (1694-1750) e Domingos Capassi (1694-1736), astrônomos e cartógrafos, para enviá-los para o Brasil com a tarefa de representar cartograficamente o espaço colonial brasileiro para o seu projeto metropolitano “O Novo Atlas da América Portuguesa” (1730-1748), pois estava preocupado com as possessões no continente americano.[15] Mas Carbone não vem para o Brasil, pois foi nomeado matemático régio e assume a reitoria do Colégio de Santo Antão; além de atividades científicas, desempenhou também tarefas diplomáticas, atuando como conselheiro de D. João V, inclusive em ações missionárias ultramarinas.
Com Carbone sem poder deixar Lisboa, Capassi partiu para o Rio de Janeiro em 1729 como matemático régio, na companhia de Diogo Soares (1684-1748) em um navio de guerra. A missão no Brasil foi confiada a esses padres em razão de seus conhecimentos “modernos”, ou seja, pelo fato de eles serem peritos em Cosmografia e Matemática, [16. 17, 18] isto é, Padres Matemáticos como eram chamados. Tais características vinham ao encontro das necessidades da coroa portuguesa que, nessa época, buscava superar o que se considerava atraso.
Instrumentos e livros
Capassi e Soares vieram munidos dos instrumentos, assim como de tabelas astronômicas mais precisas e modernas da época, manufaturados ou publicados na Inglaterra.
Métodos de observação
Pela máxima precisão da latitude (1″) e da longitude (1′) encontrada nos registros de Capassi e Soares, pode-se concluir que eles utilizaram os métodos astronômicos mais refinados que estavam ao alcance na época, e que eram praticáveis com os instrumentos e tabelas que portavam.
Itinerário
Em 1730, logo que chegaram ao Rio de Janeiro, Capassi e Soares instalaram um observatório no Colégio da Companhia de Jesus do Rio de Janeiro, no Morro do Castelo, para determinar as coordenadas geográficas da cidade. Nesse local, em 1567 os jesuítas construíram uma pequena igreja de taipa, ao lado do Colégio.[19] Em 1588 foi inaugurada uma nova igreja de pedra e cal. Em 1711, como parte da Guerra de Sucessão Espanhola, uma esquadra francesa atacou o Rio de Janeiro e os defensores portugueses foram incapazes de oferecer resistência, apesar da vantagem numérica. A igreja e o Colégio dos Jesuítas foram saqueados e coube à população pagar um vultoso resgate aos franceses. Nas ruínas do Colégio, Capassi e Soares instalaram o observatório.
Depois as observações se estenderam pelo litoral do Rio de Janeiro. O plano inicial era percorrer em seguida a região de Minas Gerais, mas os governadores do Rio de Janeiro e da Colônia do Sacramento instaram com os dois padres para que fossem à Colônia do Sacramento, onde chegaram em 1730.
Os estudos realizados por Capassi e Soares, particularmente as longitudes por eles levantadas foram mantidas em sigilo, como segredo de Estado, principalmente em relação à Espanha.
Terminando o levantamento na Colônia do Sacramento, Soares pretendia continuar realizando observações no sul da América Portuguesa, passando pelo Rio Grande e Santa Catarina antes de retornar ao Rio de Janeiro, para de lá partir para Minas. Entretanto, o fato do companheiro Capassi ter regressado antes ao Rio de Janeiro (talvez por alguma desavença), levando consigo todos os instrumentos necessários à medição das coordenadas, impossibilitou os planos de Soares. Então, após a volta de ambos ao Rio de Janeiro, ambos se dirigiram ao interior, com o propósito de trabalharem em conjunto na região das Minas Gerais, inclusive na região das Minas Novas (Goiás). Os dois se instalaram em Minas Gerais em 1732 onde permaneceram dois anos e elaboraram um conjunto de quatro mapas [20] que representavam todos os arraiais e vilas da região, os caminhos da capitania, os postos de cobrança de impostos na entrada das capitanias limítrofes (Rio de Janeiro e Bahia), a rede fluvial, as serras mais destacadas e a vegetação da região do Mato Grosso. Para isso, contaram com a ajuda de moradores locais e de um guia pessoal, os quais repassaram informações relevantes sobre as localizações.
Após terem realizado anotações cartográficas das Minas, os padres se dirigiram, no início de 1735 para São Paulo. Independentemente do cansaço que sentia, Soares reconhecia a urgência de visitar Goiás em virtude dos novos descobrimentos de ouro na região. Soares então se preparava para fazer observações nas Minas Novas (Goiás), enquanto Capassi permaneceria em São Paulo elaborando a carta daquela capitania, percorrendo depois sua costa até o Rio de Janeiro, de onde voltaria para Guaratinguetá, em São Paulo.
Provavelmente a viagem pela costa de São Paulo foi o último projeto de Capassi, pois tendo voltado a São Paulo, já adoentado, aí faleceu em 1736. Após sua morte, Soares prosseguiu a missão cartográfica até 1748 no Rio Grande de São Pedro (atual Rio Grande do Sul), após ter retornado de Goiás em 1738.
O retorno de Soares ao sul foi pedido pela Coroa, pois havia necessidade de controlar a região que ainda não possuía um mapa de seus caminhos. Um novo mapa com os caminhos que saíam do Rio Grande de São Pedro para a Vila de Curitiba, e daí para São Paulo e Minas, poderia trazer grandes rendimentos à Coroa, pois, com o mapeamento, seriam cobrados impostos sobre as cavalgaduras e boiadas que seguiam para o centro do Brasil, para abastecer as Minas. A nova carta geográfica também garantiria a ocupação efetiva dos lusitanos na região, que também era ocupada por padres castelhanos em missões com populações indígenas locais. Soares morreu em 1748 em Goiás.
