Confira entrevista com Maria Elisa Máximo, secretária regional em Santa Catarina da SBPC
Cada vez mais mulheres vêm ocupando lugares de destaque na sociedade, mas conquistar esses espaços é uma luta constante, especialmente no meio acadêmico. É o que aponta Maria Elisa Máximo, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Para a antropóloga, o fator estrutural é uma das principais causas das distorções entre os espaços e papéis ocupados por homens e mulheres na produção do conhecimento. “A igualdade só será efetivamente alcançada se o princípio do tratamento isonômico for aplicado em todas as instâncias da ciência e do campo acadêmico”, afirma. Como secretária regional em Santa Catarina da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Maria Elisa aborda com veemência as disparidades estruturais que perpetuam a desigualdade de gênero na produção do conhecimento científico. Ela destaca a importância de linhas de financiamento e editais específicos para mulheres cientistas em diferentes estágios da carreira, além de incentivar a formação de grupos de pesquisa focados em estudos de gênero e diversidade. “As novas gerações precisam mais do que exemplos nos quais se espelhar e se inspirar. Elas precisam de condições reais e efetivas para acessarem, permanecerem e transitarem no meio acadêmico, em todas as suas áreas e espaços, incluindo instâncias de poder e decisão”, pontua. A experiência e o compromisso de Maria Elisa Máximo com a causa se refletem em suas ações e palavras. Ela acredita que a adoção de políticas específicas para apoiar mulheres cientistas, desde o financiamento até a formação e pesquisa, é crucial para promover um ambiente acadêmico mais justo e inclusivo. Máximo, que também é professora do Departamento de Antropologia da UFSC, mãe e cientista, aponta os maiores desafios enfrentados por mulheres na ciência: a maternidade e a hostilidade do meio acadêmico, agravada pelo machismo institucional. “Se pensarmos que a ciência hegemônica coaduna com lógicas produtivistas, utilitaristas e mercadológicas do capitalismo contemporâneo, o diálogo com outras matrizes de conhecimento nos coloca uma série de questões sobre que tipo de ciência queremos produzir”, enfatiza.
Leia a entrevista completa!
Ciência & Cultura – Em sua opinião e vivência, como as mulheres têm contribuído para avanços significativos no campo científico ao longo dos anos?
Maria Elisa Máximo – Mulheres têm contribuído no campo científico em várias frentes e perspectivas. Hoje, vemos mulheres liderando e envolvidas em pesquisas sobre astrofísica, estudos climáticos, biomedicina, dentre outras áreas onde até pouco tempo atrás só víamos homens atuando. A Jaqueline Goes, recentemente nomeada Embaixadora da Ciência no Brasil, é um exemplo importante dessas conquistas: uma mulher, negra, nordestina, que coordenou a equipe responsável pelo sequenciamento do genoma do vírus SARS-CoV-2, poucos dias após a confirmação do primeiro caso no Brasil. Nas Humanidades, onde as mulheres estão, historicamente, em maior número, há contribuições importantíssimas em todas as áreas e campos, mas destaco o campo interdisciplinar de estudos de gênero, que possibilitam a sociedade entender como as desigualdades e violências de gênero se expressam nos mais diferentes espaços, colaborando direta e indiretamente na elaboração e implantação de políticas públicas para a promoção da equidade, o reconhecimento da diversidade de modos de se “ser mulher” e para o fortalecimento de uma perspectiva interseccional, que olhe para as questões de gênero considerando atravessamentos de raça, etnia, classe social, deficiências e outros marcadores sociais e condições materiais de vida. Por fim, há outra frente de atuação das mulheres nas ciências, hoje, que não pode deixar de ser mencionada: há um grupo crescente de mulheres que vêm se dedicando a repensar a própria ciência na forma como esta é tradicionalmente pensada e praticada por indivíduos que representam o “sujeito universal”, isto é, por homens, brancos e situados no norte global. Devemos falar especialmente de cientistas negras e indígenas que, ao insistirem na potência dos saberes e epistemologias locais, permitem repensarmos não apenas o que costumamos definir como conhecimento científico, mas também as formas de produzi-lo. Se pensarmos que a ciência hegemônica coaduna com lógicas produtivistas, utilitaristas e mercadológicas do capitalismo contemporâneo, o diálogo com outras matrizes de conhecimento nos coloca uma série de questões sobre que tipo de ciência queremos produzir, para quem, com quem e que futuro desejamos construir a partir dela? E as mulheres, na sua diversidade, têm sem dúvida alguma protagonizado essas reflexões.
