O injustiçado P. Ignácio Szentmártonyi (1718-1793)

Além da formação religiosa, o jesuíta croata Szentmártonyi recebeu conhecimentos em Matemática quando estudou em Viena e foi professor dessa disciplina em liceus dos jesuítas na Croácia. A pedido de D. José I teria ido a Lisboa para realizar no Brasil a missão cartográfica.

Quando Szentmártonyi partiu de Lisboa, o rei de Portugal D. José I o condecorou com o título de matemático e astrônomo real, prometendo remunerá-lo com um salário regular para o seu trabalho científico no Brasil. Como recompensa especial teria direito a regressar à sua pátria uma vez que a tarefa fosse realizada. Ele e seu companheiro, o padre bolonhês Giovanni Angelo Brunelli, também astrônomo, trouxeram os instrumentos mais modernos da época.

Tendo chegado a Belém em 1753, não tiveram outra escolha senão esperar cerca de dezoito meses até que a expedição do governador Furtado partisse em direção ao rio Negro. Szentmártonyi aproveitou o tempo entre 1753 e 1754 conhecendo o Baixo Amazonas medindo a longitude e a latitude de diferentes localidades, antes mesmo que a expedição oficial tivesse começado. É dele o estabelecimento da longitude de Belém e a diferença de longitude entre Belém, Macapá e Mariuá (atual Barcelos, no rio Negro), com base em observação de eclipse lunar e de satélites de Júpiter. Nessa época esse último método já era bastante utilizado.

Quanto à medição do tempo, o cronômetro náutico H4 do relojoeiro inglês John Harrison (1693-1776), com erro de apenas 0,2 s por dia, ainda estava por vir, mas Szentmártonyi e Brunelli utilizaram o método de conservação do tempo em que a hora local medida de dia com o Sol, era mantida para observações astronômicas noturnas com relógio de pêndulo cujo desvio era da ordem de 1 s por dia.

Em 1754 Szenmártonyi fixou a longitude geográfica da localidade em que o rio Madeira deságua no Amazonas e realizou a observação de um eclipse lunar em Macapá, na embocadura do Amazonas, para determinar a longitude, antes de seguir na expedição para o rio Negro.

Já em 1754, antes da partida rumo ao rio Negro, um grande número de soldados tinha se insurgido contra a expedição, da forma como estava sendo organizada. Não era necessário que participassem tantos soldados a fim de fixar fronteiras. O governador falseava propositalmente o objetivo da comissão, pois na América ninguém tinha assumido nenhuma responsabilidade de levar a efeito o Tratado de Madri, nem havia qualquer indicação de que os espanhois se aproximavam perigosamente do rio Negro.

O governador Furtado, que dirigia a expedição com cerca de 1.000 soldados e índios, além de 20 canhões, começou a subida ao rio Negro em outubro de 1754 e, somente no fim daquele ano alcançou o destino final, a aldeia de Mariuá. Instalou-se naquela cidade com seu exército, por quase dois anos, à espera dos espanhóis que tinham sido retidos pelos índios no rio Orinoco e, de fato, nunca apareceram.[1] É que simetricamente seria formado também o lado espanhol da comissão demarcadora. Ambas deveriam se encontrar em Mariuá. Não ocorrendo esse encontro, os trabalhos não foram realizados em conjunto. Porém, graças a membros empenhados da comissão portuguesa, o trabalho de reconhecimento geográfico nas margens do rio Negro foi levado adiante, deixando uma produção cartográfica apreciável.

Szentmártonyi não se ocupou somente dos trabalhos científicos, mas também se dedicou ao ensino da Matemática e Astronomia a alguns dos seus assistentes. Talvez aí tenha começado um estremecimento nas relações pessoais entre ele e Furtado, o que ia progressivamente degenerando num conflito aberto. O problema começou mesmo quando um amigo de Szentmártonyi declarou estar ocorrendo uma epidemia numa aldeia da Amazônia, que estava provocando a morte de muitas pessoas. Szentmártonyi demorou alguns meses ocupando-se de todos os pacientes e ministrando os sacramentos aos que morriam. Mas Furtado viu nisso um ato de sabotagem de um membro da sua comissão, que punha em perigo a atuação da expedição. Desde então, não parou de denunciar o jesuíta junto às autoridades religiosas e governamentais (em especial junto ao Marquês de Pombal, seu meio-irmão). Daí em diante, Szentmártonyi foi abandonando cada vez mais o seu trabalho científico de matemático-astrônomo para consagrar-se quase exclusivamente às ações caritativas entre os índios. Interrompeu seus trabalhos de Astronomia na Amazônia a partir do verão 1756 por razões de saúde e por discordar da política de Furtado. Retirou-se em uma residência de jesuítas em Ibyrajuba, perto de Belém.