A produção final da expedição de 19 anos foi o Novo Atlas da América Portuguesa.
O Mapa das Cortes (1749)
Este é o nome abreviado do “Mapa dos confins do Brazil com as terras da Coroa de Espanha na America Meridional” [21] utilizado pela Espanha e Portugal na assinatura do Tratado de Madri. O mapa foi encomendado por Alexandre de Gusmão. Um estudo foi realizado,[22] mostrando que esse mapa resultou de uma colaboração entre o embaixador português D. Luís da Cunha (1662-1749) e o cartógrafo francês Jean-Baptiste Bourguignon D’Anville (1697-1782). Deveria ser produzido intencionalmente um mapa, desta vez não tanto para retratar o território com precisão, mas sobretudo para convencer os interlocutores espanhóis nas futuras negociações diplomáticas. Foi o primeiro mapa da América meridional que deu ao Brasil os contornos bem semelhantes aos atuais, ou seja, foi o mapa que configurou o Brasil. D. Luís da Cunha era o embaixador de Portugal na França, sob D. João V. Tendo defendido os interesses de Portugal no Tratado de Utrecht, contatou D’Anville que, como cartógrafo se destacou pela precisão dos mapas e embasamento em cuidadosas pesquisas históricas. Cunha, na qualidade de embaixador de Portugal, encomendou o Mapa das Cortes a D’Anville, que este desenhou com as informações que lhe foram fornecidas. Na elaboração do Mapa das Cortes ele mirou mais o sucesso na esfera diplomática e valorizou mais a história dos tratados do que a precisão cartográfica,[23] seu traço característico. D’Anville foi um geógrafo de gabinete, não de campo. Para fazer os mapas, recebia informações originais de viajantes, mas, usando seu filtro crítico selecionava os dados com os quais produzia mapas “de sua autoria”.
Não foi trivial a elaboração desse mapa. Apenas para exemplificar, em 1747 José Gonçalves da Fonseca, secretário do Governo do Estado do Maranhão e Grão-Pará, desenhou um mapa do rio Madeira (Carta Hidrográfica) com base nas informações recolhidas pelo sertanista Palheta. Esse mapa foi remetido a Alexandre de Gusmão que, depois, solicitaria ao governador do Estado informações mais precisas sobre o Madeira e a sua conexão com as minas do Mato Grosso.[24] As grandes diferenças notadas por Gusmão entre a Carta Hidrográfica de 1747 de José Gonçalves da Fonseca e o Mapa das Cortes, causaram grande perplexidade aos responsáveis políticos portugueses, antes de darem início às demarcações de limites acordadas com a coroa espanhola no Tratado de Madri de 1750, e fizeram Gusmão solicitar informações mais precisas. Estava em jogo a definição da linha demarcadora no extremo oeste do Brasil.
Uma nova expedição foi enviada de Belém do Pará em 1749, para explorar a comunicação fluvial entre o Estado do Maranhão e Grão-Pará e o Mato Grosso através da rota formada pelos rios Madeira, Mamoré e Guaporé. Após nove meses de viagem, a expedição chegou ao Mato Grosso. O regresso foi mais rápido: tendo partido em setembro de 1750, chegaram a Belém três meses depois. O resultado da expedição foi a produção de uma nova Carta Hidrográfica da região que também não resolveu as disparidades que preocuparam Gusmão. Isto serve para ilustrar quão difícil era cartografar certas regiões. Como se não bastasse o emaranhado fluvial natural, as cartas eram feitas a vários mãos, informações adicionais vinham em diários que acompanhavam as cartas, muitas delas obtidas de habitantes locais.
Foi realizada uma análise cartográfica do Mapa das Cortes.
Figura 2. Exemplar impresso do “Mapa das Cortes” elaborado a partir de cópia autenticada em 1893 de carta que se encontra nos arquivos do Departamento Geográfico do Ministério das Relações Exteriores da França.
(Fonte: Mapoteca do Itamaraty. Reprodução)
Tratado de Madri (1750)
O Tratado de Madri, assinado em 1750 nessa cidade pelos representantes de Espanha e Portugal, foi aceito, mas ainda passaria por várias reviravoltas. Foi o último feito diplomático do reinado de D. João V. Sete meses após a assinatura do tratado, D. João V faleceu e foi sucedido por seu filho D. José I. Com a troca de poder, um novo homem forte surgiu na Corte Lusitana: o Marquês de Pombal, que se tornaria um dos maiores críticos dos trabalhos realizados por Gusmão.
O Tratado de Madri estabeleceu que os padres jesuítas espanhóis e os índios deveriam sair da região dos Sete Povos, pois essas terras tinham se tornado portuguesas, abandonando todos os seus bens, exceto os de uso pessoal. Os padres e também os guaranis sentiram-se traídos pela Espanha, nação a que sempre tinham jurado fidelidade. Por isso decidiram que não arredariam o pé das reduções, entendendo os guaranis que aquelas terras não eram portuguesas nem espanholas, mas deles. Tiveram início as Guerras Guaraníticas.
Devido às Guerras Guaraníticas, o Tratado de El Pardo (El Pardo é um palácio real nos arredores de Madri) foi assinado em 1761 pelos representantes de Carlos III da Espanha e D. José I de Portugal, anulando o Tratado de Madri por não ter produzido a almejada paz. Mas esse tratado nem chegou a ser implementado.
Período pombalino
Assim que ascendeu ao trono de Portugal, D. José I nomeou o lisboeta Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), o Marquês de Pombal (desde 1769), Primeiro-ministro até a sua morte em 1777. Pombal era nobre e tinha sido diplomata na Inglaterra. Como Primeiro-ministro de Portugal promoveu várias mudanças drásticas e impactantes no reino e no Brasil, baixando decretos, alvarás e leis.
