Introdução
As viagens científicas realizadas pelo território brasileiro contribuíram para a constituição da própria imagem do país. Foram realizadas desde o período colonial, mas, com a Independência e a consolidação de instituições nacionais como o Museu Nacional (MN) e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), na segunda metade do século XIX, tornaram-se parte importante dos esforços de construção de uma “ciência nacional”, ou seja, de pesquisas de temas brasileiros feitas por brasileiros.[1]
Acompanharam projetos estatais de conhecimento, conquista, integração e “modernização” do território, como obras de construção de infraestrutura de transportes e comunicação, e empreendimentos de delimitação de fronteiras. Por essas razões, exatamente, legaram farta documentação, como relatórios, fontes iconográficas variadas, diários e cadernos de campo, e riquíssimas coleções biológicas. Nessas expedições, “sábios”, homens de ciência, médicos, naturalistas e cientistas buscavam elaborar soluções para aqueles que eram tidos como os principais desafios nacionais da ocasião. Registros e documentação com grandes angulares interpretativas foram produzidos nessas diferentes incursões graças à tradição de aplicação prática da ciência na resolução de problemas que impediam a expansão da economia nacional,[2] mas também porque, na virada do século XIX para o XX, ciência e medicina constituíam conhecimentos sobre a sociedade e o mundo natural, mas também programas visando à reforma social.[3]
Uma série de expedições e de comissões científicas com objetivos estratégicos foi instituída ao longo dos séculos XIX e XX no Brasil. Extrapolando as metas iniciais para as quais haviam sido organizadas, estas viagens se configuraram como oportunidade para um corpo de especialistas, de variados campos do conhecimento, acionado para realizar trabalhos de campo ou de gabinete e aprofundar os conhecimentos sobre o território pátrio. Neste processo, viajantes discutiram temas como saúde e doença, mas também questões políticas, como a expansão da presença da autoridade pública no território, e dinâmicas sociais, como família, alimentação, vestuário, habitação, trabalho, formas de opressão, violência e dominação, ocupação do espaço, exploração de recursos naturais, biodiversidade, contrastes culturais, sociais e econômicos. Também difundiram equívocos sobre a natureza e as populações, sobretudo no que se refere ao interior do território, apresentado como um grande vazio demográfico, “terra livre e rica” em recursos naturais e pronta para a ocupação, com invisibilização de muitas populações tradicionais, sobretudo sociedades indígenas.
Entre os viajantes estavam também os médicos. Seja na Comissão Cruls, no final do século XIX ou na viagem de Neiva e Penna no início do século XX, lá estavam eles, identificando problemas e prescrevendo soluções, o que nos dá uma dimensão também da importância e do peso que suas análises tiveram nos diferentes contextos em que foram mobilizados. Ao lado de outros cientistas, os médicos desbravaram territórios e ampliaram o conhecimento sobre o próprio Brasil, denunciaram males sociais e se posicionaram como atores centrais nos debates em torno do que significava ser brasileiro.[4]
Figura 1. A Comissão Cruls deveria estudar e demarcar, no Planalto Central, a região para onde seria transferida a capital do país, e também produzir um diagnóstico científico da área
(Membros da Comissão Cruls de delimitação do local de Brasília, em 1894. Fonte: Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Reprodução)
Neste texto, privilegiaremos as atividades de comissões de exploração, viagens e expedições científicas organizadas pelo próprio Estado, na passagem entre os séculos XIX e XX, pois foram cruciais na construção material e simbólica do Brasil. Conferiremos destaque a debates médico-científicos, como o tema do Brasil como um país doente. O panorama histórico visa demonstrar o processo de articulação entre ciências e projetos de país; importante agenda de futuro a ser atualizada nesta ocasião em que refletimos sobre os desafios nacionais no Bicentenário da Independência.
A ciência na unidade nacional
A historiadora Neuma Brilhante, em entrevista sobre o Bicentenário da Independência, afirmou: “A independência do modo como a conhecemos era um dos diferentes projetos e futuros possíveis do Reino do Brasil daquele início dos oitocentos”.[5] Ou seja, havia, na ocasião, muitos projetos em disputa na conformação do que viria a ser o país.