“Há um grupo crescente de mulheres que vêm se dedicando a repensar a própria ciência na forma como esta é tradicionalmente pensada e praticada por indivíduos que representam o ‘sujeito universal’, isto é, por homens, brancos e situados no norte global.”
C&C – Quais são os principais desafios enfrentados pelas mulheres na busca pela igualdade de oportunidades e reconhecimento em áreas científicas, em sua visão?
MEM – São muitos, certamente. Eu diria que o maior desafio ainda é fazer com que governos, legisladores, gestores institucionais e a sociedade de modo geral compreendam que a igualdade só será efetivamente alcançada se o princípio do tratamento isonômico for aplicado em todas as instâncias da ciência e do campo acadêmico: que é tratar desigualmente os desiguais na medida das suas desigualdades. Isso já deveria ser um assunto superado, mas o fato é que nas políticas públicas, nos critérios de pontuação e avaliação da produção científica, na dinâmica dos concursos públicos, na definição das lideranças e gestores e em outras esferas da vida acadêmica ainda persiste a lógica meritocrática que, por sua vez, segue privilegiando as mesmas pessoas, a maioria homens, a maioria brancos, a maioria heterossexuais e cisgêneros. Mudar esse estado de coisas implica em fraturar essa estrutura, enfrentar a meritocracia e encarar uma agenda que inclua um tratamento distinto para cientistas mães e mães atípicas, que repense formas de ingresso para mulheres deficientes, que implemente políticas efetivas para a permanência de mulheres trans nos espaços acadêmicos, que enfrente com efetividade e cultura do assédio e do estupro, que crie linhas de financiamento mais robustas para projetos coordenados por mulheres, etc.
C&C – Qual é o impacto do pioneirismo de figuras como Rosina de Barros, Ligia Sila Leite, Lilia Moritz Schwarcz, Carolina Bori e Johanna Dobereiner na história da ciência no Brasil?
MEM – Elas abriram caminhos, mostraram ser possível ocupar espaços de diferentes graus de importância, produziram trabalhos relevantes, alcançaram reconhecimento e, por isso, têm um papel fundamental na representatividade. Mas, sem diminuir a importância dessas mulheres, é crucial refletirmos sobre os limites da representatividade. Em geral, o papel da representatividade esbarra na cultura meritocrática: elas chegaram lá, nos “topos” da carreira acadêmica, em suas áreas, em suas áreas; mas, há de fato condições reais para que todas cheguem? Também é preciso pensar sobre que mulheres são essas que “chegam lá”? Que cor elas têm? De onde elas vêm? Ao nos fazermos essas perguntas, muitas vezes, vamos nos deparar com privilégios que foram ou são determinantes para o sucesso de um carreira na ciência e isso nos permite problematizar o papel da representatividade. O que quero dizer é o seguinte: se quisermos que as meninas de hoje se tornem futuras cientistas, elas devem sim conhecer, ler, explorar a histórias dessas mulheres, sua produção, sua trajetória. E mais: precisamos ampliar esse panteão da representatividade, e incluir definitivamente nomes como Lélia Gonzalez, Jurema Werneck, Cida Bento, Sueli Carneiro, Luiza Bairros, Sônia Guimarães e outras intelectuais negras, indígenas, deficientes, etc. Mas, as novas gerações precisam mais do que exemplos nos quais se espelhar e se inspirar. Elas precisam de condições reais e efetivas para acessarem, permanecerem e transitarem no meio acadêmico, em todas as suas áreas e espaços, incluindo instâncias de poder e de decisão.
“A divulgação científica pode reforçar o protagonismo das mulheres na produção de ciência, difundir sua produção científica e afetar positivamente a opinião pública.”
C&C – Como a divulgação científica pode desempenhar um papel crucial na promoção da participação das mulheres na ciência?