Abordaremos apenas as ações mais relacionadas com a demarcação de fronteiras e a política indigenista no Brasil e a influência da Reforma da Universidade de Coimbra nos conimbricenses brasileiros.
Demarcação de fronteiras no sul (1752-1756)
Por ser imediatamente posterior à assinatura do Tratado de Madri, foi no período pombalino que começaram os envios de comissões demarcadoras das fronteiras ao Brasil, para estabelecer com precisão os limites nos termos desse tratado. Com ele foram definidos novos limites entre as possessões portuguesas e espanholas, favorecendo as pretensões de Portugal na região amazônica, centro-oeste e sul, sobre territórios conquistados pelos colonizadores portugueses. A Espanha, por sua vez, tinha interesse em obter todo o território da Colônia do Sacramento.[25]
O engenheiro italiano natural de Pádua, Miguel António Ciera (-1782) era um dos estrangeiros que veio para Lisboa em 1751, contratados pela corte lusa para integrar a Terceira Partida do Sul, da comissão demarcadora dos limites das possessões portuguesas na América. Por ordem da coroa de Portugal, deveria esse grupo percorrer o interior da América Meridional entre 1752-1756. Na função de astrônomo e cosmógrafo da equipe demarcadora, Ciera subiu o rio Paraguai até alcançar o Jauru no atual estado de Mato Grosso onde, com seus companheiros, fixou um marco divisório de limites nos termos do Tratado de Madri. Durante essa viagem Ciera colheu informações para construir o seu mapa cobrindo os rios da Prata, Paraná e Paraguai, desde a Colônia de Sacramento até a confluência dos rios Paraguai com o Jauru, com que presenteou D. José I em 1758. Hoje esse mapa encontra-se no acervo cartográfico da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Nesse mapa, além de precisas cartas geográficas, Ciera registrou a lápis e a aquarela elementos da fauna, nativos e paisagens, criando o primeiro conjunto iconográfico da região hoje conhecida como Pantanal.[26]
O marco divisório plantado por Ciera e seus companheiros em 1754, conhecido como o Marco do Jauru, permaneceu no mesmo lugar perto da foz desse rio até 1883, quando foi transferido para Cáceres (MT) à margem do rio Paraguai, na Praça da Matriz. Apesar de outros pequenos translados pela cidade, encontra-se no local inicial, hoje em frente à catedral. Em 2009 um marco simbólico em madeira entalhada foi colocado no local do marco original.[27]
Quando Ciera estava começando seus trabalhos no sul do Brasil, por perto estava, também a serviço de D. José I outro grupo. O Governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrade, era o comissário do lado português, das três partidas para a delimitação das fronteiras da região sul. A primeira partida deveria atuar na região compreendida entre Castilhos Grandes no litoral atlântico do Uruguai e o rio Ibicuí, afluente do rio Uruguai e que corta o estado do Rio Grande do Sul de leste para oeste. Os jesuítas astrônomos Bartolomeu Panigai e Bartholomeu Pinceti, e Estevão Bramieri foram nomeados por D. José I para comporem essa partida. Para essa região eles foram enviados em 1753. A atuação dessa partida é tratada em [28] descrevendo com ênfase os instrumentos astronômicos e os livros científicos utilizados em campo para as tarefas de demarcação.
Após realizar a demarcação que lhe competia, Ciera ofereceu seus préstimos a Gomes Freire de Andrade, que Ciera acompanhou quando esse general comandou as tropas lusas que se dirigiam às missões jesuíticas, em campanha contra os índios, na Guerra Guaranítica. Assim Ciera testemunhou o terrível massacre pelas tropas luso-castelhanas de dois mil índios que defendiam o seu território. Nesse combate foi morto o líder Sepé Tiarajú em 1756.
Nesse mesmo ano Ciera já estava de volta a Lisboa, onde relatou esse massacre à corte. Depois ele foi contratado para administrar o Real Colégio dos Nobres, fundado em 1761. Aí um dos colaboradores dele foi o padre bolonhês Giovanni Angelo Brunelli, que também estivera antes no Brasil (ver adiante), para lecionar Matemática. Mas durou pouco esse Colégio.
Em 1772 foi incumbido de ensinar Astronomia na reformada Universidade de Coimbra. Nesse mesmo ano tornou-se doutor em Matemática com o padre José Monteiro da Rocha, com quem colaborou para a criação da Faculdade de Matemática, na reforma daquela universidade. Ciera foi professor do mineiro de Mariana, Antonio Pires da Silva Pontes (1750-1805) e do paulistano Francisco José de Lacerda e Almeida (1753-1798), futuros demarcadores de limites no pós-Tratado de Santo Ildefonso. Mas em 1780 Ciera voltou a Lisboa para estabelecer a Real Academia da Marinha, onde ensinou Trigonometria Esférica e Arte da Navegação teórica e prática, até o seu falecimento em 1782. Parte dessa Academia veio com D. João VI para o Brasil.
Diretório dos Índios (1757)
No Brasil persistia o problema dos indígenas que antagonizava os colonizadores e os jesuítas. Pombal alterou drasticamente a política indigenista, implantando o seu Diretório dos Índios. Para implantar essa política e todas as outras mudanças, Pombal nomeou seu meio-irmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Mas Furtado não era a pessoa certa para essa função. O Diretório foi aplicado em todo o Brasil, mas, recebendo denúncias de corrupção e abuso das autoridades responsáveis, foi extinto em 1798.