Ciências e cientistas também integraram muitos embates e diferentes projetos de Brasil desde o século XIX. Os principais construtores do Império do Brasil, como José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), por exemplo, eram também homens de ciência para os quais o estudo das ciências naturais era instrumento de intervenção na realidade brasileira. Na sua carreira de homens públicos, foram os artífices da autonomia política do Brasil, conduziram o Brasil imperial e independente, e fomentaram a realização de atividades de pesquisa e de exploração para a produção de conhecimentos que pudessem ser práticos e úteis ao país em gestação.[6] Neste contexto, viagens de exploração científica, que haviam começado como um empreendimento europeu para garantir a posse e o domínio coloniais, foram apropriadas pelos brasileiros para mapeamento das “riquezas naturais” seguindo uma lógica de busca pela autossuficiência econômica nacional.[7]
Além da economia, outra premente necessidade do Império era a ‘unidade’ nacional, ou seja, a integridade física do território. Para tanto, o governo imperial deu início à construção de estradas de ferro e de rede telegráfica, para transportes e comunicação entre as províncias e aproximação de populações tidas como dispersas. Como suporte a essas incursões para o incremento das ligações e caminhos, materiais e simbólicos, entre as províncias, o governo imperial passou a dar apoio e estímulos financeiros à constituição de comissões científicas de exploração comandadas por naturalistas ligados ao IHGB e ao Museu Nacional. A Comissão Científica de Exploração (1856), a Comissão Geológica Imperial (1875), a Comissão Hidrográfica do Império (1879) e a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (1886) foram criadas para sugerirem “melhoramentos materiais” na exploração agrícola das províncias.[8] Encarregavam-se da elaboração de mapeamentos das condições naturais das diferentes localidades percorridas – desde o inventário de plantas, animais e estudos dos solos às condições de navegabilidade dos rios e frequência das chuvas, e de modo a indicarem as melhores áreas de plantio e escoamento da produção agrícola. A ciência, nesse período, ia à frente dos projetos de incremento da economia.
“Nessas primeiras décadas do Estado independente, construir material e simbolicamente um país soberano era uma missão histórica que contou com a participação de séries de instituições científicas, especialmente com vistas ao incremento da economia nacional.”
A Comissão Científica de Exploração (1859-1861), em especial, pode ser vista como parte do projeto de construção do Estado Imperial. Em um movimento de “expansão para dentro”,[9] essa comissão, organizada pelo IHGB, e que integrava as atividades científicas do MN, foi encarregada de explorar o interior de províncias do Norte e Nordeste do Brasil e pretendia contribuir para o conhecimento e a manutenção da indivisibilidade e integralidade do território. Entre os objetivos da Comissão estava o mapeamento botânico, geológico, mineralógico, astronômico e geográfico, bem como das condições meteorológicas e da distribuição das populações indígenas. Pretendia contribuir com a melhoria da agricultura por meio do levantamento das condições climáticas e dos solos, do estudo da topografia dos terrenos e das análises acerca da potencialidade da vegetação e da disponibilidade de água subterrânea.[10] Nas aquarelas produzidas pela Comissão há muitos registros do cotidiano, das populações e paisagens dos locais percorridos por seus membros. As viagens científicas na ocasião eram uma importante etapa de formação de naturalistas, colaboravam com o fortalecimento das coleções e infraestrutura dos museus de história natural, e promoviam o conhecimento e a exploração do território do país em formação.
A ciência na integração nacional
Já na República, a ‘integração nacional’ era o emblema central do governo federal. Significava, basicamente, ocupar e povoar os espaços que eram tidos como “vazios”, ou seja, aqueles do interior do território, tornando-os “produtivos”.[11] Visando à incorporação dos espaços afastados do interior, o próprio Estado brasileiro, na virada do século XIX para o XX, além de promover construção e obras nos portos e estradas de ferro, organizou viagens científicas que constituíram projetos oficiais de modernização e de exploração das potencialidades econômicas do território brasileiro. Daí sua crescente associação com instituições de pesquisa como, entre outras, o Observatório Astronômico, o Museu Nacional e o Instituto Oswaldo Cruz. “Incorporação” e “conhecimento científico” do território constituíam uma aliança, que incluía, com muita frequência, levantamentos sanitários e atividades de combate a doenças nos sítios a serem “ocupados” e “modernizados”.