MEM – Com certeza, a divulgação científica pode reforçar o protagonismo das mulheres na produção de ciência, tecnologia e inovação em todos os campos de conhecimento, difundir sua produção científica e afetar positivamente a opinião pública. Pensando especificamente na divulgação científica, que envolve veículos, jornalistas e outros agentes, para que a atuação das mulheres seja pauta prioritária, vire manchete e destaque nos sites, revistas e demais canais, é fundamental subverter a estrutura que privilegia sempre os mesmos nomes, as mesmas áreas, o mesmo tipo de produção científica. Não podemos esquecer que existem desigualdades e assimetrias profundas no campo científico que fazem com que as chamadas ciências “duras” (biológicas, ciências da saúde e aquelas inseridas na sigla STEM) ainda sejam aquelas normalmente alçadas ao estatuto de ciência. As Humanidades, ao contrário, nem sempre são vistas como ciências. Curiosamente, de modo geral, é nas Humanidades que encontramos uma maior participação de mulheres. Precisamos, é claro, de uma série de políticas e iniciativas que promovam maior participação de mulheres nas tais ciências “duras”, mas também precisamos reivindicar cada vez mais o estatuto científico das Humanidades para, consequentemente, valorizar e difundir a produção científica de mulheres.
C&C – Como as representações e narrativas sobre mulheres na ciência têm evoluído ao longo do tempo, especialmente no contexto da revista Ciência & Cultura?
MEM – As contribuições das mulheres nas ciências devem estar cada vez mais presentes no cotidiano das editorias, nas pautas diárias. Penso que os veículos de divulgação científica da SBPC — a revista Ciência & Cultura, mas também o Jornal da Ciência — se esforçam nesse sentido e servem de exemplo, mas isso precisa ser a regra em todos os meios de divulgação científica. Afinal, se as conquistas são muitas, as barreiras e dificuldades que encontramos também são muitas. Hoje em dia, por exemplo, enfrentamos forças reacionárias que ocupam espaços de poder e de decisão para tentar retroceder em direitos conquistados pelas mulheres. A educação e a ciência estão entre os campos mais disputados por esses grupos radicalizados e seus agentes políticos, que tentam a todo custo deslegitimar nossas pautas, tirar direitos e, mais do que isso, impedir ou minar o debate sobre equidade de gênero e suas interseccionalidades nos espaços educacionais. A educação científica deve ser priorizada desde a escola, para que mais e mais meninas se interessem por acessar e ocupar os campos científicos. Nesse contexto, veículos como a Ciência & Cultura, que compreendem o papel da ciência na manutenção e nos, fortalecimento da democracia, da justiça social e das equidades, têm um papel fundamental. Abrir espaços para que mulheres diversas — negras, indígenas, deficientes, lésbicas, trans — contem suas próprias histórias, apresentem as ciências que produzem, tragam suas questões e demandas é, a meu ver, uma urgência.
“Daí a importância e a revolução provocada pelas ações afirmativas nas universidades, descolonizando esses espaços, inserindo neles corpos e saberes diversos.”
C&C – De que maneira a diversidade de perspectivas e experiências das mulheres contribui para a riqueza e a inovação nos campos científicos e culturais?
MEM – A meu ver, a maior contribuição das mulheres hoje para a ciência e a cultura vem, justamente, dos grupos e categorias sociais historicamente sub representados nesses espaços. Não há mais possibilidades de discutirmos equidade de gênero sem considerarmos o quê o feminismo negro, as cientistas indígenas, os estudos sobre deficiência, o transfeminismo vêm produzindo, debatendo e demandando acerca do acesso e permanência nos campos científicos. A presença dessas pessoas nas universidades — uma presença conquistada tardiamente, diga-se de passagem, e ainda insuficiente — é fundamental nesse processo, pois deixa evidente que “ser mulher” nesses espaços implica em experiências, modos de existência e enfrentamentos muito distintos. Daí a importância e a revolução provocada pelas ações afirmativas nas universidades, descolonizando esses espaços, inserindo neles corpos e saberes diversos. O grande desafio ainda é eliminar as formas de violência que essas mulheres ainda enfrentam nas diferentes esferas da academia e das ciências: são violências que vão desde a dimensão epistêmica — pelo não reconhecimento, valorização e até pelo “sequestro” de suas ideias e formulações — até violências psicológicas e físicas, pelas práticas de assédio moral e sexual. Nesse ponto, é urgente que governos e gestores se empenhem na elaboração e efetivação de políticas públicas e institucionais voltadas ao enfrentamento dessas violências, incluindo o racismo, xenofobia, intolerância religiosa, discursos de ódio, manifestações neofascistas e qualquer outra prática ou visão de mundo pautada pelo machismo e pela misoginia.
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