Demarcação de fronteiras no norte (1754)
Furtado foi nomeado comissário português da expedição que estabeleceria a fronteira luso-espanhola na região amazônica. Para exercer essa função, logo recebeu uma equipe de engenheiros, matemáticos e astrônomos que realizariam as tarefas especializadas da expedição. Mas os jesuítas reagiram contra a forma de Furtado conduzir essa demarcação que, planejada para 1754, resultou num fracasso devido à preparação e condução inepta de Furtado. Este não conseguia obter canoas, nem mantimentos para a expedição, nem índios para remar e auxiliar nas tarefas comuns. Para conseguir índios, os padres faziam oposição como protesto pelos maus tratos infligidos por Furtado aos nativos. Estes, que eram os verdadeiros conhecedores da região e deveriam atuar com guias, não foram incluídos na expedição para essa função.
A comissão brasileira de demarcação tinha entre os seus membros, dois padres astrônomos: o jesuíta croata Ignácio Szentmártonyi (1718-1793) e o clérigo bolonhês Giovanni Angelo Brunelli (1722-1804) que tinham chegado em Belém (PA), em 1753.
Brunelli foi admitido como membro da comissão demarcadora, por não ter aparecido um candidato jesuíta. A coroa preferia jesuítas italianos ou alemães. Além disso, Brunelli era arrogante e muito cioso da posição hierárquica dentro da comissão. Com a anulação das fronteiras definidas pelo Tratado de Madri, que fora revogado pelo Tratado de El Pardo em 1761, e também pagando um desagravo ao governador Mendonça, Brunelli voltou nesse ano para Lisboa por ordem do rei, onde deu continuidade à sua carreira de cartógrafo.
Expulsão dos jesuítas (1759)
Foi no trágico Terremoto de Lisboa de 1755 que o jesuíta italiano Gabriel Malagrida (1689-1751), sacerdote influente na corte, mas que fora missionário no norte e nordeste do Brasil a maior parte de sua vida, publicou um livro interpretando esse desastre como um castigo divino. Isso suscitou a ira de Pombal. Malagrida foi depois acusado de ter colaborado no atentado contra a vida de D. José I em 1758 e preso. Foi ainda denunciado à Inquisição pelo próprio Pombal de heresia e condenado pelo Santo Ofício à morte lenta no garrote vil e à queima em fogueira no dia seguinte, num auto de fé em 1761 na Praça do Rossio, em Lisboa. Isso ocorreu já na fase do chamado Terror Pombalino. O ódio de Pombal crescia e seu despotismo crescia. Para ele ainda faltava extirpar os jesuítas conspiradores. Foi o que aconteceu em Portugal e nas colônias em 1758.
Cabo do Norte
Quanto ao Cabo do Norte, a França, no Tratado de Utrecht de 1713, tinha concordado que o rio Oiapoque era a fronteira divisória entre a Guiana Francesa e o Brasil. Mas depois ela contestou alegando que o rio Oiapoque não era o mesmo que o rio Vicente Pinzón citado no tratado, e passou a reivindicar a parte em que hoje está Calçoene. As reivindicações eram antigas, mas recrudesceram quando ouro foi encontrado lá em 1893.
A demarcação territorial no Cabo do Norte foi uma das mais demoradas e só se resolveu no início do século 20.
Ilustração pombalina
Pombal teve contato com as novas ideias do Iluminismo que proliferava nos meios eruditos europeus e, como um português “estrangeirado”, termo da época, ajudou a implantar a Ilustração Lusitana, uma versão local de uma modernidade “para inglês ver” sem expurgar perversidades ancestrais, em que se tentava mesclar elementos contraditórios como teocentrismo e antropocentrismo, absolutismo de estado, despotismo e livre-arbítrio, onde velhas estruturas da nobreza antagonizavam com produtores e mercadores. A ilustração pombalina manteve a escravidão dos negros e o Pacto Colonial.
Por outro lado, o déspota esclarecido Pombal, por lei válida em todo o Estado do Brasil, aboliu a escravidão dos indígenas de forma definitiva em 1758; elevou o Brasil a vice-reino de Portugal, quando o Rio de Janeiro passou a ser a capital do Brasil em substituição a Salvador em 1763. Em 1773 aboliu a distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos.
Através de um alvará de 1761, Pombal encaminhou a abolição do tráfico e escravidão de negros em Portugal. Ficava proibido transportar negros de qualquer rincão do império, fosse na África, Ásia ou América para o Reino. Uma nova lei de 1773 concedeu liberdade geral aos negros cativos em Portugal e Algarve. Esses dispositivos legais cuidadosamente protegiam a liberdade dos negros e o seu tráfico na Metrópole, mas não nas colônias.[29] Isso criou o contingente de desertores que iam a Portugal para lá obterem a liberdade, caso de negros marinheiros. Foram dispositivos legais especiosos que permitiram o tráfico e a escravidão no Brasil.
Reforma da Universidade de Coimbra (1772)
No campo educacional Pombal foi influenciado pelo padre português oratoriano, teólogo e pedagogo Luís António Verney (1713-1792), considerado um dos mais veementes estrangeirados do Iluminismo. Verney foi autor da famosa obra, “Verdadeiro Método de Estudar, para ser útil à República e à Igreja: proporcionado ao estilo, e necessidade de Portugal” (1746). Criticava no ensino que era dominado pelos jesuítas, a permanência no aristotelismo ensinado nos moldes da Segunda Escolástica, formatada pelo jesuíta espanhol, filósofo, teólogo e jurista Francisco Suárez (1548-1617), já que a Primeira Escolástica era a do dominicano italiano Tomás de Aquino (1225-1274). Suárez passou os últimos anos de sua vida em Portugal, onde morreu. Verney apregoava uma educação que privilegiasse as ciências naturais e a experimentação, com o objetivo de formar uma elite cultural aberta ao pensamento racional e empírico.
Com essa inspiração Pombal promoveu a célebre reforma da Universidade de Coimbra em 1772.