Dentre essas iniciativas republicanas destacamos a Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil, chefiada pelo astrônomo Louis Cruls; a Comissão Rondon; e as expedições médico-científicas do Instituto Oswaldo Cruz.[12]
Figura 2. Entre outubro de 1912 e março de 1913, a expedição de Carlos Chagas avaliou as condições sanitárias e de vida dos principais centros de produção da borracha na Amazônia, fazendo um levantamento epidemiológico da região
(Expedição de Carlos Chagas à Amazônia. Rio Negro, São José da Cachoeira, 1913. Reprodução)
Organizada em 1892, durante o governo de Floriano Peixoto, a Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil ou Comissão Cruls [13] deveria estudar e demarcar, no Planalto Central, a região para onde seria transferida a capital do país, conforme a nova constituição republicana de 1891. Além da demarcação territorial, no entanto, a Comissão também visava produzir “(…) um diagnóstico científico da região que deveria abrigar a futura capital (…)”.[14] Através de seu relatório, publicado em 1894, concluiu-se que o espaço percorrido possuía as “maiores qualidades” possíveis, sendo considerado “perfeito” em recursos naturais e salubridade. A preocupação com esta questão configura aspecto relevante do período, uma vez que o desejo de o país se inserir no concerto das nações “civilizadas” era inviabilizado pela associação comumente feita entre o Brasil e as doenças relacionadas aos trópicos.[15]
Anos depois, foram realizadas as viagens da Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas (CLTEMTA, 1907-1915), mais conhecida como Comissão Rondon.[i] Entre os objetivos da Comissão Rondon estavam a inspeção e o controle das fronteiras, e a integração da região Noroeste ao restante do país, através do telegrafo e do incremento agrícola, sobretudo a partir do reconhecimento científico das “riquezas naturais” da região.[16] A CLTEMTA, comandada por Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1988), com a implantação de linhas telegráficas ao longo de territórios considerados como “vazios demográficos e de poder”, compunha o projeto político de integração e modernização da República brasileira.
A Comissão Rondon, a partir de 1910 incorporou à sua equipe, naturalistas, especialmente vindos do Museu Nacional e que foram responsáveis pelos inventários científicos realizados no período. Esse trabalho teve grande importância em áreas diversas como cartografia, botânica, geologia, zoologia, antropologia e etnografia de populações indígenas e sertanejas. As atividades de reconhecimento e determinações geográficas, o estudo das riquezas minerais, da constituição do solo, clima, florestas e rios caminharam em paralelo aos trabalhos de construção da linha telegráfica, traçado das estradas de penetração, lançamento de futuros centros de povoação, instalação de lavouras e núcleos de criação de gado.
“Nesse movimento, também produziram interpretações sobre o interior do país e suas populações, que foram associadas ao ‘atraso’, ao abandono pelo poder público, ao isolamento e ao sofrimento por doenças evitáveis.”
Também em 1910, no âmbito da Comissão, foi criado o Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN).[ii] Foi o primeiro órgão governamental voltado para a assistência e proteção dos grupos indígenas do Brasil, estruturado, no entanto, em consonância com os objetivos estatais do período, que preconizavam o controle territorial, a defesa de fronteiras e o desenvolvimento regional. Os grupos indígenas, contatados pelo caminho das linhas telegráficas, deveriam, então, ser incorporados à sociedade brasileira, aos modelos de “civilização” do período, transformados em mão-de-obra e em “guardiões” das fronteiras nacionais, o que visava garantir a sua sobrevivência, até então ameaçada pela ação de seringueiros da região amazônica.[17]
O Brasil como um país doente
O então Instituto Oswaldo Cruz, hoje Fiocruz, por sua vez, promoveu expedições ao interior do Brasil, que, comandadas por seus principais médicos e cientistas, acompanharam obras de infraestrutura estatal, como a construção de ferrovias e a inspeção sanitária de portos, e a extração de borracha na Amazônia.[18] Foi o caso, por exemplo, das primeiras viagens médico-científicas que realizou, de pequeno porte, que visavam reverter quadros epidêmicos em áreas restritas e que tiveram início em 1906. Nesse ano, Carlos Chagas foi enviado a São Paulo para debelar um surto de malária na região em que a Companhia Docas de Santos construía uma usina hidrelétrica. Logo depois, ainda no mesmo ano, ao lado de Arthur Neiva e Rocha Faria, Chagas promoveu nova campanha contra a malária em Xerém, na Baixada Fluminense, onde eram construídos reservatórios de água, pela Inspetoria Geral de Obras, para o abastecimento da cidade do Rio de Janeiro. Em 1907, Arthur Neiva atuou em São Paulo, a serviço da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, enquanto Carlos Chagas e Belisário Penna seguiram para Minas Gerais, para dar combate à malária que dificultava os trabalhos de prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil.[18, 19] Em 1910, Oswaldo Cruz realizou a inspeção sanitária das obras da usina hidrelétrica que a Cia. Light and Power construía em Ribeirão das Lages, no estado do Rio de Janeiro, tendo seguido, logo depois, com Belisário Penna, para a Amazônia, a convite da Madeira Mamoré Railway Company.