Quais os impactos das mudanças climáticas nas populações vulneráveis e o que pode ser feito para mitigar esse problema
Os desastres relacionados ao clima provocaram mais da metade dos novos deslocamentos relatados em 2022. Quase 60% dos refugiados e das pessoas deslocadas internamente vivem em países que estão entre os mais vulneráveis às alterações climáticas. Segundo o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), praticamente metade da população mundial (entre 3,3 e 3,6 bilhões de pessoas) está em uma situação muito vulnerável aos impactos das mudanças climáticas.
Os países mais ricos são os campeões em emissões de gases de efeito estufa, no entanto, quem sofre mais intensamente as consequências do aquecimento global são as regiões mais pobres. Ainda segundo o último relatório do IPCC, entre 2010 e 2020, a mortalidade humana causada por enchentes, secas e tempestades foi 15 vezes maior em regiões mais vulneráveis. Esse fenômeno vem sendo chamado de racismo ambiental. O termo, criado em 1982 por ativistas dos Estados Unidos que protestavam contra um depósito de resíduos tóxicos em uma região de maioria populacional negra, ganha cada vez mais relevância em uma época na qual as consequências catastróficas da degradação ambiental recaem especialmente sobre populações mais vulneráveis.
Adaptações serão necessárias
Devido ao aumento da frequência de eventos climáticos extremos em todo o mundo, muitos países passaram a elaborar planos nacionais de adaptação para as mudanças climáticas. Entre as iniciativas preconizadas por esses planos, estão as chamadas obras de “urbanismo climático”, que visam aumentar a capacidade adaptativa e a resiliência das cidades para enfrentar os eventos climáticos extremos, como enchentes, inundações e desabamentos. (Figura 1)
Figura 1. Populações vulneráveis sofrem mais intensamente as consequências das mudanças climáticas
(Foto: Bruno Peres/ Agência Brasil. Reprodução)
Osvaldo Girão da Silva, professor do Departamento de Ciência Geográficas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), cita algumas adaptações urbanas que podem ser realizadas segundo as características geográficas de cada região: “para combater ilhas de calor é preciso preservar e criar áreas verdes e evitar edificações elevadas, que interferem na circulação dos ventos. Para prevenir inundações é preciso minimizar a impermeabilização de áreas, ampliar sistemas eficientes de drenagem para que a água das chuvas possa escoar, buscar evitar ocupações em margens de canais ou mesmo nas planícies de inundações e tentar conservar a vegetação ciliar e ripária (ribeirinha) que minimiza efeitos de enchentes e inundações e protege as áreas contra processo erosivos”.
“Praticamente metade da população mundial está em uma situação muito vulnerável em relação aos impactos das mudanças climáticas.”
As áreas de encostas, tanto acima dela (montante), quanto abaixo (jusante), são suscetíveis a processos erosivos, que podem ocorrer mesmo sem ocupação. Nos casos em que há ocupação, há medidas que podem ser tomadas para minimizar os riscos da população que habita nessa região: “é indicado promover uma ação de urbanização dessas áreas de encostas, levando em consideração questões de pavimentação, escoamento da água superficial, descarte apropriado de resíduos sólidos e saneamento básico. É uma forma de fazer com que essas áreas permaneçam estáveis e não propensas a instabilidades que levam a movimentação (principalmente se são intensamente ocupadas)”, explica Osvaldo Girão. O pesquisador ressalta também que muitas vezes as ações do poder público desconsideram a experiência adquirida pela população que habita áreas de fundo de vale e de encostas. “Esse conhecimento pode ser utilizado pelo poder público para tentar minimizar os efeitos com a colaboração da população, que tem um entendimento da região muitas vezes maior do que o próprio gestor”, afirma.
Maria Silvia Muylaert de Araújo, arquiteta e chefe do Serviço de Captação de Recursos da Coordenação de Planejamento da Companhia Estadual de Habitação do Rio de Janeiro (CEHAB), acredita que a ampliação de infraestruturas azuis (canais, rio e lagos) e verdes (parques e áreas naturais) podem ser poderosas medidas de urbanismo climático: “A infraestrutura azul fornece funções ecológicas e hidrológicas (evaporação, transpiração, drenagem, infiltração, retenção) críticas para a gestão sustentável da água urbana. Parques públicos, florestas urbanas, árvores de rua e telhados verdes, bem como lagos, lagoas e riachos estão amplamente documentados por fornecer resfriamento local. Grama e áreas ribeirinhas, bacias hidrográficas florestadas podem melhorar a proteção contra enchentes e secas para cidades e assentamentos”.
Tecnologias preditivas e ancestrais
Hoje temos tecnologias que permitem prever eventos climáticos futuros, auxiliando no planejamento de curto e longo prazo para contenção de desastres. Simulações feitas com modelagem em 4D podem prever chuvas, deslizamentos e inundações com alta precisão. Osvaldo Girão comenta que tais tecnologias já são uma realidade no Brasil, o grande problema é a inércia do poder público em relação às previsões: “Hoje temos um leque de tecnologias com a condição de prever eventos extremos, principalmente como o que vimos no estado do Rio Grande do Sul. É importante lembrar que eventos parecidos já haviam ocorrido em setembro e novembro de 2023. O evento de 2024 foi o terceiro que ocorreu em menos de um ano naquela região. Estamos a viver ‘o novo normal’ das emergências climáticas. Esses eventos passaram a ter uma presença maior no cotidiano das populações. No evento de maio, órgãos públicos e privados foram avisados que haveria a possibilidade de altos níveis de precipitação. É necessário ações preventivas do poder público estadual e municipal para tentar minimizar os efeitos desses tipos de eventos”.