P. José Monteiro da Rocha (1734-1819)
Um ex-jesuíta educado no Colégio da Bahia, talentoso matemático e astrônomo, colaborou com Pombal na reforma da Universidade de Coimbra.
Determinação precisa da longitude
No tocante à Astronomia, a determinação precisa da longitude se tornou uma demanda premente no fim do século 17 para os empreendedores privados, como também para os estados. Acidentes por desconhecer a localização correta no mar, causavam mortes e grandes prejuízos pela perda de cargas e embarcações. Os estados decidiram fundar observatórios nacionais como o de Paris (1667) e o de Greenwich (1675), que se tornaram instituições de longa duração, tanto que existem até hoje. Também começaram a ser oferecidas recompensas e prêmios por casas reais, como da Espanha e Inglaterra, companhias de comércio e mercadores. Podendo fazer melhor aplicação dos métodos de satélites de Júpiter, de distâncias lunares e de eclipses lunares utilizando melhores instrumentos de observação e de controle da hora local, os erros de longitude se tornaram <1º em 1720 em terra firme. A melhoria continuaria com uso do telégrafo a partir de 1850, com o advento do rádio, do relógio de quartzo, do relógio atômico e do GPS nos dias de hoje.
Como referência, foi ainda no período pombalino que em 1759 o relojoeiro inglês John Harrison (1693-1776) entregou o famoso cronômetro náutico H4 à comissão julgadora que, finalmente, o considerou satisfatório. O erro dos relógios mecânicos portáteis nos tempos de Newton era da ordem de 2 a 3 minutos por dia. Os relógios de pêndulo se tornaram bastante precisos em meados do século 17 (precisão de até 10 s por dia), mas não podiam ser usados em alto mar. Aí surgiu, depois de muitas tentativas, o cronômetro náutico H4 de Harrison que, submetido a teste numa longa viagem marítima, atendeu aos requisitos de um relógio portátil, capaz de manter a hora certa do local de partida, no caso Greenwich, com precisão de 1 s em um mês. Hoje os relógios atômicos de última geração mantêm a hora certa com precisão de 1 s em 100 milhões de anos.
Com instrumentos ópticos de precisão, com a publicação de efemérides precisas na França a partir de 1761 e na Inglaterra a partir de 1767 (“The Nautical Almanac and Astronomical Ephemeris”), o problema foi considerado solucionado para as necessidades da época, embora ainda pudesse ser melhorado. O método de determinação da longitude pela distância lunar já era cogitado e até tentado desde a viagem de Fernão de Magalhães. Mas só em meados do século 18 se tornou praticável.
D. Maria I
Assim que seu pai D. José I faleceu em 1777, D. Maria I (1734-1816) se tornou rainha de Portugal até 1816. Na verdade, a partir de 1792 seu filho D. João (D. João VI da fuga da Família Real para o Brasil) assumiu a regência em seu lugar porque D. Maria teve problema mental.
O primeiro ato de D. Maria I foi demitir o Marquês de Pombal e instaurar a conhecida “viradeira”. Ela queria restituir a influência da Igreja e da alta nobreza sobre o Estado, libertar os perseguidos de Pombal que enchiam as prisões e viviam em estado lastimável e dedicar-se a ações caritativas a favor de pobres e órfãos. Importante para Portugal, ela assinou o Tratado de Santo Ildefonso e, no campo da cultura e educação criou a Biblioteca Nacional e a Academia Real das Ciências.
Os astrônomos Sanches Dorta e Oliveira Barbosa no Brasil
Ambos eram formados em Matemática pela já reformada Universidade de Coimbra. Sanches Dorta era português, sócio correspondente da recém-fundada Academia Real das Ciências de Lisboa e Oliveira Barbosa era nascido no Rio de Janeiro. Eles foram enviados pela rainha D. Maria I como astrônomos reais para atuarem na demarcação de fronteiras no sul do Brasil, conforme o Tratado de Santo Ildefonso. Na verdade, eles acabaram não realizando os trabalhos demarcatórios, mas realizaram observações astronômicas, meteorológicas e magnéticas com bons instrumentos e com exemplar sistematicidade num observatório que instalaram no Morro do Castelo, no Rio de Janeiro e, depois, realizaram observações astronômicas em São Paulo e prestaram serviços ao Governador da Capitania de São Paulo, como análise da qualidade da água dos rios e fontes da cidade de São Paulo, observações astronômicas no interesse da movimentação de navios no porto de Santos, etc. Outros dois conimbricenses brasileiros também realizaram trabalhos demarcatórios pós-Tratado de Santo Ildefonso a serviço da coroa portuguesa nas regiões norte e oeste do Brasil.
Vinda da família real
Desde 1792, D. João, filho de D. Maria I, era o regente de Portugal. Em 1807 ele ordenou a vinda da família real para o Brasil para evitar a sua captura pelas tropas francesas. Portanto, a vinda da família foi uma fuga do temido Napoleão.
Esse evento era um desdobramento da crise entre Portugal e França. Esta disputava hegemonia com a Inglaterra, a grande potência marítima. Para derrotá-la, tendo já levado a pior em 1705 na Batalha de Trafalgar (Cabo Trafalgar no Atlântico, perto do Gibraltar), Napoleão decretou o Bloqueio Continental. Mas Portugal, nação tradicionalmente aliada da Inglaterra, terrivelmente endividada com ela, não participou do bloqueio. Daí o temor de D. João de ser retaliado. Ocorria também a ocupação das tropas francesas na Espanha, o que fez as colônias da América hispânica se aproveitarem para proclamar a independência.
