Forma, tamanho da Terra e sua distância ao Sol (1671-1673)

As grandes viagens marítimas do século 16 e, particularmente a circunavegação, despertaram o interesse em calcular o tamanho (raio) da Terra com mais precisão. Em 1617 o físico e matemático holandês Willebrord Snell (1580-1626), aquele da lei da refração, determinou em seu país a distância correspondente a um arco de 1º ao longo do meridiano, utilizando o método da triangulação geodésica. Marcgrave antes de vir para o Brasil, fez observações astronômicas em Leiden, utilizando o mesmo quadrante usado por Snell para realizar a triangulação.

Picard e maior precisão das medições astronômicas

Jean Picard (1620-1682) era sacerdote católico. Estudou no mesmo colégio jesuíta de La Flèche, onde também estudara René Descartes (1596-1650), instituição concebida para selecionar e formar as melhores mentes. Indo para Paris, mesmo autodidaticamente Picard adquiriu competência para ser assistente de Pierre Gassendi (1592-1655), também sacerdote, matemático e astrônomo, capaz de liderar livres pensadores, o primeiro a observar um trânsito de Vênus (trânsito é a passagem de um planeta interno à órbita da Terra, na frente do disco solar) e reintrodutor do atomismo de Epicuro. Em 1655, após a morte de Gassendi, Picard se tornou professor de Astronomia no Collège de France em Paris e em 1666, logo após a fundação, se tornou membro da Real Academia de Ciências. A partir daí ele se dedicou inteiramente a servir a Academia.

Usando o mesmo método de Snell, entre 1669 e 1670 Picard fez medições mais precisas do arco meridiano que passava por Paris. O resultado tinha tanta precisão que o notabilizou. Com base nesse resultado estimou o tamanho da Terra, que foi aplicado por Newton em sua Teoria da Gravitação. Na verdade, Picard usou instrumentos astronômicos mais sofisticados: seu telescópio tinha ocular dotada de retículo (filamento delgado para medir pequenos ângulos) que podia ser posicionado com grande precisão com ajuda de parafuso micrométrico. Já sabemos que o holandês Huygens tinha inventado o relógio de pêndulo em 1657. Para a cronometragem Picard utilizou o pêndulo inventado por Huygens.

Assim a precisão que Tycho Brahe obtinha a olho nu, tipicamente de 2’, passou a ser da ordem de 10”, isto é, 12 vezes superior. Esses aprimoramentos instrumentais elevaram os métodos de determinação de longitude a um novo patamar.

Expedição astronômica de Jean Richer a Caiena (1672-1673)

Graças à precisão alcançada com instrumentos aprimorados, Picard na sequência passou a observar eclipses dos satélites de Júpiter com Jean-Dominique Cassini (1625-1712), primeiro diretor do recém-fundado Observatório de Paris e Jean Richer (1630-1696), astrônomo assistente desse observatório desde a sua fundação em 1666. Este seria enviado pela Academia de Ciências para Caiena, para realizar várias tarefas observacionais de interesse da Astronomia e da Geodésia.

A primeira delas era fazer observações do Sol para melhor determinar a obliquidade da eclíptica (eclíptica é o plano da órbita da Terra ao redor do Sol; sua obliquidade de cerca de 23,4º é em relação ao plano do equador da Terra; ela explica as estações do ano); essas observações em Caiena, a cerca de apenas 5º ao norte do equador, seriam menos afetadas pela refração atmosférica (o índice de refração do ar é próximo da unidade, índice de refração do vácuo, desviando só na quarta casa decimal depois da vírgula; no entanto, seus efeitos falseando a verdadeira posição dos astros são mensuráveis, principalmente perto do horizonte onde não só a densidade do ar é maior, como também a distância percorrida pela luz na atmosfera). Nesse sentido, a observação a maiores elevações acima do horizonte reduz esse efeito, o que é possível perto do equador ou na zona tropical, onde os arcos do movimento diurno dos astros tendem a ser mais verticais.

A segunda tarefa consistia na medição da paralaxe de Marte. Paralaxe, no caso, era a diferença angular da posição de Marte em relação às estrelas fixas, medida em Caiena e medida ao mesmo tempo no Observatório de Paris. A linha de base da triangulação paralática era o segmento ideal de uma reta entre Caiena e Paris. Só por observar de Caiena, próxima do equador como vimos no parágrafo anterior, a paralaxe de Marte medida em Caiena seria afetada com erro menor. Além disso, a ida de Richer a Caiena foi programada para ocorrer quando Marte estivesse na configuração de oposição. Essa configuração ocorre quando a Terra, em seu movimento orbital ao redor do Sol, fica posicionada entre o Sol e Marte, que é exterior à órbita da Terra. Então essa é a configuração em que Marte se encontra mais próximo da Terra, o que favorece a detecção da paralaxe. O importante é que a paralaxe de Marte permite determinar a distância de Marte à Terra. Essa informação torna possível saber a distância de qualquer planeta ao Sol. Como? Recorrendo à 3ª Lei de Kepler segundo a qual, o cubo da distância média ao Sol de qualquer planeta, a menos de uma constante conhecida, é igual ao quadrado do período orbital desse planeta. O período orbital é algo que também pode ser medido por observação. A distância média da Terra ao Sol é um padrão fundamental de medida astronômica denominado Unidade Astronômica. Com essa observação de Richer, ela foi determinada pela primeira vez com boa precisão. Isso permitiu conhecer com confiança o tamanho do Sistema Solar.

A terceira tarefa de Richer era para solucionar uma controvérsia. Já se admitia que a Terra não era perfeitamente esférica. Havia duas possibilidades: ou seria achatada nos polos, ou alongada. O período de oscilação do pêndulo de Huygens poderia dirimir essa dúvida. O mesmo experimento foi realizado em Caiena e em Paris, mantendo-se o mesmo comprimento da haste de suspensão do pêndulo. Notou-se que a frequência de oscilação do pêndulo era menor em Caiena do que em Paris, portanto o período de oscilação era maior. Pela latitude maior de Paris, ou seja, pelo afastamento maior em relação ao equador, se concluiu que a aceleração da gravidade no equador era menor, o que implicava que Caiena estava mais afastada do centro da Terra do que Paris (a rotação da Terra também contribui para aumentar o período do pêndulo, mas essa contribuição é menos importante). Portanto a Terra era achatada nos polos, opinião compartilhada por Huygens e Newton. Já para René Descartes e seus seguidores a Terra era alongada nos polos. Jacques Cassini (1677-1856), filho de Jean-Dominique era um deles.

Pelos resultados obtidos, que respondiam satisfatoriamente a questões astronômicas fundamentais postas na época, só podemos concluir que a missão observacional conduzida por Richer em Caiena foi um sucesso total. Foi a primeira expedição da história empreendida com objetivo exclusivamente científico. Como recompensa ele ganhou o título de matemático da Academia de Ciências.

Oscar T. Matsuura

Oscar T. Matsuura

Oscar T. Matsuura é docente aposentado do Departamento de Astronomia do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, onde liderou o Grupo de Astrofísica do Sistema Solar. Foi diretor do Planetário e Escola Municipal de Astrofísica Prof. Aristóteles Orsini em São Paulo e é pesquisador colaborador do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST/MCTI). Ultimamente tem se dedicado à História da Astronomia no Brasil.
Oscar T. Matsuura é docente aposentado do Departamento de Astronomia do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, onde liderou o Grupo de Astrofísica do Sistema Solar. Foi diretor do Planetário e Escola Municipal de Astrofísica Prof. Aristóteles Orsini em São Paulo e é pesquisador colaborador do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST/MCTI). Ultimamente…
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