[20] Outra viagem de relevância na associação entre ciência e integração territorial foi a de Carlos Chagas, Pacheco Leão e João Pedro de Albuquerque, em expedição requisitada pela Superintendência da Defesa da Borracha. Entre outubro de 1912 e março de 1913, esses médicos ocuparam-se em avaliar as condições sanitárias e de vida dos principais centros de produção da borracha, na Amazônia, percorrendo, entre outros, os rios Solimões, Juruá, Purus, Acre, Iaco, Negro e o baixo rio Branco. A seguir as demandas da Superintendência, vemos que a expedição tinha como principal objetivo o levantamento epidemiológico da região, de modo a garantir a posterior exploração de seus recursos naturais.[21]
Figura 3. “Incorporação” e “conhecimento científico” do território constituíam uma aliança, que incluía, com muita frequência, levantamentos sanitários e atividades de combate a doenças nos sítios a serem “ocupados” e “modernizados”.
(Vista do acampamento em Caldeirão – PE da expedição de Oswaldo Cruz em 1912. Acervo Casa de Oswaldo Cruz. Reprodução)
As viagens científicas do IOC também se realizavam em função das demandas da Inspetoria de Obras contra as Secas, órgão do Ministério da Viação criado em 1909 com o intuito de avaliar o potencial econômico dos rios, construir açudes e inventariar as condições climáticas, epidemiológicas e socioeconômicas do Nordeste e Centro-Oeste brasileiros. Mais especificamente, cabiam aos membros das expedições ligadas ao Instituto o reconhecimento topográfico e o levantamento sanitário das regiões secas, assim como o compromisso de preparar relatórios com os resultados de suas viagens. Esse foi o objetivo da viagem científica ao Piauí, Pernambuco, Bahia e Goiás organizada por Arthur Neiva e Belisário Penna, em 1912. Como a expedição de Carlos Chagas à Amazônia, a de Neiva e Penna também estava inserida em proposta de integração nacional, e, em seu relatório, temas como o desconhecimento do real valor do sertão brasileiro e a incorporação das populações do interior eram igualmente apresentados como elementos primordiais da agenda política e científica do país.[22]
O relatório desta expedição, juntamente com seus registros fotográficos, tornou-se um importante documento histórico e social, no qual era relatado o modo de vida daquelas populações, seus hábitos, cultura e linguagem, as doenças que as atingiam, a ausência de moeda, o “atraso” econômico e social e o abandono em que viviam em relação ao poder público. Esse abandono e isolamento foram interpretados, no relatório da viagem, como a causa principal das mazelas dessa população, sendo explicados como consequência do descaso dos governos que condenavam as populações do sertão ao “exílio em seu próprio país”.[24] A importância desse relatório deve-se não somente ao fato de se referir à percepção dos intelectuais sobre a sociedade brasileira e seus contrastes, como também por apresentar ideias novas para o pensamento da época ao não atribuir o “atraso” do país à constituição racial da população brasileira.[23]
As imagens que estes médicos relacionaram às populações do sertão, como a de isolamento, doença, resistência a mudanças, uso da terapêutica popular, apatia e acomodação, foram reapropriadas por diversos intelectuais da época.[24] Com isso, o relatório Penna-Neiva alcançou uma grande repercussão nacional, propagando a imagem do Brasil como um país doente, incentivando a campanha pela reforma da saúde pública e pelo saneamento dos sertões. Nesse contexto, foi fundada, em 1918, a Liga Pró-Saneamento do Brasil que reunia importantes intelectuais e políticos brasileiros. A doença generalizada era considerada a razão do atraso nacional, e políticas que pudessem reverter esse quadro eram apontadas como pilares de um projeto de futuro para o Brasil.[24]
As ciências e os desafios do futuro
Neste texto, procuramos destacar brevemente a participação de médicos e cientistas em projetos de construção de infraestrutura para o Estado brasileiro, depois da Independência e nos primeiros anos do regime republicano. Muitas outras expedições e viagens científicas poderiam ter sido abordadas em função de sua centralidade nos programas de modernização do Estado brasileiro e no estudo das populações e suas relações com ambientes naturais em diferentes regiões do território. Nessas primeiras décadas do Estado independente, construir material e simbolicamente um país soberano era uma missão histórica que contou com a participação de séries de instituições científicas, especialmente com vistas ao incremento da economia nacional. As expedições do século XIX estavam primordialmente encarregadas de inventários das “riquezas naturais” do país; as viagens realizadas nos primeiros anos do século XX acompanharam obras estatais de transportes, comunicação e desenvolvimento regional, e sua documentação traz muitas considerações sobre projetos de reforma social, especialmente na área de saúde. Muitas outras iniciativas semelhantes, com evidentes especificidades históricas, se seguiram no século XX, no âmbito de políticas estatais, como a Marcha para o Oeste, e envolveram a expansão da fronteira econômica para o Cerrado e Amazônia.
