Determinação da longitude pela observação de eclipse lunar

A sugestão antiga de Hiparco (190-120 AEC) de usar o eclipse lunar para a determinação da longitude era perfeita, pois um eclipse total da Lua é um fenômeno que pode ser visto simultaneamente por dois observadores localizados em pontos diferentes do globo. Basta que eles estejam no mesmo hemisfério terrestre, de onde esse eclipse possa ser visto.

O eclipse lunar consiste na passagem da Lua pelo cone de sombra da luz solar, permanentemente projetado no espaço pela Terra. Como isso só ocorre quando é Lua Cheia, o disco lunar é visto como um disco brilhante. O ingresso da Lua Cheia no cone de sombra causa o seu obscurecimento, ou eclipse. Para determinar a longitude, em cada uma das duas localidades o observador deve flagrar com precisão, a hora local de ocorrência dos contatos entre os bordos da Lua e da sombra da Terra. Num eclipse lunar total, são quatro contatos: quando a Lua ingressa na sombra, depois quando o bordo do outro lado da Lua também ingressa na sombra, um bom tempo depois quando a Lua começa a sair da sombra e, finalmente, quando a Lua sai totalmente da sombra. Em média, o diâmetro angular da sombra é 3,7 vezes maior que o da Lua.

Em princípio, apenas um dos contatos bastaria para a determinação da longitude. A observação de mais de um contato é conveniente para aprimorar estatisticamente o resultado final, como também para salvar a situação quando algum contato é perdido por qualquer motivo, por exemplo, pela intromissão de uma nuvem. O outro observador deverá observar os mesmos contatos para que a comparação das duas observações seja possível.

A boa observação de cada contato exige bastante atenção e cuidado, pois interferem aí erros pessoais de julgamento a respeito do instante exato do contato, como também de reação, por exemplo, para sinalizar para um assistente ou acionar algum botão. Além disso, ao instante do contato deve-se associar com precisão a hora local. Ora, na época de Marcgrave, por exemplo, não havia relógios de precisão. Apenas ampulhetas ou pesos amarrados a um cordão (pêndulo) para a contagem de oscilações. Com esses dispositivos apenas se media intervalos de tempo (durações), mas não a hora local. Como a falta de bons relógios era uma premência aguda para os astrônomos, poucas décadas depois o genial cientista holandês Christiaan Huygens (1629-1695), com base na lei do isocronismo do pêndulo (a duração da oscilação independe da amplitude da mesma se as oscilações forem de pequena amplitude), inventou em 1657 um relógio de pêndulo de grande precisão (Horologium oscillatorium), tendo publicado uma obra definitiva sobre isso em 1673. Mas já podemos ver que esse tipo de relógio só funcionaria satisfatoriamente em observatórios em solo firme, não em embarcações em alto mar. Se a medição de um intervalo de tempo já era precária, o quê dizer da determinação da hora local com precisão? Durante o dia ela podia ser determinada com o relógio solar, se o céu estivesse aberto. A hora medida de dia podia ser “preservada” para o período noturno com a ajuda de uma ampulheta ou, bem melhor que isso, ser calculada a partir da medição da altura angular em relação ao horizonte, de uma mesma estrela fixa. Essa estrela, girando conforme o movimento diurno da esfera celeste, atua como o ponteiro de um relógio natural, mas cálculos são necessários. Para Marcgrave isso não era problema.

O intervalo de tempo entre a hora local do contato de cada um dos observadores podia facilmente ser convertida na diferença de longitude entre os dois observadores. Grosso modo, isso se faz com uma regra de três: 24 h está para 360º, assim como a diferença dos tempos locais dos contatos está para a diferença de longitude. A regra de três se justifica porque a rotação da Terra, graças à sua imensa inércia (massa) é bastante estável. Notar que um intervalo de tempo é convertido num ângulo que tem o vértice no centro da Terra, que é a diferença de longitude entre os dois observadores.

Mas Marcgrave simplificou a aplicação deste método. Ele observou o eclipse em Recife mas, no outro ponto de referência (Uraniborg) não havia um parceiro observando. Para isso ele se valeu da publicação de efemérides, em que os instantes de contato do mesmo eclipse já estavam calculados para Uraniborg, por ser um ponto de referência importante naquela época. Assim ele não precisava de um observador em Uraniborg. Apenas ficava na dependência da precisão com que as efemérides tinham sido calculadas. Mas para Recife Marcgrave precisava saber, com a máxima precisão, a hora local dos instantes dos contatos.