“Os países mais ricos são os campeões em emissões de gases de efeito estufa, no entanto, quem sofre mais intensamente as consequências do aquecimento global são as regiões mais pobres.”
Assim como as tecnologias de ponta, os conhecimentos ancestrais dos povos indígenas, das populações quilombolas e das comunidades tradicionais também podem ser úteis para mitigar os efeitos do aquecimento global. Essas populações detêm um conhecimento valioso sobre os ecossistemas que habitam. As terras protegidas por indígenas na Amazônia têm as menores taxas de destruição do bioma, taxas muito menores do que as áreas protegidas pelo governo. O último relatório do IPCC reconhece a importância deste conhecimento e seu valor no enfrentamento das mudanças climáticas: “No mais recente relatório publicado em 2021, o conhecimento local e o conhecimento dos povos indígenas foram, pela primeira vez, aceitos e incorporados às discussões. O IPCC reconheceu que esses sistemas de conhecimento representam uma gama de práticas culturais, sabedoria, tradições e formas de conhecer o mundo que fornecem informações, observações e soluções precisas e úteis sobre mudanças climáticas”, declarou Maria Silvia Muylaert, autora do capítulo 18 do relatório. (Figura 2)
Figura 2. Conhecimentos ancestrais dos povos indígenas, das populações quilombolas e das comunidades tradicionais são fundamentais para mitigar os efeitos do aquecimento global.
(Foto: Tatiana Azeviche/Setur-BA. Reprodução)
Esses conhecimentos são chamados pela sigla de IKLK (Indigenous Knowledge and Local Knowledge). Maria Silvia cita exemplos da colaboração entre os IKLK e a ciência: “O sistema de calendário tradicional (maramataka) usado pelos Maoris em Aotearoa, Nova Zelândia, incorpora conhecimentos indígenas ecológicos, ambientais e celestes. Praticantes Maori estão colaborando com cientistas acadêmicos na avaliação e nas propostas de adaptação às mudanças climáticas globais. Publicações recentes também demonstram que comunidade autônoma indígena na Finlândia (indígenas Skolt Sámi) tem amplo conhecimento sobre os impactos das mudanças climáticas globais e também detectaram poluição por microplásticos.”
Os conhecimentos ancestrais podem ser utilizados tanto para mitigar os efeitos do aquecimento global como para aumentar a resiliência de populações em relação a eventos climáticos extremos. O relatório do IPCC elenca as seguintes áreas de atuação do IKLK: previsão climática/ alerta antecipado; redução de riscos de incêndio; aumento no rendimento das colheitas/ segurança alimentar; melhoria da subsistência e do bem-estar; enfrentamento da degradação de ecossistemas; monitoramento da pesca e gestão de recursos urbanos.
Um desafio para a saúde
Ondas de calor são cada vez mais frequentes em muitas partes do mundo. Sob condições de extremo estresse térmico, a nossa demanda cardíaca aumenta, a sudorese se intensifica e ocorre um processo de desidratação. Esse quadro é ainda pior quando a população afetada vive em alguma situação de vulnerabilidade.
Waleska Caiaffa, professora do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) elenca os grupos sociais mais afetados pelo aquecimento global: “os povos indígenas, vivendo no ambiente deles ou nos espaços urbanos — ambientes nos quais eles não estão adaptados —, as minorias étnicas que precisaram migrar e pessoas que vivem em assentamentos informais e domicílios precários”. Para a pesquisadora, enfrentar o problema passa por melhorar as condições de vida e trabalho, as condições de habitação e o acesso dessas populações à infraestrutura de saúde.
“Os conhecimentos ancestrais podem ser utilizados tanto para mitigar os efeitos do aquecimento global como para aumentar a resiliência de populações em relação a eventos climáticos extremos.”
Enchentes e inundações podem causar uma ampla variedade de doenças, como a leptospirose, a salmonelose, a shigelose, as hepatites, as doenças dermatológicas, além de favorecer a disseminação de doenças como dengue, chikungunya e zika. Há a possibilidade também de contaminação por metais pesados que são levados pelas águas e entram em contato com as pessoas através da pele e da ingestão. Para Waleska Caiaffa, o sistema de saúde precisa se preparar para realizar esse tipo de diagnóstico de maneira rápida: “o sistema de saúde precisa ser capaz de conhecer, diagnosticar e ser capaz de encaminhar casos relacionados a esses eventos climáticos”.
A pesquisadora lembra ainda que as doenças mentais também podem “se proliferar” nessas condições: “as doenças mentais estão ligadas à repetição de episódios em pessoas que moram em contextos vulneráveis. — repetição dos desabamentos, repetição das inundações. As pessoas ficam extremamente estressadas e com medo de uma nova ocorrência”, alerta.