“O Bicentenário da Independência é, sem dúvida, tempo de balanço crítico sobre a história, mas sobretudo momento de discussão sobre o futuro. Portanto, uma ciência produzida com atenção aos desafios nacionais é pauta histórica que deve ser atualizada à luz das transformações planetárias do século XXI.”
Nesse movimento, também produziram interpretações sobre o interior do país e suas populações, que foram associadas ao ‘atraso’, ao abandono pelo poder público, ao isolamento e ao sofrimento por doenças evitáveis. Alcançar todos aqueles que padeciam de diversos males pelos confins do país permaneceu como um imperativo desde a viagem de Penna e Neiva no início do século XX. Como decorrência dessas viagens, chamaram a atenção da opinião pública para a urgência de ações que pudessem reverter esse quadro e que foram cruciais para a criação de uma estrutura federal de saúde pública, pela primeira vez no país, a partir dos anos 1920. Seus argumentos são fundamentais para a compreensão das razões pelas quais a saúde tornou-se uma das mais importantes questões nacionais nas décadas seguintes.[25]
A redução das desigualdades regionais em saúde e a ampliação do nível de conhecimento dos médicos acerca da realidade da saúde da população brasileira ainda eram agendas norteadoras de todo o Movimento pela Reforma Sanitária, na década de 1980. A ideia de universalização do direito à saúde, tal como previsto na Constituição de 1988 e na criação do SUS, teve origem neste movimento, que identificou a má distribuição de médicos pelo território nacional como um dos maiores obstáculos à sua consolidação.[26] O Programa Mais Médicos, criado pelo governo federal em 2013, apesar de todas as críticas que recebeu, esteve entre as ações nacionais que visavam alcançar as populações mais pobres e vulneráveis do país.
Como se vê, a importante participação histórica das ciências na formulação de políticas públicas, o protagonismo dos cientistas na reflexão sobre os rumos do país, especialmente no que se refere a projetos de fortalecimento da economia e melhoria de vida das populações, são debates que encontram muitos pontos de contato com a pauta contemporânea. É preciso ressaltar que a agenda prioritária de ciência e cientistas têm total relação com o contexto histórico, nacional e global, que a conforma. O conhecimento científico é produzido e as atividades científicas são realizadas em diferentes conjunturas e em atenção a necessidades históricas específicas, tal como vimos na aliança entre ciência e projetos de país “moderno” nas décadas seguintes à Independência.
O Bicentenário da Independência é, sem dúvida, tempo de balanço crítico sobre a história, mas sobretudo momento de discussão sobre o futuro. Portanto, uma ciência produzida com atenção aos desafios nacionais é pauta histórica que deve ser atualizada à luz das transformações planetárias do século XXI. Se, há 200 anos, ‘unidade’, ‘integração’ e ‘modernidade’ do país eram as palavras de ordem, hoje, ciência e cientistas devemos nos empenhar na atualização da agenda nacional prioritária em diálogo com a conjuntura global: enfrentamento de emergências sanitárias; riscos de disrupção tecnológica; mudança climática; defesa da democracia; direito à educação e à saúde universais; políticas de equidade de gênero e raça; pesquisa de novas matrizes energéticas; necessidade de uma economia ambientalmente sustentável e socialmente justa e que prime pelo respeito aos modos de vida das populações tradicionais, sem enfrentamentos de conquista e ocupação de suas terras e vidas. Deste crucial debate dependerá o futuro do planeta. Ambos, afinal, são de todos nós.