A longitude de Recife, tendo Uraniborg como referência, era então determinada pela diferença entre a hora local de Uraniborg e a de Recife para a ocorrência do mesmo contato, como explicado acima.

Uma diferença a ser notada é que, no método da distância percorrida, se navegava entre dois pontos sobre a superfície do globo. Estimava-se a distância entre eles e, de alguma forma, essa distância era lançada graficamente numa carta de navegar. O próprio método gráfico a convertia em ângulo, que já era a diferença de longitude entre esses dois pontos. Assim, uma distância era convertida no ângulo entre esses dois pontos, cujo vértice era o centro da Terra. Na conversão gráfica da distância para ângulo, estava implícita no mapa uma escala que levava em conta o raio da Terra. Mas no método do eclipse lunar, um intervalo de tempo é convertido em diferença de longitude, tirando partido da rotação bastante uniforme da Terra.

 

Para a determinação da longitude é necessário, portanto, algum fenômeno celeste em que ocorra algum evento instantâneo como, no caso do eclipse lunar, o contato do bordo da Lua Cheia com o bordo do cone de sombra da Terra. Há outros fenômenos astronômicos que oferecem essa condição (distância da Lua a estrelas fixas, eclipse de satélites de Júpiter) e é por isso que há uma variedade de métodos astronômicos para a determinação da longitude.

A instantaneidade do evento assegura a boa determinação da simultaneidade da observação desse evento por observadores postados em pontos diferentes do globo. Desde que a Astronomia passou a contar com boas teorias para o cálculo das efemérides e estas se tornaram confiáveis, não eram mais necessários dois observadores fazendo a mesma observação em duas localidades diferentes. Bastava um, sendo que para o ponto de referência se utilizava os tempos preditos pelo cálculo das efemérides. Mesmo assim, para o observador era necessário que o céu estivesse aberto, que ele dispusesse de uma instrumentação adequada para o fenômeno ser observado (luneta dotada de ocular adequada) além de um relógio bem acertado ou de alguma outra forma de determinar a hora exata da ocorrência do evento.

Historicamente, só no século 16 o método dos eclipses lunares começou a ser posto em prática. O descobridor Colombo tirou vantagem da disponibilidade de um novo recurso que acabava de surgir. Na viagem que ele fez em 1504, quando estava na Jamaica, ao sul de Cuba, ocorreu um eclipse lunar no dia 29 de fevereiro. Colombo estava munido de um almanaque com efemérides astronômicas, calculadas pelo astrônomo alemão Regiomontanus (1436-1476) de Königsberg, hoje Kaliningrado (Rússia) e isso fez toda diferença. Nesse almanaque as efemérides estavam calculadas para a cidade alemã de Nurembergue. Em 1439 Gutenberg já tinha inventado a imprensa de tipos móveis e Regiomontanus foi pioneiro na Europa a imprimir publicações científicas. Os erros das efemérides ainda eram grandes, pois usavam as Tabelas Alfonsinas de 1483, patrocinadas por Afonso V de Castela, baseadas ainda na teoria geocêntrica de Ptolomeu. Mas Colombo se aproveitou dessas efemérides de duas formas: ele estava em apuros, necessitando de ajuda dos nativos locais que não se mostravam amistosos. Intimidou os nativos com a previsão do eclipse que se cumpriu e disse ainda que o seu poderoso Deus os castigaria, caso não o ajudassem. Também conseguiu estimar a distância do lugar em que estava até a Europa, embora com erros consideráveis. A grande praticidade era poder determinar diferença de longitude fazendo observações num único local, utilizando efeméride calculada para o local de referência.

Oscar T. Matsuura

Oscar T. Matsuura

Oscar T. Matsuura é docente aposentado do Departamento de Astronomia do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, onde liderou o Grupo de Astrofísica do Sistema Solar. Foi diretor do Planetário e Escola Municipal de Astrofísica Prof. Aristóteles Orsini em São Paulo e é pesquisador colaborador do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST/MCTI). Ultimamente tem se dedicado à História da Astronomia no Brasil.
Oscar T. Matsuura é docente aposentado do Departamento de Astronomia do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, onde liderou o Grupo de Astrofísica do Sistema Solar. Foi diretor do Planetário e Escola Municipal de Astrofísica Prof. Aristóteles Orsini em São Paulo e é pesquisador colaborador do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST/MCTI). Ultimamente…
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