Enquanto isso, Furtado redobrou a vigilância para obter argumentos que pudessem acusar Szenmártonyi junto aos oficiais. Mas a razão principal desse conflito foi atribuída aos métodos empregados por Furtado com os membros da expedição e mais particularmente com os índios. Ele era um autocrata doentiamente amedrontado com conspirações. Em 1755, já em Mariuá tinha percebido que a expedição fracassaria por causa dos índios. Para se defender, acusou os jesuítas de incitarem os índios a fugir e a levantarem-se contra os soldados.

Mas no dia 18 de outubro de 1760, naquela residência dos jesuítas onde estava recolhido, Szentmártonyi foi condenado a ser expulso com os outros membros da Companhia de Jesus. Foram todos embarcados em um navio que seguiu para Portugal e que chegou a Lisboa em 2 de dezembro do mesmo ano. Szentmártonyi ficou preso nas prisões do Forte de São Julião da Barra (foz do Tejo) e de Azeitão (Setúbal) durante 17 anos, até ser libertado depois da morte do rei D. José I e da queda de Pombal. Seus cálculos matemáticos e registros astronômicos foram confiscados. Acham-se dispersos nos arquivos portugueses. Após ser libertado, seguiu para Viena em setembro de 1777, voltando à Croácia em 1780. Não se sabe ao certo do ano da sua morte. Apontam-se datas tão díspares como 1793 ou 1806.

Uma correspondência do próprio Szentmártonyi ao Marquês de Pombal, de três páginas, dá conta das atividades científicas que ele realizou no Brasil: observações de latitudes e determinação astronômica de longitudes; variações da agulha magnética e medições com termômetros e barômetros.

Foi com base nos cálculos precisos realizados por Szentmártonyi, relativos às longitudes e a latitudes geográficas que foi elaborado um grande mapa que reconstituiu o percurso da expedição desde Belém até Mariuá. De acordo com os especialistas, trata-se de um dos melhores desempenhos da cartografia daquela época.

Certamente pela competência como cartógrafo, Szentmártonyi tinha sido designado para a demarcação do trecho de maior responsabilidade na Amazônia, ao longo dos rios Guaporé e Madeira.[2]


Notas
[1] Rodrigues, Luiz Fernando Medeiros, O matemático e astrônomo jesuíta Ignacije Szentmártonyi e o Tratado de Limites no Norte do Brasil, in Anais do IV Encontro Internacional de História Colonial. Jesuítas, expansão planetária e formas de cultura, Rafael Chambouleyron e Karl Heinz Arenz (Orgs.), Vol. 4, 164-178, Belém, Editora Açaí, 2014.
file:///C:/Users/Oscar/Documents/ARQUIVOS%202022/AstronomiaNaIndepend%C3%AAnciaDoBrasil/AnaisBel%C3%A9m_Jesu%C3%ADtas,%20expans%C3%A3o%20planet%C3%A1ria%20e%20formas%20de%20culturaVol4.pdf
[2] Moura, Carlos Francisco, Astronomia na Amazônia no século XVIII (Tratado de Madri): os astrônomos Szentmártonyi e Brunelli, instrumentos astronômicos e livros científico, Rio de Janeiro, Real Gabinete Português de Leitura, 2008.
Oscar T. Matsuura

Oscar T. Matsuura

Oscar T. Matsuura é docente aposentado do Departamento de Astronomia do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, onde liderou o Grupo de Astrofísica do Sistema Solar. Foi diretor do Planetário e Escola Municipal de Astrofísica Prof. Aristóteles Orsini em São Paulo e é pesquisador colaborador do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST/MCTI). Ultimamente tem se dedicado à História da Astronomia no Brasil.
Oscar T. Matsuura é docente aposentado do Departamento de Astronomia do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, onde liderou o Grupo de Astrofísica do Sistema Solar. Foi diretor do Planetário e Escola Municipal de Astrofísica Prof. Aristóteles Orsini em São Paulo e é pesquisador colaborador do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST/MCTI). Ultimamente…
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