A fuga feita com escolta britânica, acabou sendo boa para o Brasil, pois a vinda da Família Real para o Rio de Janeiro representou a transferência de toda a Corte e administração do Reino para o Brasil. Este passou a ser a sede do governo português e isso mudou a sociedade colonial. Várias providências foram tomadas por D. João em relação ao comércio, economia, administração, cultura e ciência. Decretou a abertura dos portos brasileiros ao comércio exterior, a permissão de manufatura revogando a proibição de D. Maria I de estabelecimento de fábricas no Brasil. Foi criada uma escola de cirurgia na Bahia e outra no Rio de Janeiro. Também instituições foram trazidas de Portugal melhorando o ensino, as ciências e a cultura.
No que concerne à Astronomia, foi transferida para o Rio de Janeiro a Academia Real dos Guardas-Marinhas (unidade da Real Academia da Marinha criada em Lisboa por Miguel Ciera em 1780), para formar oficiais da Marinha para servirem a Coroa portuguesa em tarefas de cartografia e navegação. Para a navegação os conhecimentos astronômicos eram indispensáveis, pois através das posições dos astros se conhecia a posição do navio no mar. “Com a transferência da sede do reino de Lisboa para o Rio de Janeiro, a segurança territorial e ausência de pessoal qualificado na agora ex-colônia eram as preocupações que demandavam ações imediatas. A segurança territorial implicava no conhecimento dos limites do território Brasil e na constituição de forças militares capazes de defendê-lo da cobiça de estados estrangeiros. Havia falta de oficiais e de engenheiros, reflexo de política equivocada das cortes portuguesas em relação à colônia.”[30]
Na transferência da Academia Real dos Guardas-Marinhas de Lisboa para o Rio de Janeiro, além de todo o material didático e instrumental da Academia, veio também um rico acervo de mapas, plantas e documentos ligados aos históricos tratados territoriais que ficaram depositados no Real Archivo Militar criado por D. João VI, do qual o Arquivo Histórico do Exército, no Rio de Janeiro, é sucessor direto.
A Academia Real dos Guardas-Marinhas foi a primeira instituição oficial de ensino da Astronomia no Brasil que, de forma ininterrupta se conecta ao atual Observatório do Valongo, unidade acadêmica do Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O Observatório encontra-se no Morro da Conceição, no bairro da Saúde, no centro velho do Rio de Janeiro, e sedia cursos de graduação e pós-graduação em Astronomia.
D. João fundou também o Jardim Botânico, o Museu Nacional, a Biblioteca Real, a Imprensa Régia e a Academia de Belas Artes. Membros desta última foram convidados por D. João VI a virem ao Brasil, pois queriam deixar a França após o exílio de Napoleão em 1814.
No dia 17 de dezembro de 1815, o Brasil foi elevado à categoria de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, deixando nominalmente de ser colônia de Portugal. D. João VI só foi coroado rei de Portugal no dia 6 de fevereiro de 1818, após a morte de sua mãe, D. Maria I.
Independência do Brasil
Enquanto D. João VI esteve fugido no Brasil, Portugal foi ocupado pelas tropas napoleônicas até 1810, quando os ingleses derrotaram o exército napoleônico. Mas, a partir daí Portugal ficou sob comando britânico. A abertura dos portos no Brasil, decretada por D. João VI beneficiava o Brasil, mas prejudicava Portugal economicamente.
Em 1820 a Revolução Liberal do Porto se radicalizou. Pediam a volta de D. João VI a Portugal, a formação de uma monarquia constitucional acabando com o absolutismo e retrocedendo o Brasil ao status de colônia de Portugal.
Em 1821 D. João VI volta com a corte para Portugal. No final desse ano, as Cortes Portuguesas exigiram também a volta de D. Pedro de Alcântara, já nomeado príncipe regente do Brasil por seu pai, dias antes de embarcar de volta para Portugal. D. João VI mantinha assim um vínculo entre Portugal e Brasil. Mas no início de 1822, no dia que ficou conhecido como o Dia do Fico, D. Pedro já articulado com a elite política local, decidiu contrariar as Cortes e se recusou a voltar. Havia insatisfação no Brasil pelos impostos que eram cobrados por Portugal, mas também havia por parte das Cortes intransigência, autoritarismo e desprezo pelo Brasil.
No governo do príncipe-regente D. Pedro, José Bonifácio assumiu o Ministério do Reino e iniciou o processo eleitoral para uma Assembleia Constituinte. Nesse ínterim, no dia 7 de setembro de 1822 numa viagem a São Paulo, D. Pedro proclamou a Independência do Brasil. De volta ao Rio de Janeiro foi coroado imperador do Brasil, D. Pedro I. Como o Brasil já era Reino Unido a Portugal e Algarves, na Independência foi formalizada a separação política entre o Brasil e Portugal.
Nascia o Brasil como monarquia, a única na América, diferente dos vizinhos republicanos. Nascia não com uma formalizada separação política, ou rompimento com a Metrópole, mas com vínculo entre pai e filho de herança de dívida. Segundo o Tratado de Paz e Aliança entre Portugal e Inglaterra, de 29 de agosto de 1825, a emancipação política do Brasil deveria ser paga pelo Brasil a Portugal no valor de 2 milhões de libras esterlinas.[31, 32] O pagamento, sim, daria a Independência. Na negociação o Brasil teve que pagar também a dívida que Portugal já tinha com a Inglaterra, cerca de 85% dos 2 milhões de libras, sendo o total pago com juros de 5% ao ano. Esse dinheiro o Brasil não tinha, logo teve que obter empréstimo da Inglaterra que negociou esse tratado. Conclusão: o Brasil já nasceu devendo e continuou um país agrícola e monocultural.
Do ponto de vista político, o imperador brasileiro usou de sua autoridade para obstar uma constituinte livre e representativa, mantendo uma monarquia absolutista. A corte absolutista se manteve aliada à aristocracia agrária e escravista e a uma classe burocrática privilegiada, sufocando ideais libertários que espocavam aqui e ali.
Com uma elite política cooptada pela corte, aristocracia e classe burocrática privilegiadas, desigualdade social vincada numa escravidão mal resolvida, a independência foi boa, mas não para todos os brasileiros.
Avanços científicos
Para a Ciência, em especial para a Astronomia, esse foi um período auspicioso. Em 1822 a Igreja revogou a proibição ao ensino da teoria de Copérnico. Nesse mesmo ano, o “Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo” de Galileu, foi retirado do Index. Em 1823 o alemão especialista em óptica, Joseph von Fraunhofer (1787-1826), de Munique, depois de investigar as linhas escuras do espectro solar, descobriu-as também no espectro de estrelas. Espectro é o resultado da dispersão da luz em suas várias cores, que se obtém, por exemplo, quando o feixe de luz atravessa um prisma e se decompõe, como num arco-íris. A presença de finas linhas escuras interrompendo o espectro do Sol e das estrelas, constitui a base observacional para o desenvolvimento da Astrofísica (ramo da Astronomia que aplica conceitos e leis da Física para o estudo dos astros e do Universo), pois essas linhas são produzidas por átomos e moléculas, e elas permitem inferir a natureza e o comportamento físico dos astros.
Evolução da astronomia no Brasil
Houve uma impressionante evolução na Astronomia brasileira desde que D. João VI implantou aqui a Real Academia dos Guardas Marinhas, onde a Astronomia era ensinada para a formação e treinamento de oficiais da Marinha para uso na navegação e no levantamento cartográfico. Em 1810 foi criada a Real Academia Militar onde a Astronomia também era ensinada, mas para a formação de oficiais do Exército para a defesa dos nossos domínios. Em 1827 foi criado o Imperial Observatório do Rio de Janeiro que, em 1871 se desligou da Escola Central, portanto da administração militar. Mas a Escola Central deu lugar à criação da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, braço civil dessa instituição, germe da atual Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O Observatório, quando se desligou da administração militar por desejo do astrônomo francês Emmanuel Liais (1826-1900), com endosso do imperador D. Pedro II, passou a desenvolver pesquisa pura, sem descontinuar os serviços de fornecimento da Hora Certa, de Meteorologia e de Geofísica. Entenda-se aqui por pesquisa pura, aquela que é desenvolvida pela curiosidade, com mero intuito de ampliar o conhecimento, sem objetivar aplicações práticas, utilidade ou lucro.
Na Astronomia, o objeto desse conhecimento desinteressado é o Umwelt (termo alemão que significa meio ambiente) denotando a nossa vocação mais primária, a biológica, que confere o mais básico dos significados ao nosso diálogo com o mundo.[33] Em suma, para o astrônomo o meio ambiente é o Cosmo. Na prática, é desse conhecimento desinteressado sobre o meio que nos envolve, que tem brotado a ciência geradora de novas tecnologias para fazermos frente aos desafios que vão aparecendo, enfim para sobrevivermos.
No Brasil, a Astronomia, com outras ciências, foi impulsionada com a criação da Academia Brasileira de Ciências em 1916 com a denominação “Sociedade Brasileira de Sciencias”. Na década de 1960, os poucos astrônomos brasileiros daquela época, de repente viram-se reunidos por ocasião de um eclipse total do Sol em Bagé (RS), em 1966. Aí eles se deram conta de que já constituíam uma comunidade incipiente. “No início de 1952 o Brasil contava com os seguintes observatórios astronômicos oficiais: o Observatório Nacional (ON) do Ministério de Educação e Cultura (MEC), fundado em 1827; o Observatório do Morro Valongo (OV) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, fundado em 1881; o Instituto Astronômico da Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), fundado em 1906 e inaugurado em 24 de janeiro de 1908, e o Observatório de São Paulo do Instituto Astronômico e Geofísico da Universidade de São Paulo (IAG/USP), criado em 1927.”[34]
Já estava fundada em 1948 a instituição representativa da classe científica, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), assim como as instituições oficiais para o fomento da pesquisa (Conselho Nacional de Pesquisas, hoje Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq) em 1951 e da formação de pessoal (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES) nesse mesmo ano. Houve institucionalização da atividade astronômica e da formação de astrônomos sob uma tutela programática do Estado. Os astrônomos surfaram nessa onda e conseguiram rapidamente resultados científicos palpáveis. Se em 1966 eles eram contados nos dedos, hoje (29/3/2022) são 577 sócios efetivos (com titulação acadêmica completa) filiados à Sociedade Astronômica Brasileira (SAB). Em relação à população brasileira são 27 astrônomos profissionais por 10 milhões de brasileiros. Difícil julgar o verdadeiro significado desse número. Mas podemos estabelecer uma comparação com outros países. Para isso, utilizemos o número de astrônomos de diferentes países filiados à União Astronômica Internacional. Mantendo o número de astrônomos por 10 milhões de habitantes de cada país, temos: 9,55 para o Brasil, mas, para a Suécia (onde esse número é máximo) temos 180,21, seguindo-se a Dinamarca e Austrália. Acima do Brasil entre os países da América Latina estão Argentina, México e Uruguai, nessa ordem. O que se pode dizer é que não seria descabido termos 19 vezes mais astrônomos brasileiros, ou 11 mil.
Deixemos de lado o crescimento quantitativo e falemos agora de evolução qualitativa. As atuais modalidades de atividades astronômicas se multiplicaram significativamente em termos de serviços e subdisciplinas, claro em boa parte pela diversificação universal, mas também pela diversificação na qualificação profissional das pessoas que compõem a comunidade astronômica brasileira. As atuais atividades e subdisciplinas são: Serviço da Hora, Olimpíadas de Astronomia, Ensino básico de Astronomia, Divulgação e Ensino não-formal na Astronomia (museus e planetários), Astronomia Amadora, Popularização da Astronomia, Graduação e Pós-Graduação em Astronomia, História da Astronomia, Arqueoastronomia e Etnoastronomia Brasileira, Astronomia Dinâmica, Astrofísica, Raios Cósmicos, Radioastronomia, Cosmologia, Ondas Gravitacionais, Instrumentação Astronômica, Consórcios Astronômicos Internacionais, Grandes Mapeamentos, Astronomia Espacial para Altas Energias e Meteorítica.[35]
Merece aqui uma nota a Arqueoastronomia e Etnoastronomia Brasileira. A comunidade astronômica brasileira respondeu rapidamente ao apelo da UNESCO de 2001, que lançou uma linha de ação sobre diversidade cultural para promover a proteção e o respeito aos conhecimentos tradicionais, reconhecendo a sua contribuição para o manejo e gestão do meio ambiente. No Brasil que não só é extenso territorialmente, mas abriga a maior parte da Amazônia, meio ambiente é tema prescrito originariamente. Aqui foram e continuam sendo desenvolvidas pesquisas sobre a nossa Astronomia nativa e inclusive sobre a Etnoastronomia de raízes africanas. Nesta matéria já foram apurados interessantes conteúdos astronômicos que podem enriquecer o ensino da história e cultura indígena e afro-brasileira, tornado obrigatório desde 2008 por força de lei.
Mas um indicador objetivo da evolução da Astronomia brasileira é que ela se internacionalizou e se tornou competitiva. Uma breve sondagem foi feita sobre a evolução dos projetos brasileiros mais recentes nos últimos oito anos, com o intuito de atualizar as informações levantadas em 2013.[36]
Figura 3. Houve uma impressionante evolução na Astronomia brasileira nos últimos anos, fundamental também para o desenvolvimento do país
(Constelação indígena da Ema, segundo Germano Afonso Bruno. Acervo Universidade Federal do Paraná – UFPR)
Considerações finais
Conclui-se que a performance dos astrônomos brasileiros é satisfatória. O engajamento e o prestígio internacional alcançado é sólido e irreversível.
Porém, não podemos fechar os olhos para o contexto. A educação de toda sociedade ainda é sofrível. Evitando dados enviesados pela pandemia da Covid-19: em 2019 o analfabetismo entre maiores de 15 anos ainda atingia 6,6% da população (11 milhões de brasileiros); somente 46,6% da população com mais de 25 anos tinha cursado nível fundamental completo; 27,4% o ensino médio completo e 17,4% o nível superior completo.
Em 2020 a pobreza atingiu 24,1% da população e, em 2021 a pobreza extrema atingiu 5,7%. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é um indicador médio da qualidade de vida de um país, baseado na saúde, educação e renda. O IDH corrigido para desmascarar a desigualdade na distribuição do desenvolvimento humano na população de um país é o IDHAD (Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade). Para 2018 o maior IDHAD foi 0,889 para a Noruega e o menor, 0,222 para a República Centro-Africana. Na lista de IDHAD decrescente com 150 países, o Brasil ocupa o 85.º lugar com o índice 0,574. A Argentina está na frente do Brasil no 45.º lugar com índice 0,714, assim como a Venezuela no 75.º lugar com índice 0,6. O Paraguai ocupa o 88.º lugar com índice 0,562 e o Haiti, o 140.º lugar com índice 0,299.
Diante desse pano de fundo vexaminoso, o êxito acima verificado da Astronomia brasileira é mais uma anomalia, fruto do talento e empenho extraordinário de indivíduos extraordinários numa sociedade terrivelmente desigual, que abriga bolsões de miséria e atraso. Para olhos atentos, o bom desempenho da Astronomia destaca mais a profunda desigualdade social, do que uma sociedade justa e equilibrada.
Ainda hoje emergem com diferentes roupagens, mas com força, as velhas heranças culturais acima apontadas: escravismo, pacto colonial, inferioridade intelectual impingida ou assumida. Segundo um precioso estudo baseado em antigos documentos universitários, houve negação a pedidos de criação de uma universidade autônoma no Brasil desde 1542! Mesmo com “soberania” de quase um século, a primeira universidade federal brasileira foi criada só em 1920. Os pedidos acima foram feitos pela Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo e tinham justificação sólida: nível de ensino comparável ao de Coimbra; pouparia gastos de envio de estudantes para o exterior. Mas, do outro lado, os argumentos para indeferir essas demandas foram sempre burocráticos, nunca examinando o mérito. As negativas explicitavam o medo de competir com a colônia, alegavam desavergonhadamente que a solicitação não interessava para a Coroa, nem para a comunidade acadêmica de Portugal e nem para setores da elite letrada brasileira. Afirmavam ainda que a função dos nativos do Brasil era cuidar exclusivamente da produtividade da colônia para o bem da Metrópole. Havia ainda uma visão elitista do acadêmico, sobreposta a uma presumida má-fé do brasileiro que pretendesse ser um acadêmico: “os serviços suaves” das atividades acadêmicas serviriam de pretexto para que as verdadeiras responsabilidades dos nascidos no Brasil deixassem de ser cumpridas. A “verdadeira responsabilidade” dos brasileiros, na concepção do tribunal lusitano, era exclusivamente a atividade extrativista. A função dos naturais do Brasil deveria ser exclusivamente cuidar de seus campos, de seu sertão tão vasto, sem que o conhecimento pudesse distraí-los desta única tarefa.[37] Esses demônios ainda precisam ser esconjurados.
Agradecimento
Agradeço a Ildeu de Castro Moreira pelo convite para escrever este texto, dando-me uma preciosa oportunidade para refletir sobre o passado da nossa